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Publicado a: 25/03/2015

Apache: o índio das batidas

Publicado a: 25/03/2015

Subimos até ao último andar de um prédio no coração da Amadora. Na porta, descalço, no conforto do lar está André Pinheiro, um ceboleiro (zona mais rural de Aveiro) que trocou a casa dos pais por um curso de som nas Caldas da Rainha e que, poucos anos depois, achou ainda mais irresistível o apelo dos subúrbios de Lisboa para desenvolver a sua ligação à música. A verdade é que os subúrbios têm essa tradição de oferecer malhas a torto e a direito.

André Pinheiro veio das Caldas para Lisboa com uma alcunha que haveria de marcar a sua música: “Quer dizer, trazia algumas. Mas começaram a chamar-me Apache”, recorda. São as eternas brincadeiras da rapaziada que acabam sempre por derivar em alcunhas, tudo porque um colega disse-lhe que era parecido os nativos-americanos. “Tinha o cabelo comprido, moreno”. Acabou por colar e André por se deixar colar a essa alcunha para criar o seu nome artístico.

Apache é hoje o “computador central” dos Macacos do Chinês e dos MGRDV. Duas bandas distintas, de ideais diferentes, mas que nascem do mesmo cérebro: o de Apache. Em ambas as bandas, André partilha as composições com Miguel Pité aka Skillaz. Depois, estrategicamente – que é como quem diz a gosto – as bandas ganham as suas idiossincrasias e preenchem-se com outros elementos. Nos Macacos do Chinês com Alx (Alexandre Talhinhas) e até há pouco tempo com Tiago Morna; e nos MGDRV com Yo Clichê (André Madeira). “É difícil dizer o que as distingue”, diz Apache a olhar para o chão, enquanto pensa numa resposta. “Mas, por exemplo, tenho uns beats de funaná que nunca vão ser MGDRV! São ambos hip hop, mas acho que o dos Macacos do Chinês é menos dramático, virado para uma cena mais fora.”

 

AS ORIGENS

André Pinheiro é filho de um engenheiro electrotécnico viciado em música. “Ao fim de semana, lá em casa, ouvíamos de tudo. Muita música brasileira: de Elis Regina à Daniela Mercury. O meu pai adorava ouvir jazz, de sentar-se com os phones a ouvir orquestras sinfónicas”, diz a recordar os tempos de Aveiro. Depois, a 250 quilómetros de distância, na Amadora, André tinha os primos Miguel e Rui Pité (exactamente, Skillaz, colega de bandas, e RIOT, dos Buraka Som Sistema) que já na altura passavam sons e bandas ao primo André. “Nas férias de Verão, quando vinha para cá, era só música para cima de mim. Mas depois vinha bué vezes por ano à Amadora e quando não vinha ficava buéda triste.”

A Amadora acabaria por tornar-se a sua casa. Depois de se formar em Som e Imagem na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha – onde conheceu e se tornou amigo do algarvio André Madeira – Apache mudou-se em definitivo para esta cidade nos arredores de Lisboa, onde mora com a avó. “Ela é a minha alma caridosa, a minha mais que tudo, a minha roomate”, sorri. E lá está ela, na cozinha onde foi filmado o vídeo de “Megacap”, do primeiro EP dos MGDRV. O músico faz do seu quarto o seu estúdio, local onde passa os dias a pensar e a materializar sons e batidas. Nobita, o simpático gato cinzento e preto que agora dorme no sofá-cama, é a sua companhia diária. “Às vezes meto-me no carro, levo o computador e o teclado midi, e vou produzir para a zona do Monsanto. Estamos em 2015! Já é possível fazer essas cenas”, ri-se. “Quando estou com bloqueios mentais, ajuda-me ir conduzir e ouvir as últimas misturas.”



 

FAUSTO BORDALO DIAS: O CULPADO

A história de André Pinheiro como produtor começa em 2006, quando foi convidado para vir para Lisboa. Tinha ganho um estágio “num estúdio de som da Câmara de Cascais”, em Alcabideche. “Foi nessa altura que quis tornar-me profissional”, confessa. Muito por culpa do disco “Por Este Rio Acima”, de Fausto Bordalo Dias, editado em 1982. “Aquele som tinha tudo no ponto! A gravação [produzido por Eduardo Paes Mamede] era perfeita. E na altura ouvia muita música e nada me soava bem. Pelo menos, nas produções portuguesas, as coisas não me soavam como as estrangeiras”, recorda André. A verdade é que a culpa também podia residir num ouvido jovem, que estava a dar os primeiros passos. “O que soava mal? Basicamente era o baixo”, responde. “Mas havia muita coisa que só mais tarde é que viria a conhecer. Recordo-me que a primeira cena que ouvi de hip hop português foi Da Weasel. E o Sam The Kid. Uma grande influência.”

É interessante colocar em paralelo estas influências de Apache. Os álbuns de beats de Sam The Kid, por exemplo – Beats Vol. 1 – Amor, de 2002 – são compostos à maneira clássica do hip hop: chopped and screwed, feito com “colagens”. Apache é muito mais próximo da escola do drum ‘n’ bass, algo que reflecte a influência do primo, Rui Pité. “Mas eu não sabia muito bem qual era a minha cena. Por isso é que fiz os Macacos, por não ter uma sonoridade específica, por ser muitas coisas juntas. Nunca me dei ao trabalho de pensar se era ou não uma sonoridade hip hop. Acho que só hoje com MGDRV é que penso um bocadinho se é hip hop ou não, mas só porque tenho de saber para que pasta é que direcciono os beats que produzo aqui em casa.”

Às vezes meto-me no carro, levo o computador e o teclado midi, e vou produzir para a zona do Monsanto. Estamos em 2015! Já é possível fazer essas cenas

André põe em pausa a mixtape que criou com hip hop dos anos 90 e que servem de banda sonora a esta conversa para nos pôr a ouvir alguns sons que tem guardados no disco rígido do computador. Alguns deles já com as vozes de Skillaz e Yo Clichê, feitos em fins-de-semana fechados em casas – verdadeiras residências artísticas – mas a precisarem ainda de algumas afinações. Mas lá está a mão de Apache: hip hop electrónico, veloz, de baixos pesados. O peso de que André tanto fala. “O primeiro EP dos MGRDV foi um cartão-de-visita para mostrar o que fazemos: a nossa imagem e o conceito. Agora vêm mais coisas para as mulheres – queremos que elas gostem de MGDRV! – e também algumas odes aos nossos heróis, como já tínhamos feito no tema ‘Ideia Original’”

 

OS SUBÚRBIOS NA MÚSICA DE APACHE

As pastas do computador de Apache continuam a ser recheadas. Umas com mais categorias e outras descrições e até aquelas pastas que não se explicam a não ser com o gosto pessoal. “Também ando a compor umas kizombas e uns funanás. Gosto muito”, confessa. Essa relação com as sonoridades mais africanas são um forte reflexo da mudança de André para o coração da Amadora. Claro que já tinha os primos e os tios, que o expuseram “a muita coisa, nomeadamente encontros com música africana”. As kizombas fazem parte do dia-a-dia das ruas da Amadora: de cafés, de supermercados de bairro ou daquele carro de janelas abertas que passa com as colunas do auto- rádio no máximo. Os Macacos do Chinês são filhos desta mescla de hip hop, da batida africana, da música operária, de protesto, sindicalista. “Mas não é consciente”, diz André.



Até os subúrbios estão diferentes: hoje, na estrada dos comandos, ao fim da tarde, há pessoas na rua a correr em jardins arranjadinhos. Há parquímetros ao pé da casa da avó de André, porque o largo da igreja foi todo reparado e está ali reluzente. Mas, claro, lá estão as crianças a jogar à bola com duas pedras a fazer de baliza à espera que as mães venham à janela mandá-los para casa para jantar. “Sim, as coisas estão diferentes”, reflecte. “Mas essas mudanças são superiores a mim. Àquilo que eu sou enquanto músico e produtor”, sustenta. Não deixa de haver essa relação óbvia entre a cidade e as músicas de MGDRV e Macacos do Chinês: “Está nas letras do Miguel, claro. Ele sempre gostou de contar histórias.” Como o grande primeiro êxito “Rolling na Reboleira” (Ruídos Reais, de 2009) ou “Lázaro” (Vida Louca, de 2011).

O fim do hiato dos Macacos do Chinês pode estar para breve. Eventualmente, até ao fim do ano ou no início de 2016. As coisas estão a rolar. Se bem que o foco de Apache e Skillaz esteja mais virado, nesta altura, para o primeiro disco de longa-duração dos MGRDV.

“Estou a curtir muito esse percurso: calminho, mas firme, a crescer. Nos concertos noto as reacções das pessoas. Há interesse. E quero fazer as coisas devagar, porque tenho algum trauma com os Macacos do Chinês…”, diz-nos. Trauma? “Sim. Não é que seja algo muito consciente, mas o segundo disco não bateu nada daquilo que estávamos à espera. Quando falamos com alguém e mencionamos esse disco, o trabalho de vídeo que fizemos… ninguém sabe! Ninguém se lembra. Fomos um bocado abaixo durante uns tempos”, confessa. Até porque foi tudo muito repentino na carreira dos Macacos do Chinês: de um quarto na Amadora para um festival de música em Inglaterra, Atlantic Waves, saltando para o meio do abanão de kuduro progressivo dos Buraka Som Sistema, que empurrou os Macacos do Chinês para o meio de um ‘furacão-hype’.

“Foram tempos conturbados. Agora temos muitos sons, porque os retiros funcionam muito bem. Mas queremos ter calma: o regresso tem de ser para destruir tudo. Para não haver dúvidas. Tem de ser perfeito, no sentido em que vamos dar tudo o que é possível”, diz, apontando ao céu.

Entre tudo isto, Apache tem o desejo meio secreto de querer ter o seu projecto a solo. Está na altura e ele sente-o. O seu quarto continua a ser o laboratório de muitas experiências e autonomia: “Tenho todo o controlo com o digital. Tenho a independência e a rapidez. Posso fazer um beat completo sem precisar de mais ninguém”, sorri. “Estou a ganhar o ímpeto.” Será justo e mais que merecido se formos ver Apache a atirar o peso das suas composições para as pistas dos clubes da cidade e puser a cidade a kizombar.

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