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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2024

Showcase à morfologia do jazz.

AngraJazz’24 — Dia 3: infinitos tons de azul

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2024

Quantos tons pode o azul do jazz ter? Esta é uma pergunta à qual o presente não nos consegue dar resposta, dados os avanços constantes que, ano após ano, continuam a conseguir fazer gerar novas formas de comunicar este tipo de música tão belo e versátl, capaz de adoptar referências sonoras dos quatro cantos do globo sem nunca perder a sua essência. Foi dentro deste espectro que analisámos as duas prestações ao vivo que ontem (4 de Outubro) decorreram no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, no âmbito do terceiro dia do AngraJazz.

Um dos mais celebrados pianistas e compositores da actualidade, Vijay Iyer e o seu trio foram os primeiros a subir ao palco. Detentor de influências várias — desde os grandes mestres Duke Ellington e Thelinous Monk às tradições asiáticas e africanas —, o músico de Nova Iorque tem vindo a estabelecer uma frutuosa carreira que já conta com mais de duas dezenas de entradas na sua discografia, às quais se juntam ainda um infindável número de parcerias, algumas mais inesperadas do que outras, de Arooj Aftab e Kassa Overall aos Das Racist — recentemente participou num álbum de Heems, VEEN (2024), MC do colectivo de hip hop.

De todas essas experiências, sai-lhe da cabeça e das mãos uma linguagem jazz contemporânea muito assente na liberdade e completamente descolada da tradição. E sua música é idílica e transmite-nos uma sensação de paz absoluta, como se de um sonho acordado se tratasse. Mas essa característica mais contemplativa não retira em nada à componente tecnicista da sua performance. Iyer trata o piano por “tu” e este não lhe reserva quaisquer segredos. Os seus dedos deslizam pelas teclas com uma graciosidade que tanto pode ser veloz como mais lenta, só não faz disso um factor decisivo para vestir ou despir o groove das suas composições — ele está sempre lá, pode é não se mostrar de forma tão evidente, antes convidando a um mergulhar profundo pelas ondas sonoras que pairam diante nós.

Compassion é o título do seu mais recente álbum, um termo que, na verdade, poderia servir de nomenclatura para quase toda a sua obra, tal é o cariz de sensibilidade humanistica das suas harmonias e melodias. Ainda assim, faz sentido que só agora tenha escolhido tal palavra, numa altura em que a violência entre povos está constantemente na ordem do dia e é um assunto ao qual, como praticamente todos nós, Iyer não é indiferente. Uma das músicas que interpretou serviu mesmo de homenagem directa a um poeta que perdeu a vida no meio de um desses conflitos. Não seria nada mal pensado pegar neste conjunto de músicos e colocá-los a interpretar esta música numa dessas frentes de guerra, querendo acreditar na utópica ideia de que esta pode servir de catalisador para a paz e o ingrediente em falta para que cada um dos lados de uma barricada se chegue à frente para um aperto de mãos que, finalmente, coloque todo o ódio para trás das costas.

Esta serenidade e tranquilidade que nos são transmitidas pelas suas criações são também um reflexo da postura dos três músicos dispostos em palco. Sente-se a milhas o profundo entendimento do trio com a música que tinham em mãos para tocar. Há bases estabelecidas que têm de ser respeitadas, mas há também muita margem para ganhar asas e voar dali para fora por momentos, uma liberdade que nos faz sentir que cada concerto de Vijay Iyer nunca é igual ao outro. Acompanhado por dois jovens talentos — Nick Dunston (contrabaixo) e Jeremy Dutton (bateria) —, que apelidou serem “dos melhores entre os melhores da sua geração”, o pianista conduziu um concerto com poucas paragens, deixando a música “falar por si” — justificação dada para as poucas intervenções ao microfone — e permitindo que os temas fossem mutando para se colarem uns nos outros, tentando pegar nas ideias do final de cada faixa e transformá-las no que poderia sugerir o início da próxima.

Apesar do estado de espírito zen que a sua arte evoca, houve um suspense que se instalou durante largos minutos, quando Dunston “esbofeteava” as cordas do contrabaixo num transe absoluto que o levou a níveis acrescidos de entusiasmo e, por consequência, ao desprender do fio metálico com o som mais grave do seu instrumento. Durante mais de 10 minutos, todos os olhares estavam presos naquele que é o elemento com menos rodagem dentro deste trio, que se recusou a baixar os braços e a interagir com os colegas fazendo apenas recurso das outras três cordas que lhe sobravam. Sem nunca parar de emitir novos sons, procurava encaixar novamente a corda solta sempre que os movimentos lhe permitiam, de modo a não deixar a música despida dos seus graves. Um ajuste aqui, outro ali, afinar ao máximo para voltar a criar a tensão necessária para manter o fino cabo no lugar e, aos poucos, o seu contrabaixo voltava a ficar completo. Impressioante a forma como Dunston lidou com o contratempo, fazendo sempre sinal ao seu bandleader que tinha a situação sob controle. À primeira paragem que se deu após esse momento, o próprio Vijay Iyer pareceu admirado com a calma do seu pupilo — “Ele teve um contratempo mas conseguiu encontrar alternativas. Dêem-lhe uma salva de palmas”, pediu. Pareceu um daqueles jogos de futebol em que a bola se recusa a entrar na baliza, impróprios para cardíacos, com o golo a chegar apenas no último minuto da compensação. Foi belo de assistir.

Depois do conjunto do músico de ascendência indiana se retirar, foi tempo para um breve intervalo, enquanto a equipa técnica montava no palco todos os instrumentos necessários para aquela que foi uma das formações mais numerosas deste AngraJazz. São sete os “actores” que dão vida ao Ben Rosenblum Nebula Project, que foi, provavelmente, um dos maiores segredos que esta edição do festival nos reservava. O ensemble norte-americano é composto por jovens instrumentistas ainda à procura de notoriedade, mas já se apresentam como uma banda de gente crescida, sobretudo graças às composições e arranjos meticulosamente trabalhados pelo homem que lidera o septeto, Ben Rosenblum, que se desdobrou entre o piano e o acordeão de forma exemplar.

Como explicou o bandleader, o termo “nébula” é para aqui chamado como forma de justificar a vasta concrentração de ideias musicais que este vai buscar para os temas que assina. Começaram com o pitoresco “The Village Steps” (inspirado em Paris), foram até ao Brasil de Tom Jobim com um cover em forró de “Song of the Sabia”, e percorreram ainda tradições da Jamaica, Irlanda, do Oeste Africano ou dos Balcãs. Talvez por se tratar de uma receita extremamente complexa, tudo aqui é muito mais pensado, não há tanta margem surfar a onda de forma livre como tinha acontecido no espectáculo anterior, mas é esta a maneira encontrada pelos artistas em palco para que a beleza das faixas contidas em A Thousand Pebbles (2023) esteja bem vincada na performance. Todos eles têm pautas à frente e sabem precisamente como e quando têm de tocar os seus instrumentos.

Foram cerca de duas horas de actuação, nas quais, além de Rosenblum, participaram também Wayne Tucker (trompete), Rafael Rosa (guitarra), Jasper Dutz (saxofone, flauta e clarinete), Xavier Del Castillo (saxofone), Marty Jaffe (contrabaixo) e Ben Zweig (bateria). Ao microfone, Rosenblum não quis deixar de frisar o quão mágico é poder atravessar o oceano com os seus amigos para apresentar um projecto que ainda está a dar os seus primeiros passos e mostrou-se o quão encantado estava com a ilha Terceira, lembrando ainda um dos seus professores na The Juilliard School, que já lhe tinha falado de uma boa experiência passada no AngraJazz.


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