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Fotografia: João Quirino
Publicado a: 25/07/2025

Na abertura da nova proposta de Dias Abertos da OSSO.

ARCA’25 — Dias 1 e 2: assim na terra como no éter

Fotografia: João Quirino
Publicado a: 25/07/2025

A “ARCA transporta consigo a ideia intemporal de um mistério que nela pode estar escondido”, dizem-nos as palavras de Ricardo Jacinto em entrevista para o ReB, revelando a ideia em desejo no novo formato de partilha do espaço da Associação Cultural OSSO. Está em curso, até ao dia 27 de Julho, onde têm espaço de apresentação diversas propostas na aldeia de São Gregório nas Caldas da Rainha. Os primeiros dois dias foram marcados por expressões musicais que indicaram insondáveis mistérios da exploração do som. Das propostas feitas em concretos concertos, dos sons das madeiras antigas e das florestas exuberantes, ao som sugestionado e imersivo de cetáceos, ao que fazem escutar as ondas hertzianas, das vozes em coro pela rua que vão dar a lugares de duplas: uma que faz de uma eira um ensaio experimental para o éter, à outra que devolve ao lugar um emaranhado de sons de viagens imaginadas. 

Tudo arranca no mistério que o Salão de São Gregório guarda. As janelas tapadas por uma ideia chamada ARCA. Houve que proteger da luz do dia o que “Partes.Extra.Partes — organologia instrumental forense” reservava. O projecto imaginado por Luís J. Martins, requintado tocador de viola romântica a evocar a matéria do som. E essa matéria vem das árvores, que são também elas grandes, enormes arquivos. No video projectado, uma criação de Lucas Tavares, fazem-se essas viagem das florestas virgens partindo dos arquivos da memória vegetal — os herbários, as xilotecas. Porque há uma viola feita de partes de ébano, pau-santo, ácer, abeto e tília. Soam as madeiras por partes, em lâminas idiossincráticas, nas caixas de ressoar, e uma vez a viola devolvida à mesa de operações de um luthier imaginado. Anatomia de uma melodia para viola — podia ser o designativo —, mas Martins faz por deixar em aberto o seu processo de investigação. Depois da melodia que remonta aos primórdios, liga-se à electrificação de outras cordas, numa outra guitarra — dias modernos que evocam cronologias insondáveis pelo som das madeiras que os contêm. Ficou depois em partes, em automatismo, o curso do dispositivo sem o tangedor das cordas, mas operando uma ideia com futuro do som da madeira — desafiando a ideia de museu insonorizado, chamando antes a ouvir o amanhã. 

Podemos ouvir uma baleia partindo de um instrumento que tem muito de contrabaixo? Sim, se a mente puder dar aso e o som também, claro que mergulharemos até esses misteriosos sons. Margarida Garcia serve um depurado recital de corda em corda, num sentido dramatúrgico das suas arcadas. Como que desvenda um mistério numa narrativa que se escuta serena. A improvisação no contrabaixo eléctrico, robusto e feito plural aos pedais dá-lhe esse poder. Fazem-se ouvir cordas mas escutam-se baleias e cachalotes, ou então outros sons que tais, como outros ouvidos e outras mentes o dirão. Afinal é essa uma grande função do som, feito mistério mesmo que vendo como tudo acontece. Leve e profundo, à tona da melodia por fazer surgir mais elementos por partes que convidam a um mergulho, na água ou no ar, mas onde a fluidez é assegurada. Uma ténue e sincera entrada num outro espaço sem sair dali, e por uma meia-hora que fosse, num já voltar em seguida. Soube a isso, um passar para um outro estado subtilmente, mas efectivo onde só por uma qualquer inimaginável teimosia tornasse imóvel o escutar. 

De uma antena como um guarda-chuva só de varetas, a outra que parece uma meia-alça de colmeia sem quadros, mas com muito fio de cobre, surgem ondas sonoras que nem se tinha ideia ali estarem. É Marta Zapparoli em acção dentro de portas. Mas esta captora de fenómenos acústicos hertzianos, tanto de baixas, ou mesmo de muito baixas a altas frequências, tem consigo um vasto arquivo das suas viagens acústicas pelo mundo dos fenómenos electromagnéticos terrestres. Podem ser auroras boreais ou o que o Deserto de Atacama guarda como aparente silêncio. Uma mesa de trabalho entre fitas gravadas de campo, ao campo de captação em tempo real com as duas antenas. Às mãos de Alberto Lopes, de guitarra de feições futuristas, dispõem-se as cordas num vibrato de arco que definem a gama de frequência do som, adiante uma vara de metal faz a condução. M.Z.A.L. é acrónimo directo para uma dupla de trabalho que encontra uníssonos como quem procura o encontro com o desconhecido nos dias. Fazem da pesquisa sonora um tempo real e nisso devolvem um espaço etéreo a quem os escuta, em dedicada atenção. Em tantos e longos momentos soaram a uma onda só — de comprimento variável, de frequência tão bem sintonizada. É raro ver este fenómeno a acontecer, foi atmosférico mas muito humano também. 



E ao dia seguinte, se Fernando Lopes Graça ali estivesse teria gostado, e Zeca Afonso também, Zé Mário Branco muito mais ainda… Há um coro nas escadas do Salão da aldeia. Canta e encanta as ruas pois é por elas e para elas que sai o Coro Social do Bairro à rua. É jovem de formação, mas traz às vozes uma velha e pertinente razão — intervenção, cantada e também rindo. Não podia faltar “Acordai” ao cancioneiro preparado das vozes. Esse tema que José Gomes Ferreira escreveu e Lopes Graça musicou, e ainda nestes dias se canta, entoando: “Acordai! / Acendei / De almas e de sóis / Este mar sem cais / Nem luz de faróis!” Nisso já cantavam perfilados no espaço da OSSO os corais, pois eram já mais que os ditos tais. Até então, rua enladeirada abaixo tudo parou para se ouvir o andamento das vozes que despontaram com o “Coro da Primavera” neste já Verão. Ouviam-se já os rumores e os clamores… até que já só terminaram (se é que isto é de terminar — claro que não!) cantando e deixando no ar: “Mas quem vencer esta meta / Que diga que a linha é recta”. Tudo com quem canta de “De Não Saber o Que Me Espera”, como ensinou Zeca Afonso. Aplausos em grande por gratidão, em augúrio de longa vida ao Coro Social do Bairro. 

Há ideias que demoram a revelarem-se, no tempo do instantâneo e do tudo imediato, saber que duas mentes criativas se juntaram para fazer acontecer e passados cinco anos se juntam, no mesmo lugar,  para dar a conhecer é aceitar uma razão maior. Poderemos nem saber qual é, pouco importa — é o tempo a passar pelas coisas e a dar-lhes razão de existir. Eis na eira da OSSO, como em fita magnética da cassete da Facada Records — Rádio é um Osso. Uma obra em exercício poético-radiofónico de Raquel Lima nos textos, na voz e percurssão, e Yaw Tembe no trompete, electrónicas e voz. Em 2020 vieram para germinar, com a residência artística neste espaço. E este espaço também encontra no éter um lugar. A dupla foi convidada a compor uma peça para emitir na rádio Eira. Hoje actuam no chão, num programa de sete mantrinhas, como designadas por Raquel Lima as sete peças que compõem o alinhamento e o registo. É uma experimentação dos vocábulos e dos sons que os servem em igual medida. Eira na eira, osso na OSSO, a rádio e o espaço, mas vão até à extensão maior das palavras e múltiplos significados. Percorrem os nomes do esqueleto, de “Rótula” à “Ulna, Úmero”, o rádio é para além de um osso, um elemento químico cujo o número atómico é 88 — “Osso Oitenta e Oito”. Há aqui fractais sonoros, linguística dadaística, num folclore modernista, numa ideia intemporal. Entrar no transe do que emitem em sinal sonoro, desde uma eira feita estação é o mote. Envoltos num circulo onde outrora se malhou cereal e hoje se elevam as palavras musicadas na vez de palhiço ao vento. A palha, em bardos protectores, afinal serviu um festim para gente inteligente. O vento, esse fez-se de rogado e soprou de mansinho, forte foram antes as ideias e a liberdade, a demonstrar isso a música extra programa — um tema da resistência esclavagista de São Tomé tocado e cantado ao ritmo de um tambor falante de Yaw, tal como esta ideia de rádio e osso. 

Um disco quase acabado de lançar, Amuleto Apotropaico, já se encontra esgotado. Um dupla em acção envolta em mistério de igual nome e significado, a afugentar o mal, como que por magia de objecto. Uma névoa densa a reforçar o que dentro pode estar escondido. Muito fumo a sair da Adega Estúdio da OSSO. Lá dentro — acredita-se —, estão aos comandos António Feiteira nas electrónicas e Francisco Pedro Oliveira na flauta e sintetizadores modulares. Formalizados em 2021, numa Santa Maria da Feira que os vira surgir, hoje habitando um Porto que os fez editados. Ricardo Jacinto emprestou a sua electrónica e violoncelo no álbum em “Albedo e Rito”, entre dois temas de apotropias onde ainda cabe uma “Bruxa do Calhau Branco”. Parece que resta mesmo escutar para entender melhor. Porém, aqui estão dispostos a contar uma outra narrativa. Sem bateria ou guitarras, a ideia descrita como “o folclore e as sombras da memória” será reinventado dentro da outra musicalidade. Uma maré de elementos electrónicos que a espaços a flauta de recorte ancestral no som transita como que para rituais pagãos. Um rito que se não dança em síncope — ausentes estão os ritmos de dança. Dão-se por extenuados os corpos sentados, resta o elevar do espirito pelo estimulo dos sons, emaranhados dado o vórtice predominante. A progressão é de espiral em redor de uma figuração sonora central. Ao esbater do andamento o reavivar da memória à entrada para o espaço — há luzes estroboscópicas neste concerto. Agitam-se as visões e há quem baixe a cabeça ou feche os olhos para seguir viagem. Sim, é disso feita este afugentar como objecto de som. Numa busca por paisagens de purga e espantando males, mesmo aqueles que venham por bem. Foi como sair de uma sauna numa noite de verão, extenuação em nada soporífera, mas nem por isso altamente estimulante. Estivemos em boas mãos, haveremos de voltar, talvez antes até para o registo em disco, sem tantas luzes e feito de mais fio condutor. 

ARCA prosseguirá acumulando e guardando mais narrativas de mistérios, mais ou menos desvendados, sabendo esconder o que mais importa do desgaste dos dias em que nada disto acontece. Os dias quando abrem querem-se assim, feitos de sons luminosos.


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