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Publicado a: 02/11/2018

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[TEXTO] Moisés Regalado

Não há experiências acabadas ou ciências realmente exactas, tendo em conta que nenhuma delas encontrou todas as respostas que ambiciona, e que a sua evolução depende exactamente da procura de resultados cada vez mais convincentes — ou convenientes, na ciência e na música, mas isso seria outra conversa. Se assim não acontecesse, talvez o movimento hip hop se tivesse dado por satisfeito com o auge atingido algures na viragem do milénio, quando Premier se provou melhor do que qualquer uma das suas versões anteriores, ou quando os flows de Method Man e Ghostface Killah elevaram o legado de Wu-Tang além do imaginável. Um pouco à imagem das teorias de Santo Agostinho ou Fukuyama, que tentaram relacionar o fim da história com o apogeu do pecado e do capitalismo, respectivamente.

Claro que a evolução técnica do rap é uma constante, e há hoje pormenores que há alguns anos seriam impensáveis, mas Joell Ortiz é um daqueles MCs que faz acreditar que os limites da métrica, das rimas multissilábicas ou dos refrões hip hop já foram estabelecidos há pelo menos quinze anos, e que a East Coast da década passada ainda não tem paralelo. Não é fácil explicar porquê: se Joell Ortiz é pausado, também Skepta ou Quavo o são; se a sua escrita se distingue pela dimensão extra-dimensional que dá às palavras, fundindo letra, flow e entrega num só, como se nenhum desses parâmetros existisse separadamente, pode dizer-se o mesmo sobre o liricismo de Kendrick Lamar, Wiki ou Kool AD.

A diferença estará, sobretudo, na rede de segurança que ampara rappers como Joell Ortiz — e produtores do calibre de Apollo Brown –, que optam quase sempre por evoluir dentro do estilo que um dia encontraram, mais do que partir à descoberta de novos desafios. Ainda que os esforços possam ser equivalentes, e que por vezes os tiques das funções até se confundam, não se pode comparar o melhor anfitrião do mundo com o melhor vendedor de casas do planeta. A força da novidade e do conforto de casa não têm paralelo, para quem faz e para quem ouve, mas, prefira-se um ou outro, haverá sempre quem se situe no mesmo comprimento de onda. E, por mais que se debata, nunca se saberá se LeBron James foi ou não melhor do que Michael Jordan.

Curiosamente, tudo melhora quando se percebe que Ortiz não guardou para si, e para as letras de Mona Lisa, este tipo de comparações ou considerações críticas, e que o seu foco aponta para quase todo o lado, menos para assuntos tão desinteressantes ou irrelevantes como o estado actual do hip hop ou as intenções, fakes ou reais, dos seus camaradas. Limitou-se a fazer com palavras o mesmo que Apollo Brown fez na programação das baterias e dos samples, com os olhos bem postos na intemporalidade. Apesar da escola de onde vêm ser basilar para o que Brown e Ortiz fabricam, não é o tempo que dita a qualidade de um duplo sentido, de uma tarola ou de uma sequência de hi-hats pensada ao milímetro.

Como é habitual em Joell Ortiz, Mona Lisa é uma compilação de histórias que, sendo contadas pela lente de um freestyler, não são exactamente storytellings. Há espaço para episódios locais (“My Block”), conselhos na primeira pessoa (“Decisions”) ou imersões pelo clandestino, sem nunca abandonar a moral (“Cocaine Fingertips”). Mas há cada vez menos manifestações bairristas, que apontem para o colectivo — não obstante a participação de Royce Da 5’9″ — ou mesmo para as suas raízes latinas, o que acaba por ser manifestação desta parceria com Apollo Brown. E assim se assume, uma vez mais, a pluralidade de Joell Ortiz, sem que tenha que sair da sua zona de conforto: Mona Lisa não tem, nem podia ter, o mesmo tom de Human, com Illmind, ou dos seus projectos com Slaughterhouse. E talvez este não seja um dos seus melhores discos, ou até um dos discos do ano, mas é, certamente, um disco eterno, para ouvir daqui a um ano ou daqui a vinte anos.

 


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