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Fotografia: João Varela
Publicado a: 18/10/2021

Jazz sem fronteiras e definições.

André Carvalho na ZDB: as idiossincrasias do som e da palavra

Fotografia: João Varela
Publicado a: 18/10/2021

Com a programação que tem apresentado ao longo dos anos, é inegável reconhecer a ZDB como um dos principais pólos de divulgação de cultura alternativa em Lisboa. Se, com isto, se pressupõe um cartaz restrito a gerações mais novas, o concerto do contrabaixista André Carvalho na passada quinta-feira, dia 14 de Outubro, refuta essa ideia de imediato: entre o público presente no aquário da Galeria Zé dos Bois não se vislumbra praticamente ninguém abaixo da linha dos 40 anos de idade – prova viva de que a liberdade programática desta casa não impõe limites na plateia que recebe.

Dá-se, então, o pontapé-de-saída com a entrada do trio que assume as lides musicais desta tarde – completado pelo saxofonista José Soares e pelo guitarrista André Matos -, e o tema que inicia o concerto deixa claro que duas directrizes irão guiar a próxima hora: um sentido de flexibilidade rítmica criada pela ausência de instrumentos de percussão e uma justaposição harmoniosa entre exploração sónica e composição sofisticada. Começando com uma frase que demonstra o nível de precisão e coesão entre os três músicos, a faixa de abertura transita rapidamente para um espaço mais meditativo, guiado pela guitarra que Matos mergulha nos seus pedais de efeitos, com Carvalho e Soares a acompanhar o mood estabelecido.

Uma vez terminada, André Carvalho faz-nos saber que esta composição se intitula “Luftmensch”, cujo significado em iídiche remete para um indivíduo que se encontra “com a cabeça nas nuvens”, à falta de um termo concreto para português. Como Carvalho explica de seguida, é precisamente este o motor que guia Lost In Translation, o mais recente disco que o contrabaixista nos apresenta: a partir de palavras intraduzíveis de diversos idiomas, criar um repertório musical que transmita esse elemento de singularidade. 

Na composição seguinte, “Mångata”, Carvalho avança com uma melodia delicada no contrabaixo, que Soares sustenta com um ataque de sopro correspondente à leveza do momento, assumindo posteriormente o protagonismo da música e terminando-a com um pequeno solo enquanto os cordofonistas de serviço mantém o balanço adquirido até então.

A exploração sonora em “Kalpa” é bastante vincada – não desvirtuando, porém, a firmeza da frase melódica aqui apresentada – e em “Uitwaaien”, Carvalho oferece um ritmo mais estável no contrabaixo, ao passo que Soares e Matos dão alas a uma investida mais livre, eventualmente culminando na reunião dos três músicos para um final mais conciso; estamos a meio do concerto e é indiscutível que estamos na presença de um concerto de jazz onde o swing não reina, sendo o pulsar rítmico guiado pelo tom contemplativo deste repertório.

“Goya” é o tema mais livre e incisivo de todo o set, mas não demasiado explosivo, o que permite a passagem para um loop de ruído de contrabaixo embalador para uma linha minimalista entre o trio, que conclui a música. Os dois últimos temas, “Alcheringa” e “Kilig”, demonstram progressões harmónicas e melódicas ousadas, com o último a findar o concerto por via de uma estética mais noise, através de loops densos e graves, terminando com um pequeno feedback controlado.

Cerebral e sensorial, Lost In Translation não pode ser meramente rotulado como free jazz ou pós-bop – aparententemente, o tipo de jazz que compõe este disco é, também ele, intraduzível.


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