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Fotografia: Dan Wilton
Publicado a: 14/05/2020

E tudo começou num Boatel...

Antes de Tom Moulton, a remistura era uma miragem

Fotografia: Dan Wilton
Publicado a: 14/05/2020

Foi exactamente há 45 anos que a ideia do maxi-single nasceu e um ano depois, em Abril de 1976, o primeiro maxi-single foi editado. Formato de eleição dos DJs, os maxis de doze polegadas devem a sua existência aos pioneiros esforços de Tom Moulton, o pai de todos os remisturadores.

Quando Thomas Edison inventou o fonógrafo, em 1877, a utilização desta tecnologia para reprodução de música ainda não lhe havia ocorrido – interessava-lhe, isso sim, a fixação da voz humana. No entanto, 100 anos mais tarde, a América vivia sob o domínio da cultura disco sound e todos os dias milhares de pessoas dançavam ao som da música que se desprendia de rodelas de vinil, descendentes directas dos rolos de cera do fonógrafo.

Há um paralelo que se pode desenhar entre a invenção do fonógrafo e a posterior descoberta da sua verdadeira vocação como meio reprodutor de música e a invenção do disco de doze polegadas e a sua posterior sagração como suporte perfeito para a música entregue pelo DJ às multidões. O LP de 33 rotações, inicialmente de dez polegadas e só mais tarde de doze, foi inventado em 1948 nos laboratórios da CBS e apresentado ao mundo como veículo ideal para a reprodução de música clássica. A RCA, companhia rival da CBS, não demorou muito a apresentar um produto concorrente – o single de sete polegadas e 45 rotações – que teria o seu impulso decisivo com o advento do rock and roll nos anos 50.

No terreno da música popular, os LPs limitavam-se inicialmente a servir para compilar singles,o formato que verdadeiramente dominava o mercado orientado para o target mais juvenil, e só com a chegada dos Beatles é que a indústria começou a perceber o potencial mais vasto do LP. A segunda metade da década de 60 ajudou portanto a cristalizar a utilização dos dois formatos que ganharam sentido até em termos artísticos: os singles eram obviamente o veículo ideal para a canção pop de três minutos e os LPs permitiam aos artistas explorar outras vias e alargar as margens do formato clássico da canção.

Foi nesta época que um importante desenvolvimento na história da música de dança ocorreu em Nova Iorque: em Maio de 1965 abriu o clube Arthur onde o DJ Terry Noel haveria se ser o primeiro a cruzar dois discos. Até essa data, todos os clubes dispunham apenas de jukeboxes ou de um gira-discos para animar a pista de dança e nunca ninguém tinha pensado em eliminar os tempos de silêncio entre dois temas. Mas foi preciso esperar por 1969 e pela abertura do clube The Church, mais tarde The Sanctuary, para assistir à chegada daquele que de acordo com os autores de Last Night a DJ Saved My Life, Bill Brewster e Frank Broughton, terá sido o primeiro DJ da era moderna – Francis Grasso. Revelando capacidades que hoje fazem parte da cartilha básica de qualquer DJ, como a mistura por batidas e a sequenciação, Grasso foi o primeiro DJ a entender a dinâmica de uma noite, oferecendo uma autêntica viagem à sua pista de dança, com momentos de crescendo e de libertação. Sempre com singles de sete polegadas.



[A criação do selo de qualidade Tom Moulton]

Tom Moulton teve o seu primeiro contacto com a cultura dos clubes em 1971 quando visitou o célebre Boatel, um hotel e clube gay de Fire Island, Nova Iorque. Mas Moulton não era propriamente um novato no mundo da música, tendo já trabalhado no departamento de promoção da King Records (casa de James Brown, por exemplo) e na área de vendas da RCA. Moulton recorda nas páginas de Turn The Beat Around, da autoria de Peter Shapiro (colaborador regular da Wire), que a “porcaria, a graxa e a falta de sinceridade” patentes na indústria da música o levaram a abandonar o seu trabalho para se dedicar a uma carreira de modelo. E foi nessa qualidade que Tom Moulton foi convidado a visitar o Boatel. É ainda nas páginas de Turn The Beat Around que Moulton recorda que algo não batia certo na pista de dança do Boatel: as pessoas dançavam os temas soul que o DJ lhes oferecia, mas quando estavam mesmo em sintonia com o tema, no seu auge, a música acabava. Os singles de sete polegadas, com os seus três minutos de música, não conseguiam realmente conquistar as pessoas que procuravam na pista um fio condutor, uma narrativa. Foi então que Moulton sugeriu ao dono do Boatel criar uma cassete de 45 minutos em que estas quebras no ritmo não se fariam sentir. “Um lado de 45 minutos levou-me 80 horas a fazer”, contou Moulton à revista Record Collector em 2005 (a propósito de um artigo sobre os 30 anos da Salsoul). “Eu queria ser melhor do que um DJ, queria capturar aquilo a que eu chamo uma suite. Começar num ponto e durante 45 minutos prender as pessoas, controlá-las…”

Como é normal acontecer com todas as ideias revolucionárias, a mix de Moulton não resultou à primeira. O dono do Boatel, por exemplo, recusou-se a passar a cassete e só no Sandpiper, um clube-restaurante de Fire Island, é que as mixes de Moulton começaram a angariar público. Com a encomenda de novas cassetes, Tom Moultom percebeu que tinha que prolongar algumas das músicas para assim rentabilizar o seu trabalho e foi aí que começou a fazer pequenos edits – estendia introduções e duplicava breaks para poder extrair de uma canção a sua mais valia rítmica e assim ir de encontro às necessidades da pista de dança.

A perda de influência do formato clássico da canção pop de três minutos não se fazia sentir apenas na cabine do DJ – a música estava a mudar até nos estúdios: Kenneth Gamble e Leon Huff, em Filadélfia, e o produtor Norman Whitfield, na Motown, começaram no início da década de 70 a dilatar o groove aproveitando grupos como Harold Melvin & The Blue Notes, O’Jays ou os Temptations para criar autênticas suites alimentadas por vigorosas células rítmicas e dramáticas secções de cordas. As editoras já tinham percebido que os clubes eram uma excelente forma de divulgação das novas experiências nos terrenos da soul e por isso quando Tom Moulton começou a frequentar os gabinetes de promoção à procura de versões instrumentais para as suas mixes chamou a atenção das pessoas certas. As encomendas não tardaram a chegar – a Scepter foi a primeira editora a procurar os talentos de Moulton que assinou edits para, entre outros temas, “Do It Til You’re Satisfied” dos B.T. Express que, claro, se transformou num enorme sucesso. Em Dezembro de 1974 a Billboard dava conta dos novos tempos com um dramático título de capa: “Discos Demand Five Minute Singles”. Algo estava a mudar e o logótipo com as palavras “A Tom Moulton Mix” passou a funcionar como uma chancela de credibilidade na capa de um disco e como um imbatível argumento a favor da sua entrada na cabine dos mais respeitados DJs de Nova Iorque.



[O maxi-single]

No início de 1975, Tom Moulton dirigiu-se ao estúdio Media Sound em Nova Iorque para cortar um acetato da sua remistura para o tema “I’ll Be Holdin’ On” de Al Downing. Era comum fazer-se isto para se testar o efeito de um determinado edit no sistema de som de um clube. Nesse dia, porém, Jose Rodriguez, o engenheiro de som, não tinha acetatos virgens de sete polegadas e sugeriu que se imprimisse o edit num acetato de doze polegadas espaçando as espiras para se poder fazer um corte mais profundo, ou seja com mais volume. “Meu Deus, era impressionante”, explicou Moulton a Peter Shapiro. “Fazia com que os singles normais soassem a porcaria. Os níveis estavam tão… as dinâmicas, o baixo, tudo, o volume era como… sempre ter tocado cópias de quinta geração e de repente poder tocar uma fita master”. A partir daí a música nunca mais soou da mesma forma.

Um dos trabalhos seguintes de Moulton, para a Roulette, foi “So Much For Love” dos Moment of Truth que, garante Peter Shapiro, foi o primeiro maxi-single de todos os tempos, apesar de “só” ter sido editado uma semana depois de “Ten Percent” dos Double Exposure (com um edit de outra lenda, o DJ Walter Gibbons) ter assegurado um lugar na história como o primeiro maxi disponível comercialmente. As primeiras experiências de Moulton eram vistas pelas editoras como ferramentas de promoção e por isso imprimia-se apenas meia dúzia de maxis para os mais importantes DJs da cidade. Mas isso mudou muito rapidamente quando a indústria percebeu que as pessoas que saiam à noite para dançar queriam comprar discos no dia seguinte. Tom Moulton mudou a forma de pensar na indústria e legou para a posteridade não apenas um suporte como o maxi, mas igualmente um conceito tão importante como a remistura.

A compilação A Tom Moulton Mix que a Soul Jazz editou em 2006 prestava homenagem aos pioneiros e visionários esforços de Tom Moulton reunindo num duplo álbum uma série de temas em que este lendário remisturador imprimiu a sua marca, incluindo o “hino nacional do disco” “Love is The Message” dos MFSB, o tema que Larry Levan transformou na bandeira do Paradise Garage.

Com os horizontes alargados pela expansão do espaço disponível no maxi de doze polegadas, o disco sound soube também crescer e transmutar-se através do cruzamento com outras linguagens. Em Nova Iorque, abriu-se à influência da new wave e do dub, assumiu novas cores com as sensibilidades artísticas dos lofts e das galerias do Soho e depois cruzou o oceano para se apoderar das experiências criadas no domínio do synth pop e fazer erguer híbridos como o hi-nrg e o italo-disco. Já nos anos 80, a partir de Chicago, o disco reinventou-se como house e tomou de assalto, uma vez mais, todo o planeta. E sempre levando até ao limite as possibilidades oferecidas pelo maxi-single de doze polegadas. A canção pop impressa no singlede sete polegadas podia ser tão intensa, mágica e enigmática como a Gioconda de Da Vinci, mas um tema disco estendido ao longo de 15 minutos num maxi de doze polegadas podia ser tão complexo como o Guernica de Picasso. Com o maxi, a música de dança ganhou outra escala.


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