Em vésperas da estreia lisboeta de Of Fragility and Impermanence, André Carvalho apresenta-se como uma das vozes mais singulares e inquietas da música contemporânea portuguesa. Contrabaixista e compositor, o músico tem vindo a construir um universo sonoro próprio, onde o jazz dialoga com a escrita erudita contemporânea, a electrónica e uma atenção quase meditativa ao silêncio, ao espaço e à escuta. O novo álbum aprofunda uma reflexão sobre fragilidade, perda, memória e transformação, propondo uma música que se move entre a abstracção e a intensidade emocional, entre a partitura e o gesto espontâneo.
Nesta entrevista, que também fornece importantes pistas para o concerto de apresentação de Of Fragiity and Impermanence deste domingo no Centro Cultural de Belém, integrado na Festa do Jazz’25, conversamos com André Carvalho sobre a génese do disco, o equilíbrio delicado entre composição e improvisação, e o modo como experiências pessoais e estados emocionais se transformam em matéria musical. Acompanhado por José Soares, Raquel Reis, Samuel Gapp e João Hasselberg, Carvalho leva ao palco uma obra que convida à escuta profunda e à contemplação, confirmando um percurso artístico cada vez mais consistente e justamente reconhecido.
Depois desta data em Lisboa no CCB, Of Fragility and Impermanence voltará a ser apresentado na capital portuguesa a 28 de Fevereiro de 2026, no BOTA, Anjos, seguindo depois para a Tasca das Artes, em Lisboa, a 17 de Junho de 2026, e para o Teatro Municipal de Bragança a 18 de Junho de 2026.
Of Fragility and Impermanence nasce de reflexões muito íntimas — fragilidade, perda, memória, mudança. Quando começaste a perceber que estes temas estavam a tornar-se um corpo musical e não apenas uma vivência pessoal?
Essa é uma excelente questão. Creio que esse momento começou a ganhar forma entre 2020 e 2021, um período marcado por várias mudanças profundas na minha vida. Houve muitas coisas boas, mas também frustrações, alegrias e tristezas. Regressei de Nova Iorque sem saber que o estava a fazer de forma definitiva, tive de reajustar completamente a minha vida, fui pai por duas vezes e acompanhei o crescimento e a transformação dos meus filhos. Ao mesmo tempo, vivi de perto situações difíceis relacionadas com a saúde de familiares, incluindo a experiência da morte. O facto de ter passado a barreira dos 40 anos trouxe também uma espécie de despertar, uma necessidade de observar a minha vida pessoal e profissional a partir de outro lugar. Aos poucos, foi-se tornando cada vez mais evidente para mim que fazia sentido trazer estas reflexões para a minha própria música. Eu sentia-me uma pessoa diferente e precisava que a música reflectisse esse momento presente. A música e o processo criativo ajudaram-me a aceitar que todas estas facetas fazem parte da vida, tentando encarar a mudança não apenas como perda, mas também como desafio. Por todas estas razões, sinto que este é talvez o meu álbum mais pessoal até hoje, precisamente por trazer tanto do meu universo íntimo para o imaginário musical, esbatendo as fronteiras entre os vários “eus”.
Há no disco uma atenção profunda ao silêncio, ao intervalo entre gestos, ao que permanece suspenso. Como é que trabalhas a ideia de “respiração” e espaço enquanto elemento composicional?
Sim, creio que existe realmente esse cuidado em permitir que a música respire, fazendo do silêncio um elemento central, quase primordial, sobre o qual tudo o resto assenta. O silêncio convida a uma escuta mais atenta do que acontece à nossa volta — e quando digo “à volta” não me refiro apenas aos diferentes instrumentos do grupo, mas também à acústica do espaço, ao som da sala, ao ambiente que nos envolve. Em termos composicionais, trabalho essa ideia de duas formas. Em primeiro lugar, a escolha dos músicos é absolutamente essencial. Conheço-os todos muito bem, não só musicalmente, mas também a nível pessoal, e sei que conseguimos navegar no mesmo comprimento de onda que imaginei desde o início, apesar de cada um vir de universos musicais bastante distintos. Desde o primeiro ensaio procurei partilhar de onde vinha esta música, o que estava a sentir e como a imaginava, sem impor demasiadas orientações, confiando nas escolhas de cada um. Por outro lado, tento gerir com muito cuidado o que está escrito e o que não está, deixando espaço para que os músicos interpretem, respirem e contribuam com o seu próprio universo. Isso é sempre um grande desafio para mim, sobretudo porque gosto muito de escrever música: perceber até onde devo escrever e onde devo parar para que os outros possam fazer parte activa do processo de criação colectiva. E sei que este equilíbrio não é algo que se atinge de uma vez; é algo que se vai desenvolvendo. Houve várias tentativas e erros ao longo do processo, momentos em que trouxe material que talvez não estivesse ainda na direcção certa, mas que fizeram parte desse caminho de descoberta.
Ao longo da tua obra, nota-se um equilíbrio particular entre escrita rigorosa e improvisação aberta. Neste álbum, como é que decidiste onde termina a pauta e começa o território dos intérpretes?
Acho que esse processo de decisão é algo que continuo a aperfeiçoar. Não é um ponto de chegada, mas um caminho que tenho vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos, talvez desde The Garden of Earthly Delights. Com Of Fragility and Impermanence, o desafio foi semelhante, mas em moldes completamente diferentes, já que se trata de um grupo totalmente novo, com uma instrumentação pouco convencional, onde se cruzam o acústico e a electrónica. Uma das minhas principais preocupações é tirar o máximo partido das características de cada músico. Neste projecto em particular, todos são intérpretes excepcionais, com uma grande atenção ao som colectivo e ao blending que daí resulta. Cada um traz também uma bagagem musical muito ampla, o que lhes permite lidar com os desafios que proponho. Ao mesmo tempo, são todos excelentes improvisadores, e é importante para mim que esse lado esteja presente na música. Há situações musicais extraordinárias que dificilmente surgiriam se fossem totalmente planeadas, assim como há determinados ambientes que só se tornam possíveis através da escrita. Por fim, para que esse equilíbrio funcione, procuro manter-me o mais aberto possível às propostas que surgem dos músicos, evitando ficar excessivamente preso à ideia inicial. Muitas vezes, é no momento em que nos reunimos para tocar que a música encontra verdadeiramente a sua forma.
Este quinteto — José Soares, Raquel Reis, Samuel Gapp e João Hasselberg — parece escolher cada som com um cuidado extremo. O que procuraste em cada um deles para construir este universo tão delicado?
Sendo uma música que procura deixar mais espaço e mais silêncio, é natural que cada som ganhe um peso e uma dimensão maiores. Cada opção, seja escrita ou improvisada, tem de ser feita com um cuidado extremo. Logo nos primeiros ensaios, lembro-me de lhes dizer que gostava que uma parte importante da linguagem deste álbum passasse pelos sons mais frágeis — sons que podem estar no limiar da audição, ou que nem sempre são os mais consensuais em cada instrumento. Sons que habitualmente não são tocados, mas que transportam em si uma grande vulnerabilidade. Queria que esses sons estivessem presentes de forma constante ao longo do disco, talvez até sons que cada um de nós nunca tivesse trazido para fora da sua própria sala de estudo. O José Soares é um amigo de longa data e de muita partilha; talvez, a par do André Matos, seja um dos músicos com quem mais toquei. Conheço bem a sua linguagem e sei que está em permanente procura sonora. Ele traz sempre não só uma dimensão melódica e harmónica muito própria, mas também uma enorme atenção ao timbre e à cor do som. No caso da Raquel, queria que trouxesse uma dimensão muito ligada ao seu percurso na música erudita e contemporânea. A Raquel tem um arsenal linguístico muito rico em termos de som, timbre, articulação e textura, e isso era fundamental para o universo que eu imaginava. O Samuel é um músico extremamente completo, com uma formação que atravessa áreas muito distintas, desde a música e a composição erudita até à música improvisada. Tem uma linguagem melódica e harmónica muito sólida e, ao mesmo tempo, é um explorador profundo das possibilidades tímbricas do piano, nomeadamente através de piano preparado. O João foi talvez a maior incógnita para mim, sobretudo por a electrónica ser um território que me é menos familiar e como se integraria no grupo. No entanto, conheço o João há anos, conheço bem o seu trabalho e sei que partilhamos muitas referências musicais. Todo o trabalho que fomos fazendo, tanto em ensaio como em palco, foi uma verdadeira aprendizagem para mim sobre o cruzamento entre o acústico e a electrónica, e sobre a forma como a electrónica pode moldar o som do grupo. Gosto muito das várias abordagens e camadas que o João trouxe para o projecto, e cada vez que tocamos ele apresenta soluções diferentes.
“Trica de Irmãos”, apresentada com vídeo, parece condensar várias tensões do disco: a infância, o atrito, a ternura. O que te atraiu nesse gesto tão pequeno enquanto matéria musical?
Precisamente tudo aquilo que pode surgir do atrito e do conflito numa relação entre irmãos. Trata-se de um amor incondicional entre pessoas que partilham talvez uma das relações mais próximas que existem, onde a ternura convive naturalmente com o choque, a fricção e a diferença. Queria que este tema partisse desse gesto pequeno e quase íntimo para traduzir esse sentimento de afecto profundo
A crítica tem sublinhado a forma como a tua música se abre e revela aos poucos, como se exigisse uma espécie de ritual de escuta. Quando compões algo tão subtil, pensas no percurso emocional do ouvinte?
Confesso que não penso directamente no percurso emocional do ouvinte enquanto componho. Muitas vezes, o que acontece é que eu próprio me entusiasmo e emociono durante o processo, sobretudo quando a composição parte de uma ideia que não é exclusivamente musical, mas de um dos propósitos ou reflexões que me proponho explorar. Dando esta música um valor muito especial ao silêncio — e sendo, por vezes, o pacing de cada tema bastante lento — acredito que esse “ritual de escuta” de que falas possa surgir quase naturalmente. Talvez se traduza simplesmente na necessidade de parar e escutar, de estar presente, exigindo do ouvinte uma atenção diferente da habitual.
Vais estrear este projeto ao vivo na Festa do Jazz, no CCB. Como é que imaginas a tradução desta música — tão frágil, tão interior — para um encontro presencial com o público?
Acho que será um momento muito especial. Vamos poder apresentar esta música em Lisboa, uma cidade onde muitos de nós vivem, o que faz com que seja muito provável termos um público composto por amigos e pessoas próximas. Isso cria desde logo uma sensação de intimidade que é importante para este projecto. Apesar de a música pedir proximidade e escuta atenta, o Pequeno Auditório do CCB é uma sala com uma acústica excelente, capaz de amplificar não só o som, mas também a dimensão emocional que está por trás do repertório. Estou certo de que o espaço irá ajudar a música a respirar e a chegar ao público de uma forma muito directa. Estamos, por isso, com uma enorme vontade de partilhar esta música no dia 21 de Dezembro e de ver como ela se transforma nesse encontro ao vivo.
Ao vivo, sentes vontade de manter a arquitetura do disco ou preferes abrir novas portas e deixar que a música respire de outra forma?
Estou sempre aberto a ser surpreendido por novas formas de dar vida à música que desenvolvi. Aliás, isso é uma das coisas que mais valorizo no contexto ao vivo. Sei que, tocando com o José, a Raquel, o Samuel e o João, surgirão inevitavelmente novas soluções, novos caminhos e outras formas de respirar a música. O disco funciona como um ponto de partida, uma espécie de arquitectura inicial. A partir daí, o palco torna-se um espaço de descoberta, onde a música pode transformar-se, ganhar outros contornos e reagir ao momento, ao espaço e à energia de quem está a tocar e de quem está a ouvir.
Tens tido um percurso cada vez mais notado no cinema, e Atom & Void trouxe-te um prémio de Best Original Music. Trabalhar para imagem alterou a forma como pensas estrutura e atmosfera no teu trabalho para ensemble?
Sim, sem dúvida. Nos últimos anos tem existido uma verdadeira simbiose entre estes diferentes universos. Se, por um lado, comecei a escrever música para cinema com mais consciência e interesse, isso aconteceu também porque vários amigos ligados ao audiovisual me diziam que a minha música já tinha algo de cinematográfico. Foi sobretudo a partir de The Garden of Earthly Delights e de Lost in Translation que comecei a aprofundar esse interesse, procurando conhecer melhor a história da música para cinema, acompanhar o que se faz actualmente e compreender diferentes técnicas de escrita pensadas para imagem. Esse percurso levou-me também a explorar novas abordagens à composição, a aprofundar conhecimentos de produção musical e orquestração, e a tornar-me mais sensível ao pacing da música em relação ao que está a acontecer na imagem. Atrai-me particularmente a forma como a música pode carregar e transformar significados, e como a mesma música pode transmitir mensagens distintas consoante o contexto. Tenho a certeza de que, à medida que aprofundo este território, que se tem tornado cada vez mais estimulante para mim, todo esse universo artístico acaba por se repercutir naturalmente na música que escrevo e na forma como toco em contextos que não estão directamente ligados ao cinema.
O disco cruza jazz contemporâneo, música erudita e uma certa abstração poética. Alguma vez te preocupou onde o teu trabalho “encaixa” no panorama musical, ou essa liberdade é precisamente a tua forma de estar?
Não me preocupa de todo. Aliás, acredito que esse é um dos papéis fundamentais da arte: desafiar o ouvinte e colocá-lo num lugar de questionamento em relação ao que está a ouvir. Para mim, a música deve abrir espaço à dúvida, à curiosidade e à escuta activa, mais do que procurar encaixar em categorias pré-definidas. Essa liberdade não é algo que eu procure de forma estratégica; é simplesmente a forma como me relaciono com a música. Os diferentes universos que atravesso fazem parte de quem sou enquanto músico e enquanto pessoa, e surgem de forma natural no meu trabalho. Se isso coloca a música num território menos fácil de catalogar, então acho que está a cumprir exactamente aquilo que deve.
O título Of Fragility and Impermanence funciona quase como um manifesto. Sentes que esta é uma fase artística especialmente marcada pela necessidade de lidar com o que desaparece?
Sim, sem dúvida. O título funciona para mim quase como um manifesto sobre as várias dimensões, situações e experiências que tenho vivido nos últimos anos, e sobre a forma como artisticamente estou a lidar com elas. Sinto que, em parte, este trabalho é uma maneira de me confrontar com aquilo que desaparece, mas não necessariamente a partir de um lugar melancólico ou sombrio. Acho que a nossa sociedade ocidental tem, por vezes, uma relação estranha com temas como a morte, o luto, o crescimento ou o envelhecimento. No meu caso — e isto tem sido também um processo de auto-descoberta — a música tem-me ajudado a tentar aceitar, tanto quanto possível, essa efemeridade que é inerente à vida, sem a negar nem dramatizar em excesso.
Olhando para onde estás agora — este disco, o reconhecimento no cinema, a estreia em Lisboa — qual é a pergunta que te acompanha enquanto compositor? O que procuras, afinal, na música que fazes?
Excelente pergunta. Eu próprio não consigo responder-lhe de forma totalmente objectiva ou definitiva, talvez porque lido comigo mesmo diariamente e estou em permanente transformação. O que sei é que gostaria que a música que faço hoje fosse uma espécie de fotografia do meu momento presente, e que, de alguma forma, quem a escuta possa ser tocado da mesma maneira que eu me emocionei ao escrevê-la e ao tocá-la ao vivo com os meus amigos. Ao mesmo tempo, dou por mim a pensar muitas vezes no próximo projecto. Mesmo sem saber exactamente o que será, esse desconhecido não me inquieta tanto quanto me estimula. Fico expectante, curioso e entusiasmado com aquilo que ainda não sei, porque é nesse espaço de incerteza que sinto que a música continua a fazer sentido para mim.