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Fotografia: Estelle Valente
Publicado a: 21/04/2022

Ao quinto álbum, Aline quer o que é seu. Uma Música Angolana é uma declaração de musculatura, enquanto criativa independente, e de clarividência sobre o mundo de ritmos que construiu Angola.

Ao raiar do Sul, uma Aline Frazão transnacional

Fotografia: Estelle Valente
Publicado a: 21/04/2022

Uma sessão longa, não demasiado longa, no Parque Florestal de Monsanto. Para um álbum de 10 canções, centenas de disparos. Numa das fotografias, a cantautora, arranjadora e produtora Aline Frazão alongou o olhar, como se tocasse no nervo da lente. Mais tarde, ao examinar o rolo da fotógrafa Estelle Valente, devolveu aquele mesmo olhar, demorando-o numa única foto. “Esta sou eu?”, pensou, descobrindo o retrato a preto e branco de uma mulher petrificada. Preocupou-a, mais do que a severidade, a ausência do sorriso costumeiro: “Estou muito habituada a ver-me ao leve, sabes? Aquele é um olhar que diz coisas. É um estranhamento da minha própria cara.” 

Alguns amigos alertaram Frazão para a aparência “deformada” do rosto, mas esse estranhamento animou-a. Não temeu sufocar sob o peso da sombra. Deixou-se reconstruir por ela, pelo grão da câmara, pelos sulcos dos lábios, pelo semblante de quem se expõe, entre terror e poder. “Achei, acima de tudo, bonita a foto — e não que eu estivesse bonita na foto”. Essa é Aline Frazão na capa de Uma Música Angolana, o seu número cinco. Lançado a 4 de Março, o disco aportou esta quarta-feira em Lisboa, no Teatro Maria Matos (com câmaras da RTP a acompanhar): uma de oito paragens europeias nesta Primavera, de Roterdão a Berna, e a segunda em Portugal, após Espinho.

Quando atende a videochamada com o Rimas e Batidas, cedo percebemos — pelos beiços de uma simpatia familiar — o tour state of mind. “É uma sensação de estar viva. Isso sim contrasta com todo o tempo de isolamento e máscaras, essas novas experiências que estamos a colecionar. Em espanhol seria la vida misma, aqui e agora, mais pura”. Frazão ainda sabe responder ao palco, adicto da espontaneidade — tal como ela, tal como qualquer artista comprometido pela COVID-19. Já faz três anos desde a última digressão a sério, tempo em que se dedicou à clausura do ser criativo. Para ser o que, em abono da verdade, sempre foi: um animal de estúdio.



[Angola além-fronteiras]

Antes de Uma Música Angolana, Frazão orquestrou em 2020 (no mesmo estúdio, o almadense PontoZurca) a banda sonora de Ar Condicionado. “O filme [realizado por Fradique] se passa na baixa de Luanda, eu conheço o batimento cardíaco daquela parte da cidade. É uma música muito humana, tem a respiração da música angolana”. Inteiramente ao serviço do cinema, sem poemas nem voz (exceto a de Paulo Flores, a quem voltaremos), Aline não lhe deu a certidão de álbum próprio, mas já nos dava aí o prospecto de um som iminente.

Dentro da Chuva, antecessor editado em 2018, era a limpidez das palavras e dos arranjos, as guitarras a afinarem o tom da introspecção. Uma economia onde o kisanji ou as palmas eram luxos, como sapatinhos guardados para estrear no Natal. Já não havia tanta parcimónia em Ar Condicionado. Apesar de fechado sobre si mesmo, arrancava de imediato com um ostinato de piano eléctrico; depois, abria-se ao murmúrio triste do violoncelo, à rima de um contrabaixo solene com um trompete desolado, até às congas, de uma letargia invulgar. O kisanji — tão presente em Movimento, de 2013 — fez aí a sua última aparição; de resto, todas as pistas apontavam para Uma Música Angolana, a sua dissertação musical disfarçada de álbum.

“Aconteceu uma coisa engraçada na carrinha, agora em tour”, recorda a artista. “Eu e o [baixista] Mayo pusemos um álbum do André Mingas, de 1992, chamado Coisas da Vida. Estávamos a mostrar o álbum à [pianista] Pri Azevedo, que é brasileira, conhece pouca música de Angola; tanto o Marcelo [Araújo, baterista] como o Diogo [Duque, trompetista e flautista] já tinham ouvido aquele álbum muitíssimo, porque nós não nos calávamos com isso”. Frazão acompanhava Mayo na explicação — legendando o som do autorrádio com as referências à costela jazzística e ao músculo brasileiro de Mingas, com o fervor de quem crescera a ouvir “Tchipalepa” —, quando essa noção a tomou de assalto. “Mayo, já pensaste bem que músicos seríamos sem este álbum nas nossas vidas?”

O pensamento continua a monte. “Na verdade, tenho de ir mais fundo com esta resposta. Toda a minha tese com Uma Música Angolana — talvez seja a primeira vez que o digo — é que a música angolana se caracteriza por ser transnacional. A própria nacionalidade angolana [também]… e isto provavelmente se estende a todas as ideias de nação. Não tenho esse conhecimento todo, mas falo do que eu conheço”. Invoca o guitarrista Liceu Vieira Dias: por ter sido “um dos fundadores da música popular angolana”, responsável pela recolha de canções tradicionais nos anos 60 e pela defesa do canto em kimbundu, não se coibiu de adaptar canções colombianas como “La Múcura” (“A moringa ‘tá pesada, mamãe, não posso com ela”, entoa Aline).

Lembra-se de como Angola namorou o merengue dominicano; de como o rock nacional acolheu a onda psicadélica internacional. Revisita a Lisboa dos anos 80, para lá encontrar a sua maior referência, Paulo Flores (Aline deixa recado: ouvir Xé Povo e o triplo Ex-Combatentes), ao lado de Eduardo Paim, “um dos pais do kizomba”. A mãe? A carência de sons nacionais para gingar: “Nas festas, só se ouvia música cubana, brasileira, cabo-verdiana. A música angolana era muito de lamento, estilo Waldemar Bastos. Então [o Eduardo] vai e pega influências do merengue, do Congo, do zouk antilhano e cria um género novo”. Frazão conhece aquilo de que fala. Foi com propriedade que depurou todos esses ingredientes, para os pôr a levedar novamente.



[Ninguém dá pelo desnorte]

Intitula-se Uma Música Angolana, como se fosse uma proposição. Testem-na, contra-argumentem; será difícil. A massa fermenta desde o primeiro momento, um “relicário pessoal” de ritmos que tem o seu próprio passaporte. Leva carimbos de Cabo Verde no batuku de “Luísa”, do Brasil e do Congo em “Baúka”, por misturar maracatú e soukous; guarda Angola nas pulsações autóctones, como o massemba (banhado a Fender Rhodes) de “Fumo” e o kilapanga de “Mate”. 

Nada disto é imediato, porque é subtil; nada disto destoa, porque é cuidado. A saliva com que cola a garganta à guitarra, a harmonia ao sabor da palma, a humidade com que Frazão adocica — mas não neutraliza — os acordes menores, profundos, dos confins de si própria e de Angola. Tudo se une numa linha estética que concentra a corpulência instrumental de Clave Bantu (2011), a leveza maior de Movimento (2013), o “filtro de cores frias” e palavras ferozes em Insular (2015), e o vapor íntimo de Dentro da Chuva.

A ouvido nu, a trajectória pode soar homogénea, calculada para não agitar as águas. Frazão recusa, gentilmente, esse parecer: “Quando fiz o Insular, as pessoas achavam que ia deixar de ser world music [por causa da] guitarra eléctrica”. Não cedeu, amealhou cinco estrelas do Expresso. Voltou a não ceder em 2018, insistindo em gravar sozinha Dentro da Chuva, em vez de um disco de semba que fizesse dela a sucessora de Paulo Flores. “Um disco a solo significa que não vais fazer festivais de world music, estás a abdicar de muitas coisas. Agora, é o oposto: um disco a solo seria perfeito. Não haveria músicos [para apanhar COVID], uma equipa reduzida, super fácil de trabalhar, ganharia muito mais dinheiro… mas foi exatamente o oposto. Vou lá, pego um quarteto — piano, bateria e baixo, sem synths — à moda antiga, [distante da electrónica que domina a] música de origem africana, falando do mercado em Portugal. Eu sinto que ando muito a contraciclo.”

Aline Frazão é o seu próprio sismógrafo; também é documentarista daquilo que muitos não querem ver, como o processo de fazer um álbum. Elenca uma ordem de trabalhos: “Compor as canções, escolher o repertório, a produção [propriamente dita], marcar estúdio, fazer um plano de trabalho, mandar o plano para todo o mundo, confrontar as disponibilidades, fazer um horário, uma pausa para o almoço, pagar isso tudo…” Suspira. Na sua boca, um suspiro demora um segundo, interrupção-relâmpago numa lista atlética. E volta à carga: “…contactar com as editoras, acompanhar as gravações, tomar notas, gravar os outros músicos, gravar eu as guias para [os orientar], tomar livros e livros de notas, chegar ao lugar. Depois, toda a mistura…” 

“Às vezes, fico a pensar: porque é que eu não facilito a minha vida, vou para uma [editora] major, que fica com os meus masters?” Parte da resposta já está aí. “Podia se calhar trabalhar com mais tranquilidade, estar num outro lugar na música, mas o lugar onde estou é o lugar onde quero estar”. É o lugar de cantautora e executiva, criativa e decisora independente, Kasparov e peça do seu próprio tabuleiro, sem asteriscos. 

Se sobrar dúvida, basta consultar os créditos do álbum: Aline Frazão, produtora, a única. A mesma coisa acontecera com a banda sonora de Ar Condicionado, cuja recepção calorosa começou e acabou com os ouvintes. “Tu achas que eu recebi até agora algum convite para fazer outra banda sonora?” Não seria inesperado que lhe abrisse o mesmo caminho de Noiserv ou Bruno Pernadas. “Até agora, não abriu nada. Porquê? Foi um acaso da vida? Se calhar, pronto… Fico com a sensação de que, se fosse um músico homem a fazer aquela banda sonora, muito provavelmente viria outra a seguir… As pessoas ficam muito chateadas quando as mulheres falam sobre isso, irritadas com a procura de explicações.”

O título de Uma Música Angolana é, além da herança musical, um “eu existo”. Se há músicos, há músicas: um clarão disparado no breu da indústria fonográfica, pouco acostumada às mulheres que não se esgotam na voz ou na caneta. Se gravam com homens, são julgadas em processo sumário: são presumidas vocalistas e/ou letristas, exoneradas dos fardos do estúdio (como se tais competências coubessem, sequer, nas suas cabecinhas). Enquanto isso, o falo — elemento absorvente da colaboração — suga os louros por todo o trabalho técnico.



[O imenso Sul]

Para retificar a misoginia dos dias, as veteranas amplificam o seu trabalho de bastidores (o mesmo que, quando desenvolvido por um homem, dispensa provas e inquéritos para resultar no reconhecimento justo). Missy Elliott deu a ideia a Björk, que a recomendou a M.I.A.: “Tira uma foto tua no estúdio, junto à mesa de mistura. As pessoas dirão ‘oh, OK! Uma mulher com uma ferramenta, como um homem com uma guitarra”. De volta a Frazão: “Teres que te explicar, além de fazeres tudo bem e puxares por ti própria, quando, às vezes, uma pessoa só queria existir.” 

Também ela está a criar o seu próprio arquivo consciente — com vídeos making-of no estúdio e concertos gravados em celebração de cada álbum —, embora a motivação não seja (apenas) política. “Fico com a sensação de que vai haver um dia em que vou precisar de ver essas imagens, essas histórias, sabes? Tenho tendência a ir muito rápida, a não ver as coisas boas, sabes? Acabei de sair de uma tour que me fez muito feliz. Antes disso não era como se estivesse profundamente infeliz, ou como se agora estivesse tudo bem, mas tinha-me esquecido do quão importante a música é para mim, do quanto me salva, do quanto é bastante impensável abdicar dela”, confidencia.

A memória enformou Uma Música Angolana, porque não havia outra forma. É um intercâmbio, em que todas essas Alines se escrevem, respeitosas do tempo de latência, das coisas que naturalmente se extraviam, das boas (e más) novas para contar. “Passa o tempo/ A gente esquece de fazer o luto de aquilo que muda em nós”, como canta em “Mate”, é um dizer que Frazão leva a peito. “Luz Foi” — carta aberta ao seu país (lançada no 45º aniversário da independência, a 11 de Novembro de 2020) — faz o luto do potencial adormecido, perfura uma ferida de cansaço, e encontra uma melodia galáctica, centelha de céu, longe do bidão por encher.

Entrega-se à latitude que Isabel Silvestre uma vez cantou. Apareceu na obra de Frazão, pela primeira vez, em “Caminho de Sul” (2011, Clave Bantu); está no hemisfério reclamado em “Areal de Cabo Ledo” (2018, Dentro da Chuva). Em 2015, era a penúltima sílaba de Insular, época em que já cantava ao vivo o poema de Ruy Duarte de Carvalho. Só agora “O Sul” pertence a um disco. “Tenho uma amiga que me está sempre a dizer que as minhas canções falam muito de pontos cardeais, mapas, geografia constante. Não sei se é por eu viajar muito, ou ser filha de um piloto”, teoriza Aline, antes de lembrar o tango de Piezolla, “Vuelvo al sur”. Que Sul é este?

“É o mesmo Sul que me fez voltar para Luanda. O mesmo que eu busco quando me perco, quando estou triste. É realmente…” Pausa, mas não em tempo de relâmpago — uma pausa para pensar. “É uma alegria, um consolo, uma relação com a vida. As formas africanas de estar no mundo, de lidar com a música e com a celebração, mesmo em tempos de perda e de devastação absoluta. A música está lá, com ritmo e como forma de sobrevivência. É um ensinamento que, ao Norte do mundo, se perde de vista.”

No “Kwanza Sul”, coração de Uma Música Angolana, troca medos primais pela liberdade de apenas existir. A curiosa modulação de “Valsa da Libertação”, no segundo refrão, diz o mesmo: o trompete agiganta-se — severo, quando ainda há pouco parecia triunfante — mas a voz flutua. O piano e violoncelo d’”O Sul” também contraem e empurram Aline; a meio, as teclas de Marco Pombinho não relaxam, mas as cordas de Susanne Paul transformam-se. Desapegam-se do pesar; esboçam o voo de uma mariposa. Se ela acompanhar a voz de Aline Frazão, já sabem para que sentido vai.


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