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Publicado a: 13/05/2017

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[TEXTO] Rute Correia [FOTO] Direitos Reservados

Já por aí muito se escreveu sobre este terceiro álbum de Arca – o The Guardian deu-lhe um perfect score e a Pitchfork entregou-lhe o cobiçado selo de Best New Music. Não é para menos. Ambicioso em quase todos os sentidos imagináveis, o registo homónimo do produtor venezuelano não é, certamente, algo que se processe com facilidade. É sombrio, etéreo, íntimo, complexo e subtil – tudo ao mesmo tempo e tudo a seu tempo. Assim, qualquer esforço ligado a uma tentativa de compreender o que se ouve nos 43 minutos que dura o disco é largamente compensado pelo que se acabou de testemunhar.

 


“Quítame la piel de ayer

La sombra de destellos

En tu piel

Y de una vez distancia

Talvez

Sin ti, no sé nada”


Logo à entrada, percebe-se que este não é um longa-duração para todas as ocasiões. “Piel” chega de mansinho com a força de uma perda perpétua. Não há muitos corações que aguentem a intensidade que encaixa entre o que o feedback, a delicada voz de Alejandro Ghersi e o baixo dronificado desenham. Dorian Gray dizia que as coisas mais bonitas eram também inevitavelmente trágicas, e é quase só isso que borbulha pelos meus neurónios enquanto tento absorver cada segundo de som. Só uma vez não chega para depurar tudo o que aqui existe. Não há tempo. Enquanto tento apanhar cada estilhaço do que se partiu em mim nesta audição, chega o próximo aperto. Aliás, vai ser preciso ir para lá dos dois primeiros terços do disco para que o som deixe de espremer cada milímetro do que conseguimos sentir. Já lá vamos. Por enquanto, é importante que se abrace a angústia de cada momento. Arca tanto nos dá como nos tira. Ele é linhas melódicas sublimes em “Anoche”, ele é breakbeats apocalípticos em “Reverie”, ele é noise sincopado em “Whip”.

 



Dois segundos de silêncio. A pausa abre a porta ao momento mais pop da última meia-hora.

“Desafío” é uma sinfonia de renascimento. Com um início envolto numa espécie de aura eurodance, traz versos que denotam um caso de estranha aceitação pessoal: uma premissa enclausurada entre um amor masoquista e palavras que, apesar de remeteram para a auto-destruição, parecem ganhar um fôlego distinto com refrões cantados em cânone e sintetizadores ouvidos em eco; uma percepção da sua dimensão humana e, por isso, imperfeita, mas em paz consigo e com um mundo de dor infinita. E eis que “Fugaces” chega em jeito de aconchego, entranhado-se como balada inevitável desta peça, ainda que dilacerada, mais uma vez, pela desilusão de um amor que não se cumpre.

Arca é um álbum a três tempos. Sem grandes euforias – aliás, quase acorrentado a desesperos diversos – começa a sua rota ascendente logo de início. Chegado o clímax, com “Desafío”, o caminho inverso, de volta ao sopé da tristeza, faz-se de forma não menos intensa. Também não deixa de ser notável que tudo acabe com um momento de caos. “Child” remete para a isolada e confusa infância do artista. Quase em contratempo e assente em harmonias que parecem construídas sobre dissonâncias, sente-se como uma catarse quase fatal. No fim de tudo, fica só a calma de uma melodia fria e egrégia.

 



Se, pelo caminho, reconhecerem Björk, FKA twigs ou, até, Kanye West, não será por acaso. Afinal, Ghersi já trabalhou com/para todos eles, mas as revelações que faz em nome próprio não precisam de estrelas como referências. O trabalho que Ghersi entrega em Arca é uma prova de maturidade extrema, em que as influências clássicas da sua formação se imiscuem com uma vanguarda electrónica para lá de futurista. Sendo um álbum a apontar para um nicho muito específico, a sua real importância só o tempo saberá, mas para já fica a certeza de que este é um dos pontos altos da música este ano.

 


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