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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/11/2020

Um novo ponto de paragem obrigatório no Porto para todos aqueles que gostam de discos.

Armando Sousa (FMP): “Há uma geração que se está a marimbar para o formato, mas não é a mais jovem”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/11/2020

A Fonoteca é a última jogada (uma muito forte, diga-se) da Câmara Municipal do Porto e da Arda Recorders, uma das grandes apostas na cultura sonora da cidade. Um acervo de mais de 34 mil discos de vinil foi tratado, arquivado e está agora disponível para escuta na Plataforma Campanhã, o complexo onde também se encontram os estúdios da Arda.

Falámos com Armando Sousa, o seu programador e um dos seus arquivistas, e fomos descobrir mais sobre este espólio, apreciá-lo, conhecer os seus valores, como pretende interagir com a cidade e, ao contrário do expectável, descobrir que não são melómanos quem o visita. Muito pelo contrário.



Vamos começar por contextualizar a Fonoteca. De onde é que ela surgiu?

A Fonoteca surgiu de uma proposta da Câmara Municipal do Porto à Arda e da colaboração resultante. O projecto pretendia dar vida ao arquivo sonoro da Biblioteca Municipal do Porto, depositado na Biblioteca Almeida Garrett (BMAG), e que consistia em duas grandes doações, uma da Rádio Renascença e outra da secção norte da Rádio Difusão Portuguesa, cada uma composta por 17 mil discos aproximadamente.

Em termos práticos, a Fonoteca nasce do trabalho de arquivo, de preparação e catalogação desses depósitos. Os materiais resultantes consistem no nosso espólio actual, que continua a crescer.

Portanto, vocês trataram um espólio já organizado e migraram-no para uma base de dados maior e especializada?

Uma coisa é a colecção, que é um conjunto de elementos, outra coisa é o arquivo, que é uma colecção organizada segundo diversas matizes. Distintamente ocorre o processo de catalogação, que pode ser prévio ou posterior ao arquivo.

No caso da Fonoteca, os discos do arquivo sonoro da BMAG estavam organizados mas praticamente sem catalogação. Portanto, o “arquivo” consistia mais num inventário do que num arquivo. Haviam alguns discos catalogados para os postos de escuta da biblioteca, mas a maior parte estavam somente numerados. O pessoal lá tem muito trabalho com os seus principais suportes, livros e revistas, e não conseguiram fazer o tratamento especializado que nós fizemos.

Dizem que procuram ter um acervo “orgânico e dinâmico”, “em diálogo com a  cidade”. Que meios utilizarão para o fazer, em particular com as camadas mais jovens, habituadas a formatos completamente diferentes?

Pegando primeiro na questão da dinamização, queremos fazer a ponte entre a história da música, da rádio e também de Portugal e das ex-colónias que este arquivo conta e a nossa audiência matriz, que são os habitantes do Porto. A partir do momento que estás a contar a história estás a torná-la viva. Portanto, ao revisitarmos o arquivo e as suas histórias, estamos a dar-lhe uma nova vida. Vamos fazê-lo primeiramente através de visitas, mostras e outros momentos em que exista um contacto directo com o nosso espólio, e depois através de contactos indirectos, como podcasts e programas de escuta.

Neste momento, ao contrário do que pensávamos, encontras essa geração mais jovem a contactar com o arquivo. O público que nos tem visitado são principalmente jovens. Põem-se a ouvir discos ou músicas mediante o tempo que têm, brincando e comentando o que ouvem com amigos. Isso é muito curioso e só revela que nós, pessoas mais velhas, temos um certo preconceito infundado com esta falta de interesse. Eu próprio o tinha.

Há uma geração que se está um bocado a marimbar para o formato, mas não é a mais jovem. É a que agora tem 25/35 anos, sobretudo os mais velhos. Já conhecem o vinil, querem ouvir música de uma forma prática e não têm a mesma curiosidade e até fetiche com o objecto.

Se calhar a distância temporal que a geração mais jovem tem ao vinil fá-la olhar para ele quase como um artefacto, o que desperta uma curiosidade especial e muito distinta de quem olha para o vinil como um objecto de consumo generalizado.

Exactamente. E o que é curioso é que essa relação com o vinil como objecto acaba por criar uma relação diferente de consumo da música. Esta é que é a grande ironia disto tudo, e quem sabe estamos a criar aqui um campo de observação interessante. A forma como tu escutas música no vinil é mais activa, porque estás somente sentado a ouvir, atento ao movimento da agulha. Se calhar estes miúdos estão cansados de tanta informação imediata e o que procuram é um momento de consumo tranquilo e fresco, o que se dá com o objecto do vinil. O conteúdo acaba por ganhar com a forma.

Consegues-nos estimar quantos jovens dessa idade visitaram a Fonoteca na sua inauguração?

Mais de metade das visitas da primeira semana da Fonoteca tinham menos de 20 anos.

É, de facto, expressivo. Essa curiosidade será trabalhada com públicos ainda mais jovens, nas visitas escolares que pretendem realizar?

Se calhar até podemos usar estes dados para nossa vantagem. Em vez de orientarmos uma sessão expositiva, que seria uma seca para os miúdos, podemos pegar nisto e fazê- los perceber que, através da magia de tocar e experimentar um aparelho que não é um teclado, rato ou um telemóvel, podem ouvir música sem estar a fazer mais nada. E através dessa especificidade do consumo que o suporte permite conseguimos ser mais interessantes e apelativos.

A metodologia será essencialmente prática e abordaremos este fascínio, que eu tenho a certeza que não acontece em gerações mais velhas do que a nossa. Podem haver outras relações próximas, como a dos melómanos ou a dos coleccionadores, mas não há o deslumbramento com a novidade. É com os mais novos que temos que explorar este contacto, porque acredito que são potenciais consumidores do vinil.

Intriga-me o que eles procuram ouvir aqui. Quais os géneros musicais mais expressivos do vosso espólio?

Os registos da Fonoteca situam-se entre o final dos anos 40/50 e 1995, aproximadamente. Ao longo deste período aconteceram muitas coisas, sendo que a prensagem e a utilização do vinil também evoluíram muito. Ao mesmo tempo, os nossos discos foram principalmente utilizados na rádio, meio que é muito representativo da evolução da produção e consumo do vinil.

Numa primeira fase, nos anos 50, não se produzia praticamente nada em Portugal. Prensava-se em formatos estranhos, como placas de acetato, que tinham uma qualidade péssima. Os discos tinham que ser importados, de forma que uma fatia muito representativa do acervo, sobretudo da Rádio Difusão Portuguesa, composta por música clássica, canções e música orquestral ligeira, tem origem na Decca, Deutsche Grammophon, Columbia, prensagens francesas e italianas, etc. Artistas portugueses como a Amália e o Trio Odemira também eram prensados fora.

Depois começaram a aparecer as empresas de prensagem nacionais, como as do Arnaldo Trindade, e algumas multinacionais começaram também a prensar cá. A partir dos anos 60 dá-se um boom da produção de discos vinil, sobretudo em formato EP, que era o mais comum, económico e prático para a utilização na rádio. Aí temos outra parte muito importante do acervo, que é a da música tradicional, do fado e da canção, prévia à chegada do pop e que coincide com os últimos anos da ditadura. Tentava-se dar muita visibilidade aos ranchos e a outras expressões de folclore.

Posteriormente, no final dos anos 60/70, começa a aparecer a noção de álbum e a explodir o pop e o rock, e a produção vai noutra direcção. Começa-se a prensar discos estrangeiros cá e a produzir novos géneros musicais. Nos anos 80, esta tendência cresce de forma massiva com a prensagem dos discos mais comerciais, como os da Madonna  ou do George Michael, a transitar para a Alemanha, Reino Unido e Holanda.

E quais são os Maseratis do acervo, os registos que consideram mais preciosos?

Eu diria que os elementos mais especiais da colecção consistem nos discos portugueses de prensagem nacional. São os mais raros, têm um valor material significativo e, mais do que isso, são expressões de música tradicional que não consegues ouvir em mais lado nenhum. Por exemplo, os registos que temos do Giacometti, do José Alberto Sardinha e de grupos de investigação que fizeram recolhas etnográficas.

Há também itens específicos de pop que se tornaram únicos por só terem uma edição, como o maxi single dos Poke, um projecto do Porto que não editou mais nada, o Universo da Ilha do Vasco Martins, que é super procurado, ou o Mister Hasta la Vista da Claudia Benn, que desapareceu depois de o editar e que deve ser o nosso disco mais valioso para coleccionadores. São objectos interessantes e sobretudo mais atraentes para o público geral, por serem mais próximos do que costumam ouvir.

Finalmente, também temos objectos sem valor de colecção mas que são relevantes pela sua originalidade, como um LP da Deutsche Grammophon que consiste numa sessão explicativa sobre música electrónica. São coisas únicas e estranhíssimas, e não se percebe quem as colocaria na rádio.

É interessante porque categorizaste o valor de diferentes maneiras — raridade, especificidade, significado cultural — mas todas essas categorias cabem aqui.

E nem falei do valor gráfico dos LPs, das fotografias e outras expressões visuais. Por exemplo, os discos da Orfeu dos anos 60 eram editados com o design e fotografias do Fernando Aroso, que se tornaram numa imagem de marca da editora. São fotografias lindíssimas, às vezes de música que não é assim tão linda. [risos]

Puxando a brasa para a nossa sardinha, qual a expressão da Fonoteca no que diz respeito às rimas e batidas?

Tendo nós um espólio de origem radiofónica, e sendo as rádios um pouco o espelho dos gostos musicais vigentes, temos muito poucos registos de hip hop, uma vez que se ouvia muito pouco (hip hop) em Portugal nos anos 80 e inícios de 90. Temos alguns nomes, como os 2 Live Crew, Kurtis Blow e o Back in Black dos Whodini, por exemplo. Por outro lado, temos imensa expressão de soul, funk, r&b e muito disco de qualidade, de produções americanas prensadas cá. Em relação à música electrónica, ainda há menos material. Temos alguns clássicos, como discos de Tangerine Dream e dos Kraftwerk, entre outras entradas mais soltas, no limite da space age, mas também de artistas como a Wendy Carlos.

O que temos de maior interesse em relação ao hip hop e à cultura é a library music, que consiste em música produzida para ser utilizada num determinado contexto. Haviam editoras que eram contratadas e gravavam discos com essas finalidades. Por exemplo, discos só de afrobeat ou outros tipos de world music. Esse material costumava ser muito bem tocado, produzido e gravado, e abrange quase todos os géneros musicais. Esses discos eram muito utilizados para sampling.

Que é algo que não se pode fazer aqui.

Podem sempre vir aqui tirar ideias e comprar o disco depois [risos].


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