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Publicado a: 22/06/2018

Animal Collective no Capitólio: vozes xamânicas chegam aos seus

Publicado a: 22/06/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Vera Marmelo

O espaço de concertos da Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, seria naturalmente diminuto para receber Noah Lennox, aka Panda Bear, e David Portner, ou Avey Tare se preferirem, — os Animal Collective — e por isso a decisão de apresentar esta noite dedicada a Sung Tongs no Capitólio, Parque Mayer, foi mais do que acertada tendo em conta que a sala se encontrava com a lotação esgotada.

Eric Copeland, homem dos Black Dice que é igualmente parceiro de Avey Tare noutras aventuras, cumpriu a dupla função de servir de preâmbulo para a apresentação forte da noite e de se posicionar por trás da mesa de mistura durante a actuação da dupla gerindo o som que emanava do palco e que nos envolveu a todos.

Na sua prestação como DJ, Copeland — pelo menos nos 20 minutos finais — enveredou por uma sonoridade bastante particular, a um tempo algo industrial, mas também com laivos tropicais, como se Sheffield ou Detroit fossem bairros banhados pelo Amazonas e produzissem um som tão metálico quanto luminoso. Se a ideia era criar um contraste, funcionou na perfeição.

 



Num palco ladeado por dois imponentes murais (de que era possível adquirir reproduções na bem recheada banca de merchandising), Noah e David sentaram-se lado a lado e entregaram-nos a versão 2018 de um álbum mágico saído há quase década e meia. Dois microfones para cada, certamente tratados com diferentes baterias de efeitos, guitarras acústicas e um timbalão de chão e, aparentemente, mais nada. Em palco, a opção parece ser a de revisitar o momento em que as canções foram criadas, em conjunto, numa fria sala de Baltimore, e não, necessariamente, o passo seguinte de adição de elementos electrónicos subtis que no disco sublinhavam a condição psicadélica da música. Vozes, portanto, devidamente amplificadas e processadas, guitarras livres e hipnoticamente repetitivas e apontamentos de percussão para centrarem o pulso de alguns momentos. E memórias, claro.

Este tipo de espectáculo apresenta sempre um problema fundamental que diferentes artistas procuram resolver de diferentes maneiras: como revisitar um momento particular de uma carreira se as pessoas que a isso se propõem são obviamente diferentes? Mais Noah e David, neste caso, menos Panda e Avey, poderá presumir-se.

 



Curiosamente, nos últimos dias, Lisboa recebeu um conjunto de concertos de naturezas e dimensões muito diferentes em que a ideia de revisitação do passado é a mais premente: Telectu no Maria Matos, Pedrinho no Musicbox ou os LCD Soundsystem no Coliseu dos Recreios — tal como os Animal Collective agora no Capitólio — procuraram todos ângulos especiais para esses encontros com a memória. Em entrevista ao Rimas e Batidas, Vítor Rua enunciou a sua solução: encarar a música dos Telectu como um reportório que, em teoria pelo menos, pode ser executado pelas duas pessoas que pisaram o palco do Maria Matos ou por outras equipadas com as mesmas ferramentas e guiadas pelas mesmas partituras. Pedrinho, no Musicbox, tomou Aleluia, disco com peso de quatro décadas que agora se reencontrou com o presente, como a matéria dançante que de facto é e assumiu que nada mudou na forma de executar a música e que o que se transformou foi a plateia à sua frente. E a banda de James Murphy, o caso mais “visível” de todos, terá porventura procurado disfarçar de pertinência presente — não esquecer American Dream — o que é, no fundo, uma tentativa de recuperar a vibração em tempos sentida quando a escala era outra e o peso dos anos nos ombros ainda não seria tão dramático (o concerto foi bom, muito bom até, mas também não deixou de impor a sensação de que para a banda os últimos 10 anos bem que podiam não ter acontecido).

E os Animal Collective? Na verdade, o grupo de Baltimore foi sempre uma entidade fluída e livre, feita de diferentes dinâmicas interpessoais em diferentes momentos da carreira. Em Sung Tongs foram apenas Panda Bear e Avey Tare mais um conjunto de microfones e guitarras, de percussões e gravadores e samplers e de vontades e ideias. É óbvio que o mundo mudou, Noah e David mudaram, o seu público mudou também, mas aquelas canções não deixaram de ficar preservadas no âmbar de um conjunto de memórias diversas (de quem as executou, de quem as ouviu e amou até à exaustão, de quem sobre elas escreveu…). Foram também essas memórias que encheram ontem o Capitólio.

Mais do que em qualquer um dos espectáculos anteriormente citados (dos Telectu, Pedrinho e LCD…), no meu caso particular foi no concerto dos Animal Collective que mais caras conhecidas vislumbrei entre o público. Não caras do tempo em que estas canções primeiramente se fizeram ouvir (em 2004 eu habitava outra galáxia e a minha ZdB era outra…), mas caras de agora, o que pode ser um pormenor que oferece uma chave interessante à pergunta colocada anteriormente — “como revisitar um momento particular de uma carreira se as pessoas que a isso se propõem são obviamente diferentes?” É que, afinal de contas, se calhar as pessoas não são tão diferentes assim: continuam a fazer, a criar e a pensar, continuam a aparecer a fazer mexer e a inventar e talvez por isso dar um salto de 15 anos no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio não é tanto uma questão de apelar a um qualquer lado adormecido de uma pessoa, de um público ou de uma geração, mas simplesmente algo tão benigno quanto “apetece-me isto outra vez”. A Noah e David apetece-lhes voltar a tocar aquelas canções e a um significativo número de pessoas apetece-lhes voltar a ouvi-las e talvez até porque, na verdade, nunca o deixaram de fazer…

Nos seus uníssonos e harmonias, nos drones que se erguiam do malhar incessante nas cordas das guitarras, nas frases que ainda continuam a soar a manifestos — “You don’t have to go to college” soa sempre irónico quando se solta das gargantas de gente que quase de certeza tem algum tipo de educação superior… –, nas abstracções harmónicas que conjuram e naqueles pulsares primitivos que embalam alguns dos momentos há algo de xamânico, algo de ancestral que nos tempos digitais em que habitamos tem o condão de soar como um bálsamo, como um importante aviso de que existe afinal de contas outro caminho. Talvez Noah e David, ou Panda e Avey, melhor dizendo, sejam ainda os mesmos miúdos cheios de frio de Baltimore, deslumbrados pelo desconhecido, pela capacidade da música abrir portais para zonas remotas da consciência ligando-nos a qualquer coisa de essencial e primevo. Não sei se foi impressão, mas houve um momento em “Kids on Holiday” em que senti os meus pés a descolarem-se do chão e pareceu-me ver toda a gente a flutuar um bocadinho… Se a música destes senhores continua a possuir essa capacidade, então, definitivamente, talvez nada de realmente importante tenha mudado e estas canções continuem, em 2018 como em 2004, a ser pedaços de uma sabedoria qualquer essencial que nos liga ao que importa: uns aos outros, claro, todos ao cosmos, talvez?

 


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