Ver cinco mulheres em palco — simultaneamente! — num festival de jazz não é coisa comum. E ver cinco mulheres em palco com perfeito domínio dos seus instrumentos a assinarem a mais entusiasmante actuação de todo o evento será coisa ainda mais rara, mas, o mais extraordinário de tudo, na verdade, é que após a actuação do supergrupo formado pela pianista Renee Rosnes, pela trompetista Ingrid Jensen, pela saxofonista Nicole Glover, pela contrabaixista Noriko Ueda e pela baterista Allison Miller, as Artemis, o que as pessoas comentavam era a superior qualidade musical com que tinham acabado de ser brindadas, não o facto de ter sido uma banda feminina responsável por tal proeza. As Artemis estrearam-se em Portugal no passado sábado no AngraJazz, em Angra do Heroísmo, fechando da melhor maneira possível o festival açoriano antes de passarem igualmente pelo Porto, para uma actuação na Casa da Música, e pelo festival de jazz do Seixal.
A derradeira jornada do AngraJazz começou por levar ao palco do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo o quarteto do saxofonista norte-americano David Murray, figura maior do jazz contemporâneo que, aos 70 anos, continua a afirmar-se pela intensidade criativa e pela vitalidade da sua linguagem. Acompanhado por três músicos de uma geração mais jovem — a pianista espanhola Marta Sánchez, o contrabaixista norte-americano Luke Stewart e o baterista Russell Carter — Murray apresentou um concerto que confirmou o fulgor desta formação, já registado em disco em Francesca (Intakt, 2020) e no recente Birdly Serenade (Impulse!, 2025).
Logo no início destacou-se a força vibrante do saxofone tenor de Murray, rapidamente contrabalançada pela exposição individual dos restantes músicos. Marta Sánchez, com um pianismo imaginativo e rigoroso, revelou-se parceira de igual para igual, enquanto Stewart impressionou pela capacidade de extrair um som muito pessoal de um contrabaixo que tinha sido usado por diferentes intérpretes ao longo do festival, exibindo um ataque feroz e incisivo. Carter, discreto, mas seguro, manteve a pulsação com clareza e demonstrou grande atenção às dinâmicas colectivas. O repertório percorreu momentos de diferentes fases e registos: “Come and Go”, do primeiro disco do quarteto; “Anita et Anita”, recuperado do percurso mais antigo de Murray, com colorações latinas bem gizadas; e “Song of the World”, que permitiu a Sánchez abrir com uma introdução de grande densidade lírica antes de um Murray incandescente na exploração dos agudos. A variedade rítmica foi outro traço marcante, oscilando entre ecos de bolero e andamentos mais próximos do bop energético com tudo o que se possa imaginar pelo meio.
Se o saxofone tenor continua a ser a assinatura de Murray, o recurso ao clarinete baixo trouxe outra cor ao concerto, com um som mais rítmico e percussivo, expandindo a paleta tímbrica do grupo. Houve, contudo, um momento de alguma rutura: Francesca Cinelli, companheira do saxofonista e inspiração do álbum Francesca, subiu ao palco para interpretar “Oiseau de paradis” e “Bahia”. A sua atitude performativa, contudo, soou algo deslocada face à desenvoltura do quarteto, deixando a sensação de que a música perdeu intensidade nesse segmento. Recuperado o fôlego, o concerto terminou em alta com “Africa”, peça de Ishmael Reed que remete para a colaboração de Murray com os Gwo Ka Masters e Taj Mahal (lançada em 2009), e que foi marcada por um momento de spoken word do saxofonista, evocando a cadência dos Last Poets e sublinhando a dimensão política da sua música com evocação do nome do poeta, escritor e declamador Amiri Baraka.
No balanço final, o concerto confirmou o vigor de David Murray, capaz de manter um som robusto e intenso no saxofone, de acrescentar nuances expressivas através do clarinete baixo e, sobretudo, de dialogar com cumplicidade com músicos mais jovens que trazem uma refrescante dinâmica ao som do quarteto. Sánchez, Stewart e Carter não se limitaram a acompanhar, antes afirmaram-se como interlocutores atentos e criativos, cada um com voz própria. Apesar da fragilidade momentânea trazida pela incursão vocal, o concerto deixou a marca de uma música em combustão permanente, capaz de cruzar tradições, geografias e linguagens. Os generosos aplausos foram mais do que merecidos.
Depois do arranque de noite com o quarteto de David Murray, o AngraJazz encerrou a sua edição com chave de ouro, apresentando pela primeira vez a Portugal o quinteto norte-americano Artemis. O grupo, que reúne algumas das mais destacadas instrumentistas do jazz contemporâneo, apresentou-se no âmbito de uma digressão europeia de promoção do mais recente álbum Arboresque (Blue Note) e confirmou no palco açoriano aquilo que os discos e a crítica internacional já apontavam: uma banda coesa, inventiva e de enorme consistência musical.
O concerto abriu com “Galapagos”, referência a um outro arquipélago que adquiriu especial ressonância num lugar que, como Renee fez questão de sublinhar, é “especial” e de beleza singular. A entrada deu-se em modo algo exploratório, com as linhas individuais e colectivas a desenvolverem-se em modo progressivo até uma inevitável explosão eu ditou o tom de toda a performance. Seguiu-se um alinhamento centrado no novo disco, com “Komorebi” — título japonês que descreve a luz que atravessa as folhas das árvores —, “Olive Branch”, “Petrichor” (o cheiro da terra molhada depois da chuva), “Little Cranberry” e a leitura de “What the World Needs Now”, relembrando a absoluta mestria melódica de Burt Bacharach que o grupo sublinhou com um imaginativo arranjo. Houve ainda espaço para um irresistível Monk, “Hackensack”, onde o quinteto explorou o gosto pelo risco e pelo humor implícito do grande mestre pianista e compositor.
Apesar da qualidade individual — com destaque para os solos de Rosnes e Jensen, sempre imaginativos, pejados de surpreendentes opções estilísticas —, o que mais sobressaiu foi a dinâmica colectiva, resultado de muito trabalho e de uma desmedida confiança mútua. A secção rítmica, com Noriko Ueda e Allison Miller, deu corpo a um dos momentos mais empolgantes do festival: a contrabaixista firme, inventiva, sempre a dialogar com precisão, e a baterista a demonstrar uma afinação exemplar do instrumento, com desenvoltura nos pratos e uma rara sensibilidade harmónica nas respostas aos solos das companheiras. Entre piano e bateria, ou entre bateria e contrabaixo, os diálogos foram intensos, plenos de energia, imaginação e destreza, confirmando a vitalidade de uma banda que não vive apenas da soma das partes.
O final trouxe um tributo a Wayne Shorter com uma interpretação vibrante de “Footprints”, tema também incluído em Arboresque. Foi a despedida perfeita, selando uma ligação calorosa com o público, que respondeu com entusiasmo a uma actuação que ficará na memória do festival.
Se, no concerto anterior, David Murray tinha representado a Impulse! com o seu quarteto e o álbum Birdly Serenade, a presença de Artemis trouxe ao palco a Blue Note. Foi um encontro simbólico entre duas editoras históricas, guardiãs de parte fundamental da memória do jazz, mas que aqui provaram estar ainda de pés bem fincados no presente mais entusiasmante. Em Angra, Murray e Artemis confirmaram-se como duas faces da vitalidade actual do jazz: um veterano que continua a reinventar-se e um quinteto de superlativas instrumentistas que projecta o futuro com solidez e brilho.