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Fotografia: Geraldo Ferreira
Publicado a: 15/03/2024

A artista volta a fundir tradição e electrónica no primeiro álbum — Vou Ficar Neste Quadrado.

Ana Lua Caiano: “Mais do que nunca, é importante continuar a festejar, a gritar e a cantar”

Fotografia: Geraldo Ferreira
Publicado a: 15/03/2024

Aos 24 anos, Ana Lua Caiano traz a tradição de um povo inteiro e a novidade de uma geração que ainda pode fazer história. E, sozinha, faz da sua voz uma multidão. Com a teoria musical na bagagem e a efervescência no pensamento, entre o caos e o método, esta lisboeta faz casar a ruralidade com a contemporaneidade, guardando as origens portucalenses ao mesmo tempo que as leva até onde a tecnologia a permitir chegar. 

Caiano brinca com o som e com as palavras, num corte e costura de harmonias e ritmos, onde a sua voz canta de peito e coração abertos. E ela está pronta para ecoar dentro e fora de Portugal. Se por um lado esta sonoridade nos parece confortavelmente familiar, por outro degusta-se a experimentação como novidade. E sabe bem ouvi-la casar a música tradicional com a infinidade de possibilidades que a electrónica traz a este prato. E toda a gente sabe que em terras lusas os pratos são fartos e as doses generosas. O seu novo álbum Vou Ficar Neste Quadrado estreou hoje e já o podem provar. E Ana Lua Caiano falou-nos dele sobre uma taça de chá, num estranho e incerto dia pós-eleições. 



Contaste que esta tua expansão musical a solo veio do isolamento da pandemia e da impossibilidade de tocares com banda. Será que a própria solidão potencia a criatividade? 

Sim, acho que no meu caso a solidão sempre foi um local de criação. As canções, mesmo antes de existir o COVID, apareciam sempre quando estava à espera de alguma coisa ou de alguém, quando não conseguia dormir… Surgiam em momentos de transição, em que aparentemente não está a acontecer nada ou não estou com ninguém… Portanto, pelo menos para mim, sinto que é bastante importante para a criação. E realmente o COVID (claro que apesar de bastante difícil) deu-me, ao mesmo tempo, tempo livre. No sentido em que eu estava a estudar várias coisas ao mesmo tempo e andava louca pela cidade todos os dias… E depois, de repente não precisava de me deslocar, então ganhei tempo para começar a criar mais sozinha e ganhei um tempo que não existia.  

E estavas hiperactiva mesmo nessa altura quase… estanque. 

Sim, estava no curso de Belas Artes, em Design de Comunicação, e também no curso do Hot Clube a estudar voz. Eram dois cursos muito completos ao mesmo tempo, portanto estava demasiado intenso. Estava mesmo num momento muito frenético (continuou, durante o COVID entre as aulas), mas o Zoom deu-me o tempo para respirar. 

Este é o teu primeiro álbum, mas soa seguro e identitário. Como é que se chega aqui? 

Eu acho que este álbum acaba por ser uma continuação dos outros, que me possibilitaram chegar até aqui. Ou seja, sinto que os outros EPs são trabalhos mais pequenos, mas que apesar de tudo foram momentos bons para sentir o meu modo de criar, e que se calhar o primeiro EP era ainda mais tímido e não com todas as ferramentas que gostaria de ter, porque as coisas se vão aprendendo. Sinto que foi um caminho de aprendizagem e também de evolução e que este… meu estilo — seja lá o que quer que isso seja — está mais consolidado, porque eu estou mais confortável também a compor e a produzir e tudo o resto é mais fácil.  

Na tua música, tua voz brilha como ponto central, que nem maestro… 

Pois, eu sinto que a voz é mesmo o elemento principal… e depois os ritmos. Apesar de ter estudado muito a teoria, são raras as canções que têm uma harmonia, acho que só o “Nem Mal Me Queres” no primeiro disco é que tem, porque a harmonia depois é dada com as vozes e a música é toda trabalhada à volta destas vozes. O que cabe para além destas vozes que já são muitas. 

E qual é a tua relação com os instrumentos e a experimentação do som? 

Quando eu estou a criar uma canção, a primeira fase da canção aparece com a melodia que eu canto nesses momentos de espera ou de solidão, que pode ser a qualquer altura do dia, mas que para mim não é uma coisa que eu consiga forçar. Aparece por acaso — e essa parte também é assustadora! Pode deixar de… E depois existe um momento mais racional em que, num dia: “Ok, hoje vou estar aqui concentrada, vou ver que ideias é que tive nestes momentos de solidão.” E depois pego em pequenos pedaços de voz e começo a gravar no programa do computador os bombos, os adufes e todos os outros objectos que vou tendo assim à minha volta… assim de uma forma um bocado frenética, sem pensar ou ter julgamento. Agarro nesta colher, começo a bater e depois, de repente aquilo está uma confusão, mas é mesmo assim. A primeira versão da música é ali tudo ao molho, apesar de ser mais racional no sentido em que vou para o estúdio, e continua a ser espontâneo, onde começo a cantarolar um baixo ou uma coisa que pode ser um piano… É assim um momento muito frenético de criação, quase sem qualquer tipo de julgamento ou limite. E depois existe ainda o terceiro momento: “Ok, agora tenho este monte de coisas mal gravadas, à pressa.” É mesmo porque tenho uma ideia, e depois tenho outra e não quero perder nenhuma. Depois, nesta fase final, é que vou regravar, limpar tudo e gravar bem. 

Portanto és tu numa sala cheia de instrumentos e colheres e tachos à volta, como se fosses uma criança a ver como é que as coisas fazem som? 

Sim, é mais ou menos isso [risos]. O mais caótico possível! 

E isto tudo forma aquilo que ouvimos tanto falar associado a ti: a tradição num novo formato. De onde vem ela? 

A tradição acho que vem principalmente dos cantautores relacionados com a música de intervenção que ouvia (e oiço muito) como o Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, José Mário Branco… E apesar de terem feito muitas músicas, muitos deles também pegaram em músicas de tradição oral e fizeram canções. Portanto inspirei-me muito na abordagem rítmica, na abordagem harmónica. E depois, obviamente, também numa coisa que continua a ser uma fonte de inspiração e de descoberta que é A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que introduz sempre grupos diferentes, instrumentos diferentes, pessoas a tocar com coisas de trabalho… E estou sempre à descoberta, não com o objectivo de pegar em alguma coisa, mas só com o objectivo de aprender e ver o que é que existe. Também gosto muito de Gaiteiros de Lisboa, Sopa da Pedra… e essas influências que trabalhavam muito com a polifonia também foram muito importantes. 

E a solo, este recurso de sobreposição de vozes serve para recriar o sentimento do coro português e trazer esse sabor popular? 

Sim. Quer dizer, nunca fiz isso mesmo com esse intuito, mas sempre gostei de fazer harmonias. Então ia cantando uma voz e depois fazendo outra por cima… As coisas vão aparecendo, mas nunca fica bem um coro, porque o coro tem várias pessoas diferentes e ali existe quase a ideia de enxame, de uma voz que faz imensas coisas diferentes. Mas sim, depois tem essa parte que é inspirada na música portuguesa nesse sentido: as harmonias, o coro, o cante alentejano… Que têm esta ideia de multiplicidade de vozes, mas que no meu caso só no “Deixem O Morto Morrer” (mesmo na versão de estúdio) existem mais pessoas para além de mim a cantar. Mas em todas as canções sou só eu e isso também é propositado porque cria um efeito específico. Meio… E.T.

E a parte visual, onde entra na tua identidade enquanto artista? 

Acho que a parte visual também é bastante importante. Na realidade, foi uma coisa que começou a ser explorada durante a pandemia. Por acaso, quem faz os videoclipes é a minha irmã (que é realizadora). Eu ia fazendo uma canção e ela ia fazendo um vídeo. Era assim a forma que nós tínhamos um bocadinho de nos distrair, assim simples, com coisas do dia-a-dia. Mas sinto que a minha linguagem visual se pegou muito à linguagem estética dela e que depois, quando comecei a fazer as minhas canções, continuou a fazer sentido trazer essa linguagem com que tínhamos brincado durante a pandemia. Na maior parte dos vídeos, agora há uma equipa gigante, portanto obviamente que agora há muito mais ideias e pessoas a trazê-las, mas sinto que estas ideias iniciais da estética acabaram por ficar e se tornarem bastante importantes para o projecto.



Se no início do disco ouvimos falar mais de bate pé, na música “Cansada” parece que vais mais dentro. Queres falar-nos sobre ela? 

Achas que a música “Cansada” é mais pesada? Essa ou a partir daí? 

Essa e a partir daí. 

Ainda não tinha pensado nessa abordagem. Estou tanto tempo a trabalhar nas canções e a pensar na ordem que sinto que ainda não tenho uma visão afastada do disco para o poder mesmo analisar. Portanto gosto quando as pessoas que vêm de fora começam a ver coisas que eu não via. Sim, talvez. Sinto que este disco é, no geral, mais dançável em relação aos anteriores, com mais canções que puxam mais para a dança, mas por outro lado as letras são sempre um bocadinho introspectivas e de reflexão sobre o quotidiano. São canções que reflectem preocupações, coisas que vou ouvindo, coisas que vou vendo, portanto são bastante realistas e, se calhar, esse peso também se sente na própria forma de fazer as canções. Se calhar ficam mais pesadas, mas ainda não tenho esse distanciamento para poder avaliar isso. 

E há alguma música que leve ou traga mais de ti? 

Eu acho que… Bom, mesmo que não falem directamente sobre mim, tenho uma relação muito pessoal com todas as canções. Há umas que demoraram mais tempo, há umas que são mais antigas, outras mais novas… Então existe sempre uma relação muito próxima. E lançar um disco é sempre um bocadinho assustador. É algo em que eu estive a trabalhar durante tanto tempo e que toda a gente vai ouvir e toda a gente vai ter uma ideia diferente! Mas, por exemplo, a “De Cabeça Colada Ao Chão” fala sobre uma pessoa que vai trabalhar e está cansada… Foi numa altura em que estava a fazer vários cursos e tinha uns trabalhos de design à parte e houve momentos de cansaço e com a sensação de rotina… Portanto, se tivesse de escolher, se calhar escolhia essa. 

E contas alguma coisa com este álbum? Também li que já tinhas um álbum pronto há uma data de tempo. É o mesmo? 

Muitas destas canções, mesmo dos primeiros EPs, foram feitas mais ou menos no mesmo período. Houve um período de muita criação. O primeiro EP era suposto ter saído em 2021, portanto as músicas já existiam antes disso. E estas vieram um bocadinho num grupo, por isso é que eu as decidi guardar para depois, porque faziam sentido em conjunto, e eu e a editora com que estava na altura achámos que fazia sentido para um primeiro trabalho ser um coisa mais pequena, daí o EP. E como estas canções eram mais uma unidade, não as queria separar em duas coisas diferentes, então deixei-as em stand by, apesar de terem vindo mais ou menos na mesma altura.

E quase que num ápice o teu nome internacionalizou-se. Como está a ser este boom? 

Acho que, apesar de tudo, fico super contente que as músicas estejam a ser ouvidas, que estejam a ser bem recebidas e que consiga tocar (e no ano passado também comecei a ter concertos lá fora, o que tem sido muito bom), mas tento não perceber. Como sou eu própria, é difícil perceber o que está a acontecer à volta. Sei que estão a acontecer coisas boas e estou super contente, mas tento não me focar em se estão a falar muito ou a falar pouco. É avançar e fazer aquilo de que gosto e logo se vê! 

Já falaste sobre muitos dos momentos de criação surgirem dos passeios a pé e das noites mal dormidas. É a cabeça que não pára? 

Sim. Sinto que a minha cabeça sempre foi muito… Eu estou a aprender a parar, mas tive sempre muita dificuldade. Acho que é porque estudei na António Arroio (Design de Produto) e existe a coisa de ter sempre trabalhos para entregar e projectos gigantes. E tinha imensos amigos noutras áreas que tinham uma aula e depois a tarde toda livre, e eu sempre tive muito trabalho, e ainda estava a estudar música… Então fui desenvolvendo esta necessidade de estar sempre a fazer qualquer coisa, portanto sinto que a minha cabeça não pára. Eu adoro ver filmes, mas, por exemplo, se estou em casa a só a ver um filme… Eu consigo, mas na minha cabeça: “Devia estar a fazer isto ou devia estar a fazer aquilo”. Mas também gosto de ter esses momentos: existirem momentos de seca, no sentido em que não estou a fazer nada. Antes andava sempre com o computador atrás para ir despachando qualquer coisa e agora ando a aprender a arranjar mais momentos mortos, que acho que ajudam muito à criatividade. Porque a cabeça continua, mas manifesta-se na forma de canções, que é aquilo que eu gosto de fazer. 

E é só para a música que canalizas aquilo que precisas de passar cá para fora? 

Hum… Diria que sim. Já fiz coisas noutras formas — e agora nos espectáculos de apresentação tenho muitos vídeos que fui eu que fiz, mais performáticos —, mas o que é mais natural para mim, que aparece mais recorrentemente e que tenho mesmo necessidade diária, é expressar-me através da música. 

Não é de todo minha intenção politicar, mas ao dia de hoje… o que há agora para falar? 

Bem… Hoje foi um dia complicado. Faz 50 anos do 25 de Abril e acho que continua a ser relevante — e este ano ainda mais — falar da importância da liberdade, da igualdade e de todos os valores que fomos conquistando ao longo destes cinquenta anos e lembrar-nos que nada está assegurado. No sentido em que ideias mais extremistas vão sempre aparecer, mas temos sempre de lutar. E espero que este ano se juntem ainda mais pessoas ao 25 de Abril, a descer a Avenida da Liberdade, porque acho que, mais do que nunca, é importante continuar a festejar, a gritar e a cantar. 


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