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Fotografia: João Hasselberg
Publicado a: 04/07/2023

Charada jazz.

André Carvalho sobre Lost in Translation II: “Sinto que é uma ‘fotografia’ bastante fidedigna do trio”

Fotografia: João Hasselberg
Publicado a: 04/07/2023

Todo um descampado pela frente. Tactear um caminho não somente novo, mas conhecedor da imensidão do mesmo – as palavras intraduzíveis. O novo trabalho de André Carvalho, Lost in Translation II aprofunda a pesquisa linguística e, ao mesmo tempo, permite abrir novos campos na exploração musical que vem tecendo.

A propósito da apresentação do novo trabalho no âmbito do festival julho é de jazz, dia 7 de Julho, no gnration, Braga, entrevistámo-lo. Das palavras para outras situações de “intraduzibilidade”, o documentário que pretende realizar sobre esta temática, as gravações e a relação com a Clean Feed e, por fim, o jazz como arte e a capacidade de um certo poder transformador, pelo menos a nível pessoal, em contraste com o “jazz cai bem”. Mais de que um convite para assistir ao concerto, esperemos que seja uma oportunidade para conhecer o músico, a pessoa e as suas preocupações.



AS PALAVRAS INTRADUZÍVEIS

[Lost in Translation II]

“Obrigado pelo convite e interesse! Sim, há realmente muitas palavras intraduzíveis, palavras que aparentemente só existem numa língua e que para as compreendermos precisamos de recorrer a várias palavras numa outra língua. Se pensarmos que há cerca de 7 mil línguas no mundo, rapidamente percebemos que há uma riqueza linguística muito grande e que também poderá haver um grande número de palavras intraduzíveis. Quantas há, é verdadeiramente difícil saber. Há palavras que estão associadas a questões geográficas (localização onde dada cultura existe), outras associadas a coisas do quotidiano, outras relacionadas com sentimentos/estados de espírito, etc. Por isso, desde 2020, antes do primeiro volume ter sido editado, esta pesquisa tem sido interessante e reveladora da dimensão e multiculturalidade existente no Planeta Terra.

Acho que com o primeiro volume, e por ter feito uma campanha de crowdfunding para obter parte do financiamento, muitas pessoas ficaram mais atentas não só à existência deste projecto, como também de palavras intraduzíveis. Por isso, para além da minha investigação, tenho recebido sugestões de palavras vindas de amigos ou de pessoas que tomaram conhecimento do projecto. Esta descoberta de tantas e variadas palavras, para além da empatia grande que tenho com o José Soares e o André Matos que fazem parte do trio, deixou-me cheio de vontade de fazer um segundo volume. Deixou-me também com vontade de criar um documentário que está neste momento em fase de produção que explora a existência de palavras intraduzíveis e o seu impacto na sociedade, a génese do trio e como as palavras e a música estão relacionadas.”

[Os intraduzíveis e as composições]

“Julgo que já tenho contacto com estas palavras há muito tempo, mas o momento em que lhes dei realmente mais atenção foi no início da pandemia. Por um lado, tinha editado o The Garden of Earthly Delights, tido bastantes concertos de apresentação e estava pronto para começar a desenvolver um novo grupo e por isso mais atento a coisas novas. Por outro lado, estávamos a viver uma situação realmente diferente nas nossas vidas em termos de espécie e com uma dimensão global. Uma situação para a qual, sendo nova, senti que eu não era capaz de expressar determinadas coisas que estava a sentir. Não quer dizer que não tendo eu palavra no meu léxico ou nas línguas que falo, que não exista dada palavra para essa ideia. E assim, acabei por perceber que esta era uma temática que me era pessoal, excitante e que despertava o interesse não só por querer explorá-la mais, como também para escrever música para um novo grupo.

O processo de escrita começa por uma investigação ou recolha de palavras. Quando comecei este projecto fui apontando num caderno as palavras intraduzíveis que ia descobrindo, os seus significados, etc. Numa fase posterior, peguei nessa lista e tentei perceber quais destas ressoavam mais em mim e, a pouco e pouco, fui escrevendo ideias, esboços, pequenos textos sobre o que aquela palavra me despertava, etc. E com o vocabulário musical que tenho, fui tentando criar música que partisse desta recolha e reflexão.”

[A “intraduzibilidade” – há ou não?]

“Isso é uma grande questão. Para o documentário que estou a desenvolver com o realizador Pedro Caldeira, temos entrevistado pessoas de várias áreas de conhecimento, desde Linguística, Tradução, Antropologia e Psicologia. Todas têm perspectivas diferentes sobre se há ou não palavras intraduzíveis. Por exemplo, um tradutor facilmente dirá que não há palavras intraduzíveis, ou seja, que apesar de não haver uma palavra que tenha tradução directa numa outra língua, com o auxílio de outras palavras conseguimos perceber o significado da dita palavra intraduzível. Por outro lado, alguns investigadores que têm sido entrevistados dizem que a compreensão do significado de uma dada palavra não vem só de termos palavras que a descrevam na nossa língua, mas de vivências e experiências pessoais. Enfim, é uma longa e, a meu ver, interessante discussão.”

[Na informática]

“O campo da informática já é demasiado distante para mim. Realmente estudei informática, mas já há muitos anos. Nunca cheguei a trabalhar nessa área, mudando para a música no fim dessa fase. A área da informática tem-se desenvolvido tanto que nem sei bem responder a esta questão dada a sua evolução. Mas o que acaba por me interessar mais nesta temática das palavras intraduzíveis, para além da parte da curiosidade de algumas palavras, é o facto de através das línguas nos apercebermos da grande diversidade que existe e que ao aprendermos palavras estamos a criar ligações com pessoas que outras partes do globo e de certa forma a desenvolver empatia.

Mas para tentar fazer a ligação à informática e à sua pergunta, é curioso notar que apesar de vivermos num mundo cada vez mais tecnológico, mais interligado e rápido, continuamos a ter problemas de comunicação e expressão. Que continuamos a não perceber o que outros estão a tentar transmitir. É aqui que as palavras podem ser importantes ferramentas para estreitar relações.”

[As homógrafas]

“Sim, as palavras homógrafas são um fenómeno curioso. Nunca explorei bem esse universo, mas estou certo que haverá muita coisa curiosa para descobrir!

Sem dúvida e fico feliz se essa subjectividade que refere acontece. Esta é a minha perspectiva musical destas palavras intraduzíveis que selecionei. Estou certo que diferentes pessoas que oiçam a música do trio terão interpretações diferentes, que sentirão emoções diferentes e reacções diferentes.

De referir também que, enquanto trio, a nossa abordagem também nunca é igual, tratando-se de música que tem um forte pendor de improvisação apesar de haver alguma música escrita. Por isso, num dia poderemos interpretar um tema de uma forma e amanhã de outra. Fico feliz quando isto acontece e com o trio isso acontece sempre!”



LOST IN TRANSLATION II

[Idealização, gravação, edição]

“Sempre foi tudo muito simples e fácil. Uma das razões para avançarmos para um segundo volume foi exatamente esta facilidade de comunicação.

O processo de idealização foi bastante semelhante ao do primeiro volume. A gravação em si foi bastante diferente, apesar de termos gravado no mesmo sítio. Diferente porque, no primeiro álbum, antes de gravarmos já tínhamos tocado a música praticamente toda, coisa que não aconteceu neste segundo. Foram muito poucos os temas que tínhamos tocado ou ensaiado antes da gravação. Por isso, sinto que esta gravação é uma “fotografia” bastante fidedigna do trio. Nesta gravação aconteceu também algo que não tinha acontecido na primeira, visto que, para além da música que tinha escrito e um tema que o André Matos trouxe, decidi trazer uma lista de palavras intraduzíveis sobre as quais fizemos improvisações. Duas dessas improvisações estão no novo disco.

O processo de mistura e masterização foi também relativamente simples. Já trabalho com o Tiago Sousa, engenheiro de som, há muitos anos. O Tiago é um grande amigo de adolescência. Tanto na gravação como mistura, experimentamos sempre coisas novas. Por vezes, o Tiago também apresenta soluções que não imaginei e esse processo criativo é interessante! Aprendo sempre imenso com ele e vê-lo a trabalhar durante a mistura é sempre uma das fases do processo que mais gosto.

O trabalho com a Clean Feed Records foi simples também. Falei com o Pedro Costa e apresentei-lhe a música. O Pedro foi receptivo e disponível. Estou feliz por estarmos a trabalhar juntos e espero que seja o princípio de uma boa e longa relação!”

[José Soares e André Matos]

“É a procura de uma estabilidade desafiadora. Estabilidade porque sentimos uma empatia muito grande, dentro e fora da música e por isso sentimos que faz sentido continuarmos a viver e tocar juntos. Desafiadora porque sinto que tanto o José como o André me desafiam, me fazem ver as coisas de outra forma, trazem ideias para cima da mesa e não têm medo de arriscar coisas novas sempre que tocamos. Essa comunicação faz com que a música no fim do dia não seja só minha, mas dos três. Isso agrada-me muito. Não quero com isto dizer que estou fechado e que não queira ter outros projectos musicais. Claro que quero e felizmente tenho-os ou estou a desenvolve-los. Há muitas pessoas com quem gosto ou gostaria de tocar e estou sempre aberto para que isso aconteça!”

[A Clean Feed]

“Gosto do catálogo da Clean Feed e da forma como se posiciona nacional e internacionalmente. Há muitos músicos que admiro no catálogo e vou seguindo sempre com atenção os lançamentos regulares que fazem. Estou feliz por esta ligação se ter estabelecido e espero que possamos continuar a trabalhar no futuro.”

[O Teatro Municipal Amélia Rey Colaço]

“Quando começámos a planear a gravação do primeiro disco, estávamos num pico de COVID e pensámos que se calhar ir para um estúdio e estar num espaço mais fechado não seria a melhor opção. Então a ideia de gravar num espaço mais amplo como um teatro seria uma boa alternativa. Conheço várias pessoas que fazem parte da Companhia de Actores que reside no Teatro Amélia Rey Colaço e falei com eles e eles aceitaram colaborar, o que foi fantástico! Estou muito feliz por esta colaboração ter acontecido.

Gravar num teatro tem prós e contras comparativamente com um estúdio, já que no teatro estamos todos na mesma sala ao passo que num estúdio se calhar poderíamos estar em salas separadas. Mas a primeira gravação correu muito bem e o facto de estarmos os três no mesmo espaço foi benéfico. Julgo que trouxe proximidade e facilitou muito a gravação. Também ajudou estarmos a trabalhar com o Tiago Sousa que é um engenheiro de som incrível. Como correu tudo tão bem, decidimos gravar lá o segundo disco e estamos felizes por ter acontecido!”

[O silêncio]

“Sim, julgo que há realmente um cuidado com o espaço e o silêncio. Como toda a música se molda a partir do silêncio. Aliás, o apreço pelo silêncio era uma das coisas que tinha em mente quando idealizei este projecto e uma das razões para ter escolhido o José Soares e o André Matos como membros do trio.

Pessoalmente, o silêncio leva-me para a introspecção e contemplação, ou seja, estados de espírito mais íntimos e por isso descrevi o álbum como “íntimo e contemplativo”. Julgo que é inegável que o trio toca de uma forma “espaçada”, por vezes “ponderada” e em que cada som/nota/pausa/silêncio contam para a narrativa musical que está a ser desenvolvida. Com isto não quero dizer que não há momentos mais ásperos, crus ou até agressivos. A meu ver há e é bom que isso aconteça. Todas as boas histórias têm momentos de tensão e resolução e isso contribui para o balanço do discurso musical.”



GNRATION, CONCERTOS & JAZZ

[O concerto]

“Primeiro, quero dizer que estamos com muita vontade de tocar em Braga no gnration. Gosto muito da orientação e escolha programática do gnration. No gnration tocaremos um conjunto de temas do novo álbum, assim como alguns do primeiro. Faremos também algumas improvisações livres sobre palavras intraduzíveis que apresento ao trio no momento em palco.

Cada concerto do trio é sempre único já que há uma componente de improvisação forte onde as coisas podem ir para um lado ou outro!”

[O gnration]

“São espaços realmente importantes. Por um lado, apostam e arriscam em programar projectos com um cariz mais criativo, tanto emergentes como mais consagrados. Por outro lado, desenvolvem um programa educativo assim como residências artísticas que são realmente importantes para o desenvolvimento, por um lado de público e, por outro lado, de novos projectos.”

[A comunidade]

“Espaços como o gnration ajudam a desenvolver a comunidade local, além de criarem novos públicos, aproximando mais pessoas à programação que é desenvolvida e muitas vezes mais arrojada e desafiadora. Acho que a criação de comunidade e de desenvolvimento de novos públicos leva tempo e persistência. Não sei exactamente o que se deve fazer, mas há pessoas que realmente estudam este assunto e sabem fazê-lo. É importante que se tenha essa visão a médio/longo prazo, apostando em boa divulgação, criar espaços e actividades que aproximem o público das novas criações.”

[A tour]

“Tentamos diversificar e ir a espaços e locais diferentes. Julgamos que é importante ir a locais diferentes e ter contacto com pessoas de outros sítios. Por vezes, o trio fez masterclass na tarde de um concerto e, especialmente em locais mais afastados dos grandes centros, sentimos que tem impacto. Muitas vezes apareceu público mais jovem que está a estudar música e que nem sempre tem contacto com o tipo de música que desenvolvemos. Este público acaba também por vir mais tarde ao concerto e cria-se um ambiente interessante de partilha de experiências. Expandir os locais por onde tocamos e circulamos é importante, especialmente num país pequeno como Portugal, para que seja possível organizar uma série de concertos mais ou menos seguidos.”

[‘Jazz Música’ Vs. ‘Jazz Taschen’]

“Boa questão, sinceramente não sei. Julgo que, como em tudo, haverá propostas com mais ou menos profundidade. Não sei se isso será exclusivo ao jazz, provavelmente a qualquer arte performativa. Mais uma vez, julgo que essa questão de o “jazz ser música”, como refere, terá a ver com a aproximação do público aos artistas/propostas e também numa aposta forte na divulgação bem planeada e sustentável. Julgo que a solução para esta questão não está num único interveniente, mas sim em todas as partes envolvidas quer sejam os artistas, os organizadores, os media, etc.”


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