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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 10/10/2025

Voz e contrabaixo em diálogo com gravações de campo.

Antero & Calhaz antes do Festival Jazz ao Centro: “O concerto em si, nenhum de nós sabe como vai ser”

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 10/10/2025

Entre a geografia íntima das serras e a memória coletiva inscrita nos sons que as atravessam, o encontro entre Luís Antero e Miguel Calhaz tem vindo a abrir um território novo, onde o jazz improvisado se funde com paisagens sonoras que são tanto arquivo como matéria viva. Depois de uma primeira colaboração em Cernache do Bonjardim, a dupla firmou caminho com a apresentação em Gondramaz — um concerto onde o contrabaixo e a voz se entrelaçaram com registos de rios, animais, vozes e ofícios, numa improvisação que parecia nascer tanto do lugar como do instante.

Agora, sob o nome Antero & Calhaz: Soundscape Jazz, o projeto chega ao Festival Jazz ao Centro, com um concerto na Estação Nova de Coimbra, espaço carregado de memórias urbanas que o duo procurará reactivar através do som. A apresentação insere-se numa residência artística no Salão Brazil, que dará origem a um registo pela JACC Records, a editar em breve na coleção Terra Series.

À conversa com o Rimas e Batidas, Antero e Calhaz falaram sobre a génese do projeto, os concertos já realizados, a importância da escuta e da improvisação, e ainda sobre como o som pode ser um arquivo vivo das transformações — naturais, sociais e políticas — do território.



Tanto quanto eu sei, este projecto que vocês apresentaram recentemente em Gondramaz ainda não tem declinação em disco, pois não?

[Miguel Calhaz] Bem, temos a gravação desse concerto que, possivelmente, poderá vir a sair em disco.

Não existe nada editado ainda, portanto. É isso?

[Luís Antero] Ainda não. Deixa-me só contextualizar. No âmbito de um projecto que eu realizei em Cernache do Bonjardim, Lugares da Memória, um arquivo sonoro ligado às práticas do rio Zêzere — do peixe e da pesca, etc. —, estava a inclusão de um concerto para olhos vendados, que aconteceu na igreja matriz de Cernache do Bonjardim. Como eu já conhecia o Miguel, por tê-lo programado duas vezes em Oliveira do Hospital, convidei-o para participar comigo na segunda parte desse concerto. Foi tão bonito e especial que, quando cheguei a Oliveira do Hospital, telefonei ao Miguel para lhe dizer: “Eu gostava mesmo era de fazer um projecto contigo, em que nós misturamos as minhas gravações sonoras de campo com o teu contrabaixo e a tua voz.” O Miguel ficou entusiasmado pelo que aconteceu naquele concerto e também pela amizade que nós cimentámos, então disse-me logo que sim. Foi aí que partimos para este projecto de Antero & Calhaz: “Soundscape Jazz”. No fundo é misturar as minhas paisagens sonoras com a voz e o contrabaixo do Calhaz. O concerto em Gondramaz foi gravado, mas ainda não tive tempo de o editar. O José Miguel Pereira do Jazz ao Centro, assim que eu lhe falei neste projecto, logo se predispôs para fazermos uma residência artística no Salão Brazil, onde iremos tocar, ensaiar e gravar. Desse material sairá um disco que será editado pela JACC Records na Terra Series. Isso vai sair pelo menos no formato digital — em relação ao formato físico ainda teremos de conversar. Essa residência artística irá acontecer, muito provavelmente, depois do concerto que vamos dar no dia 11 de Outubro na Estação Nova de Coimbra no âmbito do Festival Jazz ao Centro deste ano. Diria que dentro de dois ou três meses teremos um trabalho editado.

Falem-me desse concerto de Gondramaz. Tanto quanto percebi, houve um passeio sonoro, em que foste captando os sons daqueles lugares porque passaram, e depois a apresentação consistiu da mistura entre esses sons mais a voz e o contrabaixo do Miguel. Quanto é que disto é pré-planeado? Ou é tudo improvisado?

[Luís Antero] Não houve tempo para eu fazer a edição dos sons para depois serem incluídos no concerto. No entanto, aquilo que aconteceu foi que o concerto foi realizado com um arquivo sonoro que eu realizei para a rede de Aldeias do Xisto, que se chama Xisto Sonoro. O que eu fiz com o Miguel foi pegar nas faixas desse arquivo e realizar o concerto em Gondramaz, aldeia que pertence à rede de Aldeias do Xisto, unicamente com paisagens sonoras pertencentes às Aldeias do Xisto — Gondramaz inclusive. Isto deu-se numa base improvisacional, que é muito ligada a uma certa matriz jazzística. Portanto, nós não ensaiamos. Nós chegamos, juntamo-nos e… Aliás, o Miguel até estava numa circunstância muito particular e infeliz, porque nesse dia tinha o fogo quase à porta dele e ele estava muito preocupado com isso. E então nós juntámo-nos, fizemos o soundcheck e trocámos breves palavras, até porque já tínhamos tido aquela experiência de Cernache do Bonjardim, então podíamos partir daí. Eu tenho uma sorte incrível em trabalhar com o Miguel, porque ele é um músico de excelência. Este casamento veio em boa hora e ainda bem que me lembrei de o convidar para juntarmos estes esforços. E ele também confia em mim, no meu lado das paisagens sonoras, uma experiência que eu tenho vindo a acumular desde 2008, quando iniciei este projecto. As coisas depois foram acontecendo naturalmente. Houve até uma passagem em que eu acabei por abandonar o palco, porque quando eu lancei a brama dos veados, o Miguel foi buscar a brama ao contrabaixo. Ele foi buscar aquele tom preciso ao arco do contrabaixo e reproduziu aquele som gutural do veado num pedaço de madeira com 100 anos. Eu fiquei completamente passado da cabeça, abandonei o palco e fui-me abraçar ao Zé Miguel, e disse-lhe: “Eu não acredito nisto!”

Já me falaste da brama dos veados. Que outros sons mais é que o teu gravador guarda?

[Luís Antero] O meu trabalho tem sempre uma relação muito forte, directa e profícua entre a geofonia (os sons da natureza), a biofonia (animais e plantas) e antropofonia (os sons emitidos pelos humanos e os objectos por eles construídos).

Os pastores com quem te cruzas nas estradas, por exemplo?

[Luís Antero] Justamente. O meu trabalho estabelece uma relação entre o som presente e a memória, quer seja colectiva, quer seja individual. Para mim, não é possível gravar o moinho sem gravar o moleiro. Não é possível gravar o cavar da terra sem gravar o cavador. O arquivo Xisto Sonoro tem essa vertente. Também acontece várias vezes captar a tradição oral e o cancioneiro tradicional. Lembro-me que no concerto nós usámos uma canção de uma senhora com 92 anos que eu tinha gravado em Castelo Branco, penso que em 2013 ou 2014. A senhora neste momento já não deve estar viva, e eu disse ao Miguel: “Olha, vamos trabalhar as paisagens sonoras, mas eu tenho aqui esta senhora que quero incluir.” É um tema tradicional muito bonito, que o Miguel, com o seu contrabaixo e o seu know how de musicar grandes nomes da música portuguesa, fez ao vivo e em tempo real sem qualquer tipo de ensaio prévio comigo.

Tenho mais duas perguntas especificamente para ti, Luís. Estas paisagens sonoras que tu crias, derivam de algum pré-estudo? Há caminhadas prévias em que tu vais identificar possíveis pontos de gravação, ou há também uma dose de espontaneidade nessas caminhadas, em que o teu gravador está a captar aquelas coisas ao mesmo tempo que tu as estás a descobrir?

[Luís Antero] Sendo que eu vivo na aldeia Alvoco das Várzeas, em Oliveira do Hospital, desde 2018, esta Cordilheira Central — principalmente Lousã, Açor e Estrela — é o território a que chamo casa. Eu sinto que pertenço aqui. O meu pai servia aqui casamentos e eu acompanhava-o, portanto eu conheço este território. Quando eu saio de casa, a não ser que eu tenha um objectivo específico para um determinado trabalho, vou sempre com Saramago na mente: “O importante é a viagem.” Depois, quando chego a determinado lugar, abro os meus ouvidos, ligo o meu microfone, sento-me e gravo. Eu entendo o meu território e o meu espaço de gravação como um grande haiku aberto nestas serras. Apesar da brevidade do haiku, lá cabe o mundo.

Há quase que um paradoxo na tua actividade e tu próprio acabas de referir isso — é uma coisa que precisa de tempo. Mas há também, como nos indicou o que aconteceu este Verão com os fogos, uma urgência, porque estas paisagens mudam depois destas catástrofes — e as suas paisagens sonoras, imagino eu, também mudam radicalmente. Nós lembramo-nos que, com o fogo, desaparecem árvores, a paisagem fica mais monocromática… Mas a mudança sonora também é profunda, não é?

[Luís Antero] É uma mudança sonora profunda. Mas, como ser pertencente a esta casa que habito, na minha prática artística existe ética. E a minha ética não me permite gravar tudo e mais alguma coisa só por uma questão de urgência. Isto é: o meu trabalho tem âncora na antropologia e etnografia, mas como é um trabalho artístico — sempre o defini assim desde 2008 — a urgência é relativa. Por exemplo: em 2017, o fogo foi em Outubro e eu só gravei em Fevereiro, quando percebi que as ovelhas já tinham pasto para comer. Eu não gravei rigorosamente nada entre Outubro de 2017 e Fevereiro de 2018. Este ano, porém, como estava na minha aldeia, Alvoco das Várzeas, liguei o gravador e gravei uma espécie de cenário de guerra — helicópteros, fogo, pessoas a gritar… Fi-lo de uma forma não urgente, mas mais numa forma de recolher aquele pedaço de tempo para que, hoje ou amanhã, nós possamos rever aquilo que aconteceu e alterar consciências e modos de trabalhar a paisagem da floresta também através do som. Muito do trabalho que eu faço acaba por ser um trabalho político. É um chamamento. Eu tenho-o com um trabalho artístico e ele no fundo é isso mesmo, porque eu posso usar aqueles sons em concerto e alterá-los como eu quiser. Mas enquanto arquivista e documentarista, importa-me também chamar a atenção para essas transformações que tu muito bem referiste. Evidentemente, estou a tocar em alguma ferida. E espero que isso possa fazer reflectir, para que quem escuta e tem poder de decisão possa realmente fazer algo.

Virando agora a conversa para o Miguel. Nós pensamos nos músicos como constantes emissores — emitem notas e as suas obras para os ouvidos do público. E esquecemo-nos de que os músicos também são receptores e ouvintes eles próprios. Este trabalho com o Luís obriga-te a essa capacidade de conjugar a fala — através do teu instrumento e também da tua voz — com a escuta. A escuta das paisagens sonoras é muito importante neste projecto não é?

[Miguel Calhaz] É extremamente importante. E é um trabalho que já vinha de trás. Eu também vivo numa zona rural, em Pedrógão, que também foi muito afectado por fogos. Tenho uma horta e gosto de ir cultivar as minhas coisas. E no meu caminho para a horta, na minha velha Datsun 1981, gosto de ir a ouvir o motor dela e tudo o que se passa ali à volta, como os pássaros. Eu faço esse exercício de escuta há muito tempo, ainda antes de ter a horta. É o ir fazer caminhadas no pinhal, muitas vezes a escutar apenas o vento e a dança das árvores.

É curioso estares a dizer isso, porque ainda esta semana faleceu o Hermeto Pascoal. Ele dizia que nasceu numa zona rural onde não existia electricidade e que, por isso, a primeira música que escutou foi a música dos pássaros, dos rios, do vento, etc. Ele dizia que esses foram os seus primeiros mestres musicais — a própria natureza.

[Miguel Calhaz] É verdade. Eu cresci sempre rodeado de natureza e já desde miúdo tinha esta queda para a música. Andava sempre a fazer sons — a bater com pedras e tudo o que era objecto. De uma forma natural, sempre tive essa ligação ao estímulo auditivo. Ouvia muita música, lógico, mas gostava muito dos sons da natureza, dos pássaros — há até alguns pássaros que eu consigo identificar.

Em que lugar é que colocas a tua música? Em tempos recentes, alguns dos meus discos de jazz favoritos vêm de lugares onde tradições fundas locais se fundem com esta invenção americana a que chamamos jazz. Elas ajudam a tornar o jazz numa coisa mais universal, por um lado, e local, por outro. Estou a lembrar-me das coisas que se estão a fazer, por exemplo, na África do Sul ou no Brasil, em que misturam os modos do jazz com o folclore local. Eu sinto que isso também existe na tua música — que ela também bebe das raízes tradicionais e populares e se mistura com a tua escola do jazz. Onde é que te vês neste mapa complexo?

[Miguel Calhaz] É uma questão muito interessante. A música improvisada é muito mais antiga do que o jazz. O que o jazz fez foi transformar isso numa ferramenta espantosa e fantástica que nos consegue fazer quase radiografias da alma [risos]. Mas eu creio que o jazz, na sua génese, é já um congregador de muitas influências. Tens as as raízes africanas que originaram no gospel e nos blues que depois se fundiram com a erudição europeia. No meu caso, desde pequeno que não me imagino a fazer outra coisa. Ainda há dias morreu o meu primeiro mestre, da banda filarmónica aqui da Sertã, que era a única oportunidade que nós tínhamos de aprender. Era o senhor Laurenao. Foi ele quem me ensinou as primeiras notas musicais. Eu comecei primeiro a tocar trompete e lembro-me perfeitamente de reconhecer a utilidade daqueles sons, que podia utilizá-los para depois fazer coisas que me saiam da cabeça, indo além daquilo que já lá estava. Eu podia tocar uma escala, mas eu sentia a obrigação de ir além, de ter essa liberdade criativa. Fui evoluindo, passei pela guitarra e depois fui para o baixo, mas sempre fisgado no contrabaixo, porque era aquele instrumento pelo qual eu tinha uma admiração enorme. Quando me apanhei com um nas mãos e descobri a panóplia de sons e possibilidades que aquele instrumento oferecia… Aquilo ia para além do jazz ou da música clássica. Eu comecei por regressar às nossas raízes e fui além do José Mário Branco, do Zeca Afonso, o Fausto e do Adriano. Eu fui à música tradicional “das velhotas”. Fui às nossas raízes. Fui ouvir as coisas da Brigada, a Catarina Chitas… Aquilo batia-me muito fundo e dizia-me muito. “Isto é o que eu ouço desde que nasci. Isto é a minha raiz.”

Apresentaram este projecto em Gondramaz e agora vão apresentá-lo numa estação de comboios naquela que é uma das maiores cidades do país. Passam de um meio rural para outro profundamente urbano. Isso altera alguma coisa na vossa apresentação? Que tipo de paisagens sonoras vão ser conjugadas com o contrabaixo?

[Luís Antero] Alvoco das Várzeas é a última das freguesias do concelho de Coimbra — ou a primeira, de quem vem da Covilhã. Quando era miúdo, todos os dias tinha autocarro para Coimbra, e eu costumava ficar na Estação Nova, ao pé do Café Internacional, onde o meu pai chegou a trabalhar em décadas anteriores. Eu era deixado ali aos cuidados da minha madrinha e entrava num fórum a céu aberto que se chamava Baixa de Coimbra, onde tínhamos de andar pela mão, porque eram milhares de pessoas a percorrer aquelas lojas, aquelas casas, aquelas tascas, aqueles cafés… Tudo isso mudou, como sabem. Portanto, o concerto vai partir de um Arquivo Sonoro do Centro Histórico de Coimbra, que eu realizei, a convida do JACC, em 2013. Essa será a base do concerto. Principalmente as gravações que foram feitas na Baixinha — da Praça Velha ao Mondego. São essas as paisagens sonoras que eu vou introduzir neste concerto. O concerto em si, nenhum de nós sabe como vai ser, mas estas são as bases das quais vamos partir. Depois disso foram criados projectos de serviço educativo que me permitiram fazer passeios sonoros com cidadãos de Coimbra — crianças, jovens, adultos e idosos — durante os quais gravámos novas paisagens sonoras. Ou seja, fomos acompanhando a transformação da Baixa e da Baixinha ao longo de 2013 até ao presente. Vai ser essa a malha da paisagem sonora que, ao vivo, por mim é transformada e manipulada. Depois elas vão estar a dialogar com o contrabaixo do Miguel. Há ainda uma surpresa, que é a adição de novas paisagens sonoras propositadamente gravadas na Estação Nova de Coimbra, agora refuncionalizada.

Que gravador mais usas para captar todas essas coisas?

[Luís Antero] Uso um gravador muito bonito de uma marca americana que ainda não tem representação cá em Portugal. Mas as gravações para o Arquivo Sonoro no Centro Histórico de Coimbra foram feitas com este Roland R-26, que uso ligado a um microfone shotgun da Audio-Technica.


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