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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2022

A ligação entre a música, a temática de filmes do Sonica Ekrano e a saúde mental.

ANONYMOUS CLUB: a inevitabilidade da solidão

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2022

Melódico, melancólico, (retro)spectivo, repetitivo, especular, solipsista. O documentário Anonymous Club convida o espectador a envolver-se num contacto íntimo com o mundo interno de Courtney Barnett

Com recurso a um ambiente que lembra as filmagens de 16mm, este apresenta uma viagem marcada pela ambivalência e os paradoxos de uma identidade deformada. Danny Cohen mantém insistentemente em segundo plano um ambiente povoado pela alegria jovial de um tempo perdido que contrasta com um tom depressivo e cinzento. Cheiro a pó, a cabedal, a tabaco, a tinta, a madeira e a metal enferrujado. Tons pastel, gastos, castanho, verde ferrugem e vermelho. Um filme sobre a inevitabilidade da solidão. Solidão incorruptível. Imagens de festa explosiva contrastam com o arrastamento e suspensão do tempo. Por vezes acompanhado de acordes doces, harmonia aconchegante, melodia triste. Noutras, o choro primordial, a violência e o caos. 

Em câmara lenta, observa-se o que o movimento rápido ocultava, o desejo de deixar de se ser só, e a interdição pela castração do real. Um interjogo constante de paradoxos e contradições: uma mulher destacada em palco (sozinha) — milhares de pessoas em transe fraterno; fogo de artificio, movimento, alegria e agitação – solidão, desespero e ilusão; uma mulher, sozinha, em primeiro plano — a multidão que se acumula na outra margem da passadeira.

Diz Courtney: “por vezes penso demasiado antes de falar”. Porquê? Que angústia é esta que, perante todo o universo de possibilidades emergentes, se manifesta pela via de uma indecisão acanhada? Porque é que alguns parecem não se atrever a colocar em palavras o livre fluxo do pensamento? 

Lança-se então a pergunta implícita: o que poderíamos dizer se pensássemos no verdadeiro significado do que estamos a dizer? Pior sorte. O que poderá o outro inferir do meu desejo se eu expressar os diferentes sentidos da minha identidade? 

A descida à ambivalência, o jogo dos contrários, um certo recurso ao áspero, ao azedo, ao punk, como condimento para a transformação do sabor insípido, inodoro e incolor da solidão numa conversão sob o signo da violência e da revolta. O movimento “libertador, energético e vivo” enquanto medida contrafóbica face ao vazio, ao medo, à falha, à falta.  

Pairam dúvidas: como é que me apresento ao mundo? O que é que o mundo vê de mim? De que forma sou ouvido? As respostas não se apresentam, apenas a ruminação depressiva, quasi-delirante, de culpa, ruína e hipocondria.

O erro de Courtneyª: manter a crença de que o mundo interno só pode ter um sentido. E não ser capaz de promover o entendimento, ou a integração e contenção, da natureza n-dimensional do psiquismo. 

A noção de que, paradoxalmente, somos todas as nossas contradições. Tudo, ao mesmo tempo, em simultâneo. Todas as contradições, uma vez isoladas, nada são; logo, o sentido só pode ser resgatado através da integração da parcela na produção de uma totalidade. Se se despedaça em parcelas, então, foge-se ao total. Algures presos, numa zona de intersecção, suspensos num impasse produzido pela oscilação entre a posição esquizoparanóide e a posição depressiva descritas por Melanie Kleinº.

Qual a mensagem latente do filme? A dúvida sobre o que se é, a partir do referencial exterior do desejo do Outro, e a culpa de se ter ganho esse desejo. Mostrando um espaço mental que se constitui algures entre o ataque e a paranóia, a culpa e a submissão, preso no campo lamacento da parcialidade, obsessivamente a juntar cacos, movido pela demanda por uma totalidade narcísica, que nunca mais chega. À procura do paraíso perdido, atraído pelo chamamento da pulsão de morte: “i wanna feel, wanna feel, wanna; i wanna die, wanna die, wanna die”, para o retorno a um estado de não-existência. O que seria de Courtney sem o poder do engenho criativo? E o que seria da sua arte sem as angustiantes dúvidas com que se debate? Este, é o custo da produção artística.  


* Psicólogo, presidente da Associação de Psicologia e Desenvolvimento Comunitário e músico.

ª A proposta do presente texto é interpretar possíveis significados latentes do documentário para chegarmos a um campo de entendimento partilhado e que permita uma reflexão sobre a natureza do funcionamento mental. Não é o nosso objectivo personalizar o caso de Courtney ou de iniciar uma psicanálise selvagem. De tal modo que aqui o nome de Courtney deve ler-se enquanto referencial para refletirmos sobre as manifestações da depressividade e da solidão. Isto é, mais enquanto Courtney personagem de um documentário e menos como Courtney pessoa.

º Proposta de Melanie Klein que procura superar as noções mais fixas de estágio psicossexual preconizadas por Freud. A posição esquizoparanóide corresponde à primeira etapa do desenvolvimento infantil. É descrito como uma posição psíquica caótica, onde, perante a emergência de angústias de natureza persecutória (paranóides), a criança procura recuperar um estado de controlo omnipotente através da parcialização, fragmentação e do ataque destrutivo contidos na fantasia inconsciente. A posição depressiva corresponderia à culpa sentida pelos ataques destrutivos, e a tentativa de recuperação e reparação da totalidade.

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