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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2025

A estreia nacional da cantora foi um dos momentos altos da edição deste ano.

AngraJazz’25 — dia 2: um triunfo chamado Ekep Nkwelle

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2025

Em Jazz Is, o autor americano Nat Hentoff cita o pianista John Lewis, lendário membro de ensembles comandados por Lester Young ou Dizzy Gillespie, e a quem perguntaram se era possível notar musicalmente o swing numa pauta: “Não. O swing é musicalidade elevada”, afiançou o pianista numa aula de estudos avançados de improvisação jazz na prestigiada universidade de Harvard. “É como o Serkin a tocar uma sonata de Beethoven. Ele conhece todas as notas, mas ele também sabe o que mais está lá”. O sábio John Lewis referia-se à matéria invisível de que os grandes compositores se socorrem nas suas obras, as nuances que não são possíveis de inscrever numa pauta, mas que quem muito estuda — mergulhando analiticamente na obra desses génios, analisando as suas biografias, compreendendo o espírito da época em que viveram e criaram — consegue alcançar. Essas pessoas sabem bem o que mais está lá. E anteontem, a coroar a segunda jornada do AngraJazz’25, num lotadíssimo Centro Cultural e de Congressos, em Angra do Heroísmo, a cantora Ekep Nkwelle, do alto da sua vibrante juventude, deixou muito claro que realmente sabe muito bem o que mais está lá, que reconhece essa invisível filigrana que envolve marcos importantes criados ou refinados por alguns dos maiores nomes da história do jazz, de Duke Ellington a Art Blakey, de Sarah Vaughan a Abbey Lincoln. O facto de ser a sua primeira apresentação no nosso país tornou a ocasião ainda mais especial.

Filha de pais camaroneses e nascida em Washington, D.C., Ekep Nkwelle cresceu entre duas heranças culturais que cedo moldaram a sua identidade artística. O pai, baterista, abriu-lhe as portas do jazz e, desde tenra idade, habituou-a a ouvir diferentes linguagens musicais. Formou-se na prestigiada Duke Ellington School of the Arts, onde iniciou o percurso no canto clássico, mas foi ao descobrir Sarah Vaughan que decidiu trocar a ópera pelo jazz. Seguiram-se os estudos na Howard University, onde, além da prática vocal, mergulhou na história e na particularidade cultural do género, e, mais tarde, ingressou num mestrado na Juilliard School, onde angariou uma sólida bagagem técnica e conceptual.

Apsar de contar apenas 26 anos, Nkwelle já pisou alguns dos palcos mais emblemáticos do mundo, do Radio City Music Hall — em colaboração com o pianista clássico Lang Lang — ao Kennedy Center, Lincoln Center e Library of Congress, passando por festivais de referência como Newport, Montclair, Hudson e o DC Jazz Festival. Em 2022, conquistou nova visibilidade ao interpretar Timeless Portraits and Dreams, de Geri Allen, num dos mais celebrados Tiny Desk Concerts da NPR. O reconhecimento institucional não tardou: em 2023 recebeu o Juilliard Career Advancement Grant, distinção entregue a artistas que se destacam tanto pelo talento como pelo carácter — uma nomeação feita pelo próprio Wynton Marsalis. Pelo caminho, integrou ainda o Woodshed Network, residência artística criada por Dee Dee Bridgewater para promover o papel das mulheres no jazz. É, pois, natural que Ekep Nkwelle saiba bem o que “mais está lá”.

O dia começou mais cedo, na livraria Lar Doce Livro, que se encheu de gente para escutar o quarteto de João Ribeiro, o baterista-cantor que se fez ladear por Micaela Matos no saxofone, Paulo Cunha no contrabaixo e Antonella Barletta no piano. Como já tinha demonstrado com a Orquestra AngraJazz, Ribeiro é um dedicado estudante do Great American Songbook e, no mais informal ambiente da livraria, foi entregando os seus firmes e inventivos pulsos e a sua distinta voz a clássicos como “Foggy Day”, “A Night in Tunisia”, “Misty”, “I Thought About You”, “Almost Like Being in Love”, “Soft As In a Morning Sunrise” ou “My Funny Valentine”, tesouros universais de fôlego eterno a que o quarteto se entregou com leveza, com João a comandar o quarteto com mãos seguras e ágeis, decidindo estruturas e solos no momento, forma clara de exercitar o seu músculo jazz.

A Ribeiro bastou-lhe uma tarola e um par de escovas, mais um microfone, um aparato minimal de que, no entanto, extraiu swing refinado, com os seus breaks e ataques a apresentarem-se com elevado grau de fluidez e criatividade rítmica. A sua voz, por outro lado, é redonda, bem colocada, doce e muito musical, sendo apropriada ao reportório que canta com dicção clara e sotaque mais do que credível. Tudo aponta para que João Ribeiro também esteja no bom caminho para poder saber “o que mais está lá”. Os seus companheiros cumpriram a missão, solaram com alguma segurança, sobretudo a pianista Antonella Barletta, socorrendo-se de toda a experiência que têm acumulado como membro da Orquestra AngraJazz.

Depois de jantar foi então tempo de rumar ao Centro Cultural e de Congressos de Angra para mais uma dupla actuação. A abrir a noite apresentou-se o Samuel Lercher Trio, ensemble dirigido pelo pianista franco-luso em que militam ainda o contrabaixista André Rosinha e o baterista Bruno Pedroso. O trio de piano é um dos grandes pilares do jazz, uma proposta distinta que foi elevada a píncaros criativos por gigantes tão singulares quanto Thelonious Monk, Bill Evans ou Keith Jarrett, para mencionar apenas alguns dos mais recorrentes exemplos dessa particular forma de arte. Para encontrar o seu próprio lugar nessa tão vasta e rica tradição, Samuel Lercher adiciona, além do certamente dedicado estudo de todos esses marcos mencionados, um percurso académico nos domínios da música clássica que lhe permitem convocar para o seu pianismo um rigor afinado com o mergulho na obra de mestres como Chopin ou Debussy.

Com Rosinha e Pedroso, Samuel Lercher tem já um assinalável percurso, tendo ao longo da última década lançado três registos com esta formação, incluindo o recente Fractal que serviu de ponto de partida e de chegada para uma actuação em que também se antecipou um futuro álbum — que deverá levar o título de Life Is An Epic Journey, como o próprio pianista revelou — e que até acomodou uma original leitura do standard “All The Things You are” — “não resisti”, justificou. No material inédito, houve espaço para uma peça que parte de “The Little Shepherd”, excerto da suite The Children’s Corner de Claude Debussy, com que Samuel Lercher mostrou de forma clara a sua íntima relação com o cânone erudito.

O mais importante, no entanto, é o som do trio, que resulta de um conhecimento mútuo profundo, com Pedroso a ser a mais discreta das presenças, mas ainda assim uma base estruturante para o colectivo, e Rosinha a ser um solista seguro, com um tom muito claro no seu instrumento, tanto nos dedilhados como nas passagens com arco. 

Em material de Fractal, como “Simon’s Groove” e “P’ti Voyou”, peças dedicadas aos filhos do pianista, há uma atenção particular a diferentes dinâmicas rítmicas, com sobreposição de tempos e andamentos de múltiplas velocidades, arriscando mesmo na primeira das peças uma síncope quase hip hop, o que resulta numa música de alta densidade técnica que lembra um pouco os caminhos trilhados por Tigran Hamasyan. Aliás, a sua belíssima versão de “Or’anda Desanda”, um tema popular da zona de Vinhais, como nos disse, espelha as tangentes que o já mencionado pianista arménio faz ao folclore do seu próprio país. Samuel Lercher mostrou-se comunicativo, visivelmente feliz por estar a apresentar a sua música e muito solto na sua performance, tendo mais do que justificado os generosos aplausos com que foi premiado.



Mas a estreia em solo nacional da prodigiosa Ekep Nkwelle foi, de facto, o ponto alto da noite. Com uma surpreendente Sequoia “REDWOOD” Snyder no piano (tal como a líder, de Washington; e com apenas 25 anos), uma igualmente sólida Liany Mateo no contrabaixo — uma nativa de Nova Jérsia que acaba de ser apontada como um dos 25 nomes para o futuro pela DownBeat — e um poderoso Anwar Marshall na bateria, um dos pilares da dinâmica cena presente de Filadélfia, este quarteto mostrou-se com uma desenvoltura e profissionalismo a toda a prova.

Nkwelle claramente nasceu para estar em palco: é uma comunicadora impressionante, contadora de histórias envolventes — a dada altura deu-nos um relato da sua família e da complexa relação que os pais estabeleceram com a prática cristã já em solo americano, doseando seriedade e humor com precisão de oradora experimentada —, com uma imponente presença de palco e uma prodigiosa capacidade performática. Dona de uma voz impressionante, capaz de graves profundos e de agudos de recorte perfeito, com uma dicção clara como a mais pura das águas, Nkwelle possui um instrumento de afinação exacta, moldado e educado no estudo de grandes mestres, mas aplicado na performance com inventiva ousadia. A herança cultural africana, por um lado, e a prática religiosa na igreja pentecostal com que os pais resolveram a distância entre o catolicismo e o protestantismo, por outro, em combinação com os seus avançados estudos de jazz fazem dela uma cantora de recursos invulgares, capacidade que pôs à prova na interpretação de peças do grande cancioneiro americano como “Never Will I Marry”, que Frank Loesser escreveu para o musical Greenwillow, de 1960, “Where Do I Belong”, que Sarah Vaughan gravou, ou “I Know Why The Caged Bird Sings”, interpretada por Abbey Lincoln e que Nkwelle entrelaçou com o hino gospel “His Eye is on the Sparrow” de forma absolutamente arrebatadora. O quarteto passou ainda por “Good Morning Heartache”, a que a eterna Billie Holiday tão bem se entregou, e por “Amazon Farewell (Curumim)” do brasileiro Djavan, ofereceu uma vibrante leitura de “Moanin’” de Art Blakey e outra apaixonada passagem por “Come Sunday” de Duke Ellington, numa viagem panorâmica pela grande música americana efectuada com total autoridade e elegância.

Com arranjos de subtil arrojo modernista ao seu dispor, este quarteto conquistou de forma quase imediata o público que também percebeu muito bem o que estava ali, diante de si: muito mais do que as biografias explicam, certamente, porque Ekep Nkwelle é uma cantora com algo muito especial que o futuro tratará inevitavelmente de reconhecer.


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