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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Matthias Baus
Publicado a: 19/11/2024

A obra multimédia, sensorial e imersiva que é Autopsychografia.

Andrea Conangla: Códigos da Voz na Eternidade Desconhecida

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Matthias Baus
Publicado a: 19/11/2024

[A Voz Que Desfaz o Silêncio nas Fronteiras do Ser]

Nasceu entre dois mundos, Portugal e Espanha, como quem carrega o segredo do vento que viaja sem pátria. Andrea Conangla, soprano das esferas e dos silêncios improvisados, marca o seu caminho no tempo, nas frequências da música clássica e contemporânea, onde deixa rastos que se dissolvem e renascem.

Entre paredes germânicas, sob o olhar de mestres ancestrais, aprendeu a domar o ar e a transformá-lo em eco eterno. Premiada com destinos moldados por notas e compassos, ela teceu a sua jornada, desenhando a melodia da própria existência, uma nota de cada vez.

A sua voz, expandida por técnicas que ultrapassam a carne, toca no indizível. Professora de improvisações secretas, conduziu almas ao desconhecido, despertando nelas o som que dorme. Por terras longínquas, o seu canto ecoou — de Porto a Łódź — como uma viajante temporal, sempre em busca do novo e do ancestral.

Nos palcos, onde o tempo se estilhaça e se reconstrói, Andrea encarnou seres de outros tempos e lugares, de Ninfa a Talus, cruzando óperas e galáxias sonoras de Bruxelas a Munique. Sob o céu dos maestros, a sua voz tocou a eternidade, em “Solar – Icarus Burning”, e o abismo em György Ligeti, onde os mistérios do macabro se revelaram.

Mas Andrea não só canta; ela cria universos sonoros. Ao lado de compositores visionários como Lachenmann e Azguime, fez da sua voz uma arma de intervenção artística, lançando projetos como “Zapping Machine” e “Extreme Makeover”, que vibraram nas esferas invisíveis da criação.

Em Lisboa, ao lado de Marcelo Amaral, deu nova vida ao passado, transformando amores e vidas num jogo cósmico entre o antigo e o moderno, onde o feminino se fez som e luz. Com o Kollektiv TRIGGER, uma irmandade vocal que desafia os limites do real, Andrea constrói, com cada respiração, novos códigos para decifrar o universo do inaudito.

E assim, entre as estrelas e o palco, entre o visível e o oculto, Andrea Conangla segue, não apenas deixando música, mas questionando o espaço e o tempo, explorando as vozes que ecoam na eternidade desconhecida.

[Instruções Cósmico-Sensoriais para Navegação no Universo de Andrea Conangla]

Bem-vindos ao portal do desconhecido, onde o som encontra a imagem e juntos constroem uma realidade paralela. Autopsychografia não é um simples álbum, mas uma experiência sensorial completa, um convite a ultrapassar as fronteiras do tempo e da matéria. Nesta obra, os poemas de Fernando Pessoa renascem, transfigurados por novas encomendas de compositores visionários — Sara Glojnarić, Igor C. Silva, Sofia Borges — e pela peça inovadora “Got Lost” de Helmut Lachenmann.

Este disco físico é uma chave, um objeto artístico desenhado pelo Estaminé Studio, que esconde em si muito mais do que notas e palavras. Ao abri-lo, um delicado sistema de pop-up revela um QR code, um portal que vos transportará ao misterioso mundo de Autopsychografia. Uma vez lá, mergulharão numa paisagem multissensorial, onde o som se funde com a imagem e o ouvinte se transforma em criador.

Neste universo digital, não são apenas ouvintes: são também espectadores de um filme que se move ao ritmo das vossas escolhas e, ao mesmo tempo, jogadores de uma partida sonora que está sempre a começar. O vosso toque molda e transforma loops, recria sons, constrói novas paisagens auditivas, manipulando instrumentos e voz de formas inesperadas. Cada interação abre uma nova porta, e cada porta é uma peça única do vosso próprio mosaico sonoro.

Mas a experiência não acaba aqui. Ao longo do caminho, terão acesso a textos, biografias, os nomes das faixas e dos compositores. E como se isso não bastasse, poderão ler os poemas de Pessoa que dão alma a este projeto, sentindo as palavras do poeta vibrar ao ritmo da música. É como entrar num livro vivo, onde as páginas se transformam e ganham vida em notas e imagens.

Este mundo digital não é somente um lugar de contemplação, mas sim de ação criativa. Nele, vocês não são simples ouvintes ou leitores; são avatares de compositores, moldadores de universos musicais. Através de um simples clique, um gesto de toque ou de olhar, criam, transformam e exploram dimensões que desafiam a realidade. Autopsychografia é um jogo multimédia de ficção científica onde a criação musical se mistura com a visão e o movimento, desafiando os limites do que um álbum pode ser.

Entrem no mundo fantástico de Andrea Conangla, onde cada som conta uma história e cada gesto vos torna parte dela.



[“Vou”: Uma Viagem Sideral pelo Som e pelo Vazio]

Eis que em “Vou”, Álvaro de Campos ergue-se de novo, não em palavras, mas em som. O vibrafone de João Dias desdobra-se em arpejos que não tocam a terra, flutuam no cosmos, são arpejos siderais, a desenhar constelações que não se vêem, mas se ouvem. Cada toque, uma estrela; cada pausa, o vácuo onde o som respira.

A voz, despida de qualquer técnica de Bel Canto, não busca a perfeição clássica. Não. Ela é aérea, como se o ar fosse apenas outra extensão das cordas vocais. Uma voz com ar ou ar com voz, ambas suspensas entre o ser e o não ser. Há um quê de Björk no timbre que desliza entre o pop e o etéreo, mas nunca se agarra a nada, sempre à beira do colapso, mas sem nunca cair.

E por baixo, por entre, ao redor de tudo isto, move-se a electrónica fantasmagórica. Não é uma electrónica que impõe, mas que sugere, que evoca. São ecos angelicais electrónicos, vozes de outros mundos, de outras eras. Há estática, sim, mas uma estática que se torna estética, que rasga o silêncio e, no seu rasgar, constrói novos silêncios. Cada fragmento de som digital é como um sussurro distante, como um eco que não se desvanece, mas se multiplica.

O vibrafone, sempre em arpejos, cria uma base que parece sólida, mas não é. São acordes harmónicos que se dissolvem no instante em que se formam, como nuvens que o vento desfaz. E tudo isto, tudo, culmina numa música que é quase pop, mas nunca se deixa aprisionar nesse rótulo. É o quasi-pop, onde as estruturas são apenas sugeridas e logo desfeitas.

Nove minutos e trinta segundos. O tempo perde o seu sentido. Não há medida, não há compasso, só a viagem, “Vou”, sempre a ir, sempre a deixar para trás e, ao mesmo tempo, sempre a voltar. O ouvinte, da mesma forma que Álvaro de Campos, sente-se numa busca sem fim, numa viagem eterna. O destino não é importante, só o movimento, só o eco das palavras e dos sons que não são palavras, mas são o próprio espaço entre elas.

E assim, na união de voz, vibrafone e electrónica, somos transportados para um lugar que não existe, mas onde estivemos sempre.

[“CUL DE LAMPE” de Álvaro de Campos]
(editado por Igor C. Silva como surge na canção)

Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja na
mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo sendo eu através de
uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
Sem que ninguém me escutasse
Sem que ninguém me quisesse
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando.
Ainda estou
Não vou acabar
Ainda sou

[“A Alma às Avessas”: Uma Carta Musical ao Vazio]

Na peça “A Carta”, Sofia Borges dá vida ao poema rasgado de Maria José, um eco longínquo da dor de quem nunca foi visto. O poema, uma carta que nunca será lida, encontra no som a sua derradeira morada. O violoncelo ergue-se como a voz primeira, enunciando harmónicos que ecoam como sombras, rasgando o silêncio, em sul ponticello, onde o som se torna matéria frágil, ressoando a dor da carne invisível.

A voz, a alma desta peça, não é uma só. Dobra-se, duplica-se, como se a dor se partisse em dois, clonada em duas cantoras, uma frente à outra, refletindo-se num espelho quebrado. As vozes deslizam entre o parlato e o sprechgesang, como quem conta uma história, ou melhor, uma tragédia íntima, uma carta escrita nas estrelas e perdida nos dias. Por vezes, fala-se como se estivesse a contar uma fábula para crianças, uma tristeza velada por palavras simples. Mas cada sílaba traz o peso de ser “um trapo”, de ser “ninguém”, e é nisso que a música mergulha.

Os sussurros cósmicos flutuam no ar, como se as inalações e respirações das cantoras fossem o próprio corpo da carta, uma respiração que tenta existir, um corpo que se molda e se desintegra. Cada eco é uma resposta que nunca chega, um grito surdo, perdido no vazio de uma casa amarela que nunca verá a luz. O som do violoncelo em sul ponticello enche o espaço com harmónicos que vibram como ossos torcidos, os ossos às avessas que a voz insiste em repetir, como se a melodia fosse a própria corcunda do poema, uma cicatriz que não dói no corpo, mas na alma.

A voz, ora falada, ora cantada, reencarna múltiplas personagens, saltando de um registo para outro, como se cada palavra fosse uma máscara, um disfarce, uma tentativa de ser alguém que nunca será. No entanto, a carta é também um espelho para quem ouve. Somos todos, em algum momento, essa boneca com os ossos às avessas, deslocados no mundo, carregando o peso de “não ser ninguém”.

A duração — 10:51 — é apenas uma sombra de um tempo que não se mede. Aqui, o tempo é como o corpo: algo que se desfaz, que se molda ao som da respiração, que se transforma em harmónicos sul ponticello, num murmúrio que nunca se completa. A carta não chega a lugar algum, mas na sua travessia somos nós que nos perdemos.

Esta obra não é só uma peça, mas um eco de vidas que nunca foram vistas. “A Alma às Avessas” é um grito silencioso, uma melodia que se dissolve no ar, uma carta que, por mais que ouçamos, jamais compreenderemos por inteiro.

[A Carta da Corcunda para o Serralheiro de Maria José]
(editada por Sofia Borges como surge na canção)

Nunca há-de ver a corcunda
da casa amarela
Mas eu não penso senão em si
(não era azul claro, mas uma sarja
muito clara para o azul escuro que
costuma ser)
Sou um vaso com uma planta murcha.
Paralítica, reumatismo, tuberculose,
um trapo como eu
Tenho pena
Outro corpo, outro feitio
(o corpo de que se pode gostar, eu
tenho direito a gostar sem que gostem
de mim. Também tenho o direito de
chorar, que não se negue a ninguém.
Poder ir à rua ainda que o senhor
me não desse razão de nada, mas eu
estimava conhecê-lo de falar)
Eu não sou mulher nem homem,
porque ninguém acha que eu sou nada
Uma espécie de gente
Ah, valha-me Deus.
Uma boneca com os ossos às avessas,
como eu sou
Eu não penso senão em si
Eu tenho inveja dela
Não tenho direito a ter nada
Senhor António,
Tenho dezanove anos
Senhor António?
É a alma que me doi e não o corpo.
A corcunda não faz dor
Uma boneca com os ossos às avessas
É triste ser marreca
Uma boneca às avessas
(uma boneca com os ossos às avessas,
macaca, marreca, com a corcunda a
sair pela blusa)
Eu nunca poderia ter ninguém que
gostasse de mim como se gosta das
pessoas que têm o corpo de que
se pode gostar
O corpo, o corpo
É o peso de não ser ninguém.
Um trapo como eu
Não sou homem nem mulher
Toda a minha alma
Toda a minha vida
Estou a chorar
Senhor António, o senhor nunca
há-de ler esta carta

[“O Eco Fingido”: O Coração Mecânico da Voz e da Electrónica]

Em “The Post is a Faker”, Sara Glojnarić reinventa o fingimento de Pessoa através de um jogo sonoro onde a voz e a electrónica se misturam numa teia de enganos e revelações. O poeta-fingidor é agora uma máquina, mas uma máquina viva, pulsante, cujos mecanismos ressoam em cada nota, em cada eco, em cada granulação.

A electrónica aqui é mais do que um pano de fundo. Ela transforma-se num coro vocal imaginário, um conjunto de vozes espectrais que se desdobram em cânones, repetindo-se, ecoando, como um reflexo distorcido de algo que nunca foi dito por completo. As vozes são granuladas, partidas em mil pedaços, como se o próprio som estivesse a fingir a sua existência, uma voz que é granulada pela electrónica, ou uma electrónica que se dissolve na voz.

E de repente, como um grito vindo de uma outra dimensão, surge um sintetizador em arpejo. Um chamamento que corta o espaço, que invade a composição com uma urgência inesperada, como se a música estivesse à beira de algo — algo que vai além da simples melodia, algo que se esconde no fingimento, nas repetições, nas intensidades que se acumulam.

Aqui, a música caminha como o poema: começa com suavidade, com a voz suspensa em agudos virtuosos, quase frágeis, como se temesse ser ouvida. Mas essa suavidade não dura. Uma pop que caminha velozmente para um clímax de rock, onde as repetições não são apenas eco, mas um crescendo, uma ascensão que leva o ouvinte a um ponto de ruptura, onde a tensão se torna quase insuportável.

As aliterações do poema são transportadas para o som, cada sílaba uma batida, cada palavra uma nota que se repete, como um comboio que não pára de girar em círculos. E assim, a música brinca com a ideia de fingimento, não só no que diz, mas na forma como o diz — uma ilusão de simplicidade que esconde uma complexidade profunda.

Em 5:44 de som e silêncio, de voz e máquina, Glojnarić constrói uma peça onde o coração mecânico da música bate com a mesma intensidade do comboio de corda que Pessoa evoca. Mas este coração, do mesmo modo que o poeta, finge a sua própria existência, finge o que sente, e no seu fingimento revela a verdade que está sempre à espreita: a verdade da dor que ecoa, que se repete, mas que, no fundo, não pertence a ninguém.

“O Eco Fingido” é, assim, uma viagem por entre o que se ouve e o que se sente, uma composição que, assim como o poema, nos deixa suspensos no limiar da realidade, sem nunca sabermos ao certo onde termina a máquina e começa o coração.

[THE POET IS A FAKER]
(Poema de Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

[Perder-se no Som: Um Abismo entre Martelos e Silêncios]

Em “Got Lost”, Helmut Lachenmann conduz-nos a uma paisagem sonora onde a lógica se dissolve, da mesma forma que as palavras de Nietzsche e Álvaro de Campos. A música surge fragmentada, como um eco de um pensamento que se perdeu, um murmúrio entre abismos, onde o piano além de um instrumento, é também um corpo sonoro que grita, sussurra, e se martela.

O piano staccato vibra em golpes secos, precisos, quase mecânicos que reverbereram. Não há suavidade, apenas um pianíssimo virtuoso que desafia a calma habitual do toque leve. Cada martelo que atinge as cordas não só produz som, mas interrompe o vazio, como se quisesse criar um caminho onde nenhum existe. E contudo, como o viajante de Nietzsche, sabemos que não há mais caminho — “Abismo à volta e silêncio mortal”.

As cordas abafadas no piano ressoam como o eco de um grito que foi sufocado. Lachenmann não busca a melodia, ele esculpe o silêncio. As notas parecem afundar-se num espaço sem ar, onde o som é sugado para dentro de si mesmo, quase como se o piano estivesse a tentar imitar o vazio, o silêncio que Nietzsche descreve com tanta frieza. O toque staccato é o movimento repetido de uma máquina, uma rotina que se perde no tempo e no espaço.

E de repente, na paisagem sonora, surgem as palavras de Álvaro de Campos, aquele que escreveu cartas de amor ridículas. Mas aqui, essas palavras não são doces, não são meramente nostálgicas. Elas ecoam entre as marteladas do piano, e a ridicularidade das cartas transforma-se num lamento irónico. O amor, tão leve e esdrúxulo, contrasta com o peso dessas notas marteladas, como se o próprio piano zombasse da fragilidade das emoções humanas. As cartas de amor tornam-se ridículas também no som, esdrúxulas como os sentimentos que não conseguimos evitar.

E, no meio do abismo filosófico de Nietzsche e da ironia melancólica de Campos, surge a estranha nota encontrada num elevador. “Hoje, o meu cesto da roupa desapareceu”, uma trivialidade quase absurda que subitamente se encaixa na tessitura da peça, como uma reflexão sobre a perda, o esquecimento, o acaso. O quotidiano entra no palco como um sussurro entre o caos, e Lachenmann transforma o desaparecimento do cesto num enigma musical. Afinal, o que é mais ridículo: perder uma carta de amor ou um cesto da roupa? E o que há de mais trágico no fim de contas?

“Got Lost” é uma viagem sem mapa. Lachenmann usa o piano martelado, o virtuosismo do piano, e as cordas abafadas para criar uma obra que não se constrói apenas sobre a melodia, mas sobre a ausência dela. O ouvinte perde-se no som, como o viajante de Nietzsche se perde no abismo, como Campos se perde nas memórias ridículas de um amor que já não tem forma. A peça dura 26:20, mas o tempo, aqui, é apenas mais uma ilusão. Ouvimos o que se perdeu, sentimos o vazio, e, como no final de um longo sonho, despertamos sem saber exatamente onde estamos.

No fundo, “Got Lost” é o espelho sonoro do próprio fingimento. Perdemo-nos no som como nos perdemos na vida. “Agora, viajante, está na hora” — mas a música nunca nos diz para onde ir.

[Got Lost]
(Textos de Friedrich Nietzsche, Álvaro de Campos e Nota encontrada num elevador da Villa Walther em Berlim-Grunewald, 2001/02?)

Texto 1

Não há mais caminho!
Abismo à volta e silêncio mortal!
Foi assim que quiseste!
Do caminho partiu a tua vontade!
Agora, viajante, está na hora!
Agora olha frio e claro!
Estás perdido se acreditas no perigo.

Texto 2

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor
se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo
cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo
em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente Ridículas)

Texto 3

Hoje, o meu cesto da roupa desapareceu.
Foi visto pela última vez em frente à
máquina de secar.
Como é relativamente difícil carregar a roupa
sem ele, ficaria muito feliz se o recuperasse.

[Autopsychografia: Uma Viagem Multimodal pelo Cosmos Sonoro de Andrea Conangla]

Andrea Conangla não é somente uma soprano. Ela é a arquitecta de um universo que transcende o habitual entendimento da voz, da música e da performance. No centro desse cosmos multifacetado reside o seu trabalho multifacetado, e Autopsychografia, mais que um disco, é uma chave de acesso a uma experiência sensorial que desafia os limites do que significa ouvir, ver e, acima de tudo, sentir.

Este álbum, que transporta em si o legado do poeta Fernando Pessoa, não é uma mera colecção de canções ou composições. Pelo contrário, é uma exploração profunda do entrelaçamento da palavra e do som, da alma e da tecnologia. Um CD que, através de um QR code, nos abre um portal para uma dimensão onde deixamos de ser ouvintes passivos e nos tornamos também criadores, compositores de novas possibilidades, enquanto somos levados pelas melodias, pela electrónica e pelos loops que nos circundam.

A obra de Andrea Conangla, da mesma maneira que é reflectida na análise das peças que a compõem, é uma viagem pela multiplicidade do som e da palavra, onde cada performance, cada interpretação, cada som gravado e recriado, reflete uma consciência artística única. “A Carta” de Sofia Borges, baseada no heterónimo Maria José, revela-nos o desconforto, o corpo deformado que ecoa pela voz e pelo violoncelo, desdobrando a fragilidade do humano em sussurros cósmicos e sons que não pertencem apenas a este mundo. Já em “The Post is a Faker” de Sara Glojnaric, somos confrontados com uma experiência quase cinematográfica de vozes granuladas e electrónica, um coro de fantasmas tecnológicos que nos conduz para um clímax onde o rock e a pop se encontram, enquanto a voz de Conangla se eleva em agudos que desafiam a gravidade.

Mas é em “Got Lost” de Helmut Lachenmann que o abismo se revela por completo. A peça, construída sobre fragmentos de Nietzsche, Álvaro de Campos e uma nota de elevador, parece operar num espaço-tempo diferente. Os martelos do piano, as cordas abafadas, o staccato insistente criam um labirinto sonoro no qual nos perdemos, assim como o poeta se perde na sua própria ironia e desespero. Aqui, Andrea Conangla é mais que uma intérprete; ela é a viajante que nos guia por este terreno incerto, onde o som não é só ouvido, mas experienciado como uma força tangível que transforma a alma.

Este trabalho não é unicamente musical. É, de facto, uma obra multimédia, sensorial e imersiva que transforma a audiência em algo mais que simples receptores de som. Somos, nós próprios, convidados a participar. O disco torna-se um jogo, uma experiência interativa onde podemos manipular loops, reinventar melodias e criar a nossa própria interpretação daquilo que Conangla e os compositores nos oferecem. O ouvinte transforma-se, assim, num avatar dentro deste cosmos musical, onde a fronteira entre criador e audiência se dissolve.

É impossível falar do trabalho de Andrea Conangla sem reconhecer a fusão única entre a tradição vocal e o uso inovador da tecnologia. O vibrafone sideral em “Vou” de Igor C. Silva, ou a voz aérea, quase björkiana, misturada com electrónica fantasmagórica, são exemplos de como ela manipula os elementos tradicionais e contemporâneos para criar algo completamente novo. O disco não se limita a revisitar o repertório clássico ou contemporâneo — ele cria um espaço onde esses dois mundos coexistem e se expandem, transportando-nos para uma realidade paralela onde cada nota, cada acorde, cada respiração tem um significado mais profundo, mais amplo.

Autopsychografia além de ser uma homenagem a Fernando Pessoa, é uma verdadeira autopsia da psique através do som. Cada peça, cada interpretação, é uma dissecação cuidadosa das emoções, dos sentimentos, da angústia e da ironia que atravessam a obra deste poeta. E é na voz de Conangla que essas emoções encontram forma. Não há aqui uma técnica vocal tradicional de bel canto. Em vez disso, há uma expressividade que transcende a técnica, onde a voz se torna ar, eco, sussurro, grito — uma extensão do próprio ser que se dissolve e renasce em cada interpretação.

Ao final desta viagem, o ouvinte, agora transformado, é convidado a reflectir sobre a experiência. Não se trata de uma mera audição, mas de uma imersão total num mundo de sons, palavras, e imagens. “Autopsychografia” é, em última instância, uma obra de ficção científica sonora, onde a realidade se dobra e a tecnologia e a emoção se fundem num só. Andrea Conangla construiu, com este projecto, não apenas um disco, mas um universo alternativo — um mundo fantástico onde a música e a voz são a chave para novas dimensões da sensibilidade.

Assim, concluímos que Andrea Conangla, ao longo de toda esta obra, nos oferece uma nova visão da performance vocal, onde a fronteira entre o tradicional e o experimental se esbate, e onde nós, como ouvintes e participantes, somos chamados a criar, a sentir e a transformar-nos. Sejam bem-vindos ao mundo que ela construiu — um mundo onde a música é mais que som, é uma experiência, uma viagem cósmica pela essência do humano e do inumano.


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