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Fotografia: Dinis Santos
Publicado a: 04/11/2022

Com propósito e intenção.

Angélica Salvi: “Habitat é composto por um conjunto de memórias sensoriais que vivem no presente”

Fotografia: Dinis Santos
Publicado a: 04/11/2022

Perguntas directas com respostas igualmente breves (mas muito focadas) de Angélica Salvi, harpista espanhola radicada no Porto que vem construindo pontes entre o experimentalismo e a pop, a improvisação e o legado da música clássica. Por alturas do lançamento do seu segundo disco a solo, Habitat, que terá apresentações ao vivo este mês em Lisboa e no Porto, conta-nos o que pretendeu criar, e como.



O que achas que o teu novo álbum a solo, Habitat, acrescentou ao teu primeiro, Phantone, em termos musicais? Há uma continuidade, um apuramento de processos? Algum corte, mudança de direcção? Como relacionas os dois discos no teu percurso como compositora e harpista?

Neste álbum quis criar canções definidas e directas (inspiradas no meu habitat), e desenvolver a parte do processamento de som para mergulhar no mundo dos pedais de efeitos mais em profundidade. No Phantone as peças são mais abertas, com espaço para improvisação e com efeitos mais subtis. Este disco, Habitat, é uma continuação da exploração da composição e dos efeitos a partir do meu instrumento.

Habitat tem igualmente como mote a memória, em toda a sua introspecção. Mas, desta vez, a nostalgia dá lugar a uma abordagem mais luminosa. Não deixo de sentir, no entanto, alguma melancolia. A memória, na música (o que se procura dizer do indizível, mas também no que respeita a construção, vocabulário, recursos, etc. – ou seja, o “fazer musical”) é toda uma questão. Como a encaras?

Habitat é composto por um conjunto de memórias sensoriais que vivem no presente, por exemplo a sensação da água na pele quando mergulhamos, a sensação de adrenalina ao montarmos um cavalo em corrida, etc. Phantone é mais uma sinestesia, uma série de cores que evocam atmosferas e paisagens abstractas passadas. Em geral, para mim, a música tem muito que ver com a memória. Todos crescemos com músicas que contam histórias ou que nos fazem lembrar pessoas ou eventos do passado, etc.

A pedra de sustentação desta música vem da tua formação e do teu trajecto clássicos, mas depois introduzes outras linguagens, picadas do que vais ouvindo em outros lados. Parece-me haver toda uma dimensão folk, bem como pop. E o teu uso de loops, repetições, elipses, remete-nos para o minimalismo. O que podes adiantar sobre a configuração destas peças?

Ouço todo o tipo de música e com certeza que tenho sido influenciada pelas minhas bandas ou artistas favoritos. Queria explorar o meu lado mais pop, mas a linguagem minimalista faz parte da minha maneira de pensar e imaginar a música. Ultimamente tenho ouvido Steve Reich, Brian Eno, Hans Otte, Erik Satie, John Cage, Ryuichi Sakamoto, Alva Noto. Provavelmente fui inspirada por alguns deles.

A electrónica tem maior presença neste disco, e tanto em termos de processamento em tempo real como de envolvências pré-preparadas. O seu uso em crescendo é algo que devemos esperar de ti daqui por diante, no sentido de uma elaboração electroacústica?

Estou muito interessada no desenvolvimento da parte do processamento do som do meu instrumento, em tempo real. O meu caminho provavelmente vai continuar a evoluir neste sentido. Gosto de explorar as possibilidades sonoras e electroacústicas da harpa, perceber quando é que o som “perde” ou não a sua identidade, e contextualizar estas sonoridades dentro de uma composição musical. Além dos pedais de efeitos, utilizo várias técnicas de preparação na harpa, tais como “alligator clips”, “slide sticks”, “coffee blenders” ou arco de violino.

Os temas são, regra geral, curtos, funcionando como impressões – e sim, noto uma influência impressionista. Instalas uma ambiência e tudo é muito direccional, sem desenvolvimentos. Quando finalmente está exposto o que pretendes, retiras-te e as peças terminam. Porquê esta opção?

Tenho claramente influências impressionistas, porque sou muito fã de Ravel e de Debussy. São compositores que exploraram a harpa de pedais em profundidade e conseguiram desenvolver uma linguagem muito interessante no instrumento. O não-desenvolvimento das minhas peças liga-se ao facto de estas serem “memórias sensoriais”. Não contam histórias propriamente, são simplesmente sensações que podem ser revividas fisicamente, em sonhos ou na imaginação.



Que papel tem, ou não, a improvisação na tua música a solo? As peças parecem muito intencionadas, muito escritas, com escolhas muito precisas de notas, sem haver nada a mais nem a menos…

No Phantone, as composições são mais abertas, com espaço para a improvisação. No Habitat são mais fechadas, só havendo improvisação na parte do processamento. Nunca tinha explorado esta maneira de compor e queria experimentar.

Este álbum e já o anterior seguem uma noção bastante específica, e grega, do que é a beleza na música. É tudo muito limpo, quase sem ruído, mesmo quando utilizas preparações e electrónicas menos paisagísticas. Podes falar-me sobre a tua concepção do que é “belo”? E do porquê do “belo”?

Para mim, o conceito de “belo” remete para a própria natureza, o planeta onde moramos, os lugares, os animais, as plantas que fazem parte do nosso Habitat. O que nós humanos estamos a destruir. Imitar a natureza, entender e perceber o seu valor através da arte, neste caso da música, pode despertar alguma consciência em todos nós, de modo a mudarmos o paradigma actual e atingirmos uma forma de vida mais sustentável.

Em linha com as práticas musicais desde o século XX, colocas o “som” em primeiro plano. E este vem com “espaço”, também em concordância com a música contemporânea e com a música experimental. Sinto que há, inclusive, uma relativização do tempo, retirando a música do mero âmbito temporal, enquanto “arte do tempo”. Comentas?

A “relativização do tempo” na música parece-me muito interessante porque tem também que ver com a nossa percepção do tempo e do nosso dia-a-dia. Às vezes o tempo passa mais rápido e outras mais devagar, de acordo com a actividade que estivermos a fazer. A utilização dos pedais de efeitos permite brincar com esse esticar, atrasar ou parar do tempo. As peças podem mudar ligeiramente e ser mais curtas ou compridas nas apresentações ao vivo, de acordo com as circunstâncias do momento, do mood, do sítio, das pessoas.

Como não podia deixar de ser, terás com certeza referências. Que outres harpistas ouves e te inspiram, seja em termos de influências ou de não quereres fazer “igual”?

Os meus harpistas de referência são Zeena Parkins, Dorothy Asby, Rodri Davies, Henriette Renié, Carlos Salzedo… Alguns deles pertencem a épocas ou séculos diferentes, mas todos eles/elas foram (e são, nos casos de Zeena e Rodri) vanguardistas.

O teu trabalho a solo tem sido muito bem recebido. Tens alguma explicação para esse facto, sendo que o cenário musical português está a seguir por outros caminhos, incluindo o do circuito das músicas criativas? Ou a explicação está em seres uma excepção?

Penso que o facto de estar a ser bem recebido se deve, em parte, ao tipo de instrumento que toco. A harpa não é um instrumento tão popular no mundo pop como a guitarra ou a bateria, e pode parecer mais exótico para o público (felizmente cada vez é mais popular). A verdade é que não tenho muita noção dos caminhos que está a seguir o cenário musical português. Conheço o que fazem os músicos que vivem no Porto, com trabalhos únicos e genuínos (João Pais Filipe, Von Calhau, Jonathan Saldanha, Alexandre Soares, Gustavo Costa, Ece Canlı…). Todas as pessoas (não só os artistas) deveriam explorar de forma introspectiva a sua genuinidade neste mundo dominado pela globalização. A variedade é sempre mais divertida e enriquecedora.


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