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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 03/10/2025

E cada um de nós tem um papel a cumprir.

AngraJazz’25 — dia 1: o mundo é uma orquestra

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 03/10/2025

O mundo é uma orquestra — dissonante, atonal, caótica, com diferentes secções que se digladiam em vez de cooperarem, mas uma orquestra ainda assim. Ontem, na abertura  da 26ª edição do festival AngraJazz, em Angra do Heroísmo, Açores, ouviu-se a Orquestra AngraJazz dirigida por Pedro Moreira a mostrar ao mundo como se faz, com diferentes secções a encaixarem-se na perfeição, com balanço, swing e alma, com harmonia contagiante e energia plena. Uma orquestra pode ser um projecto de mundo, uma pequena sociedade em que cada elemento desempenha um papel em prol do colectivo, em que as diferentes vozes se harmonizam para que a canção se cumpra. E ontem, numa vénia a Frank Sinatra, a Orquestra AngraJazz, com João Ribeiro a dar voz a uma série de clássicos, ofereceu-nos um vislumbre desse mundo possível.

Angra do Heroísmo é um lugar especial, com uma luz própria e uma paisagem sempre deslumbrante. Nas horas que anteciparam o primeiro concerto do programa do festival, muito aconteceu: deu para enchermos os olhos de livros na belíssima Lar Doce Livro, uma livraria em que realmente nos sentimos em casa, para adicionarmos alguns discos à colecção com pérolas usadas encontradas na Sound Store (discos de percussão persa, de cânticos rurais da Grécia ou de Prince? Sim, por favor) e até para nos juntarmos à pequena, mas importante manifestação que na praça central da cidade apelava ao fim do genocídio na Palestina. O mundo é mesmo uma orquestra e cada um de nós tem um papel a cumprir.

Chegada a noite, o Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo apresentou-se lotado para saudar a Orquestra local. Pedro Moreira relembrou-nos que a estreia de Frank Sinatra na Europa aconteceu em Angra, há 80 anos, num outro momento da história em que o mundo estava do avesso. E depois viajou-se muito, de “All of Me” a “Come Fly With Me”, passando por “Fly Me To The Moon”, “Pennies from Heaven”, “September in the Rain”, “Learnin’ The Blues” ou “My Funny Valentine”, com Pedro Moreira a conduzir a grande banda pelas delicadas arquiteturas dos arranjos de mestres como Quincy Jones, Nelson Riddle ou Neal Hefti.

Em palco estiveram Micaela Matos, Rui Borba, Rui Melo, Mauro Lourenço e José Pedro Pires nos saxofones; Márcio Cota, Paulo Borges, Henrique Pinto e Vítor Falcão nos trompetes;  Miguel Moutinho, Manuel Almeida, Claus Nymark, Francisco Peixoto e Miguel Pinheiro nos trombones; e ainda Casimiro Ribeiro na guitarra, Antonella Barletta no piano, Paulo Cunha no contrabaixo e Nuno Pinheiro na bateria. Uma máquina bem afinada com peças muito distintas, mas todas sabedoras do seu lugar na engrenagem.

A orquestra swingou, soube transformar o Centro Cultural e de Congrssos num casino glamouroso, com João Ribeiro a brilhar com uma prestação segura e elegante, exibindo um timbre distinto, transparente, muito agradável e perfeitamente adequado ao reportório com que o Chairman of The Board conquistou a imortalidade.



Depois da muito aplaudida prestação da orquestra, houve uma pausa e a organização fez saber que um atraso num voo iria levar a que o quinteto de Stefano di Battista aterrasse na Terceira um pouco mais tarde do que o planeado. A verdade é que ninguém quis regressar a casa mais cedo, e o AngraJazz serviu também para que velhos amigos pudessem voltar a conversar, com a zona do bar a revelar-se muito concorrida.

Mas Stefano di Battista acabou mesmo por chegar, meio afogueado, dirigindo-se imediatamente ao palco com a sua equipa de imediato. Sem sequer fazer sound check, o veterano saxofonista italiano atirou-se imediatamente ao “trabalho”, puxando pelos seus galões neo bop para conduzir o seu quinteto por um set verdadeiramente electrizante, bem swingado e carregado de groove capaz de obrigar toda a gente a mexer os pés.

Acompanhado por Matteo Cutello no trompete, Andréa Rea no piano, Daniele Sorrentimo no contrabaixo e Luigi del Prete na bateria — todos feras de amplos recursos técnicos —, di Battista mostrou-se um líder generoso, bem humorado, sempre disposto a deixar os seus companheiros brilharem, com cada um a assinar solos electrizantes que arrancaram efusivos aplausos ao público presente. 

Stefano di Battista tem uma profunda ligação ao mundo do cinema, tendo trabalhado directamente com il maestro Ennio Morricone, que inclusivamente compôs para si. O saxofonista gravou Morricone Stories com o seu quarteto em 2021 e, mais recentemente, editou La Dolce Vita, trabalho em que olha para outro mestre da música para o grande ecrã, Nino Rotta. E essa paixão pelas bandas sonoras clássicas da grande cinematografia italiana ficou bem patente no concerto de ontem, sobretudo quando se atirou a “The Good, The Bad and the Ugly”, uma das mais icónicas peças do cânone musical cinematográfico, inspiradora de inúmeras versões (e a quem John Zorn dedicou o seu extraordinário “The Big Gundown”). 

Com uma banda super coesa, interdependente e super oleada, di Battista brilhou como uma estrela na passadeira vermelha e agarrou o público não apenas com a sua destreza instrumental, mas também com uma capacidade de comunicação extraordinária e um delirante sentido de humor. O fecho com uma bem energizada versão de “Sunshine of Your Love”, clássico dos Cream a que até Ella Fitzgerald deu voz, coroou uma actuação sem mácula. E mostrou que até um quinteto, um pequeno mundo, pode também ser uma orquestra.


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