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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/07/2021

Dar espaço para que cada um coloque as suas próprias questões.

Ana Bento (Que Jazz É Este?): “Queremos ser um festival integrador, de liberdade”

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/07/2021

Há quem continue a arranjar maneiras de fazer as coisas rolar: é o caso do Que Jazz É Este?, festival viseense que vê a sua 9ª edição acontecer entre amanhã e domingo. Orquestra de Jazz de Espinho & Mário Costa, Carapaus Afrobeat, Femi Temowo, InnerVille, Elisa Rodrigues (que surge para substituir o espectáculo cancelado do Colectivo Gira Sol Azul com Tony Momrelle) e Edu Miranda Trio com Luanda Cozetti são alguns dos nomes que fazem parte da programação deste ano.

Em forma de antecipação destes dias de notas azuis que estão a chegar a Viseu, o Rimas e Batidas colocou uma série de questões a Ana Bento, a directora do evento, para entender como se constrói algo desta dimensão e quais as principais preocupações em tempos de pandemia.



Prestes a arrancarem com a 9ª edição, que balanço fazem da história construída até agora?

É uma história que nos parece bem bonita e que se tem vindo a construir de forma muito genuína e sempre em estreita relação com a comunidade e o local onde o festival acontece. O festival tem, aliás, uma pré-história… o festival nasce de um workshop de jazz intensivo que organizávamos para a comunidade de músicos e jovens músicos da região de Viseu. Esse workshop foi crescendo, quer pela afluência de participantes quer pela extensão para concertos de apresentação do trabalho do workshop, jams e apresentações de grupos dos músicos que orientavam a formação. A dada altura, percebemos que já não fazia sentido continuar a chamar workshop a uma dinâmica que tinha crescido para várias vertentes, nomeadamente os concertos, e então passámos a assumir a iniciativa como festival.

Na pergunta que dá nome ao festival pressente-se também uma intenção: a de questionar dogmas, talvez, de pensar criticamente sobre a arte e a cultura. Este é um festival pensado com espírito crítico?

Sim, sem dúvida! E é, simultaneamente, um festival que pretende ser integrador, não fosse o grande princípio do jazz a liberdade, não é? Sentimos que há ainda um longo caminho a percorrer para a convivência saudável de formas diferentes de encarar e praticar a arte no geral e a música em particular. O festival Que Jazz É Este? pretende dar esse espaço aos artistas e, ao promover esse tipo de espaço, pretende fazer chegar a pessoas diferentes, diferentes formas de estar na música e no jazz. Dar a provar e deixar que cada um tome cada sabor à sua maneira, sempre em questionamento. Eu às vezes faço uma brincadeira que é passar por algumas pessoas a meio de um dos concertos e perguntar-lhes… ‘que jazz é este?’.

Tendo em conta o tipo de programação que apresentam — concertos, espectáculos ao domicilio, rádio, palestras, etc. — diriam que são um festival diferente?

Isto de ser diferente… tem muito que se lhe diga! Parece-me que nos últimos anos tem havido uma tendência para os festivais se fazerem de outras iniciativas que não apenas de concertos. Penso que é uma tendência muito interessante, acredito nas ligações, nas conexões, nas relações das várias áreas, pessoas e formas de fazer arte e fazer chegar a arte às pessoas. No caso do Que Jazz É Este? estas actividades paralelas aos concertos surgem também de forma muito orgânica, precisamente pela forma de estar e de ser do núcleo que faz a associação Gira Sol Azul e das relações com as pessoas e grupos de pessoas que nos rodeiam. Sempre tivemos essas dinâmicas e, em relação aos outros festivais, talvez este tenha um maior número de iniciativas paralelas aos concertos, o que lhe confere naturalmente um caracter mais diferente.

A Gira Sol Azul tem um pensamento muito definido sobre a actividade artística. Imaginamos que não se limite apenas a este evento, mas vá para lá dele. Podem falar-nos um pouco dos projectos em que estão envolvidos?

A Gira Sol Azul foi fundada em 2006, por um grupo de jovens músicos. Tínhamos estudado juntos, continuávamos a envolver-nos em episódios de formação e começámos a desenvolver trabalho profissional juntos. Desenvolvemos, desde esse início, quer projectos de formação (como a organização de workshops), quer trabalho em banda (bandas de rock como os Tranglomango que têm também uma raiz ligada à música tradicional, os Aurora Brava com letras e música do Bruno Pinto e bandas de jazz como o Colectivo Gira Sol Azul geralmente liderado pelo Joaquim Rodrigues), quer concertos para famílias com um foco especial na infância (e nesta área desde 2009 que comecei a colaborar com a Casa da Música e alguns dos projectos que nascem lá têm produção da Gira Sol Azul e seguem depois o seu caminho de gravação de disco e circulação, como é o caso do Pequenos Piratas ou o Tangerina). Dos projectos de formação surgiram músicos da geração a seguir à nossa que se juntaram à equipa, como o Leonardo Outeiro que está com o seu projecto Oh Yes Pigs Can Fly em curso e o Miguel Rodrigues que lançou há pouco o seu primeiro disco, Empa. Entretanto, pelo caminho, começámos também a desenvolver vários trabalhos artísticos com a comunidade, fruto também da influência que tivemos enquanto formandos do curso de animadores da Casa da Música com o Tim Steiner e a Sam Mason. Dos projectos com a comunidade destacamos os A Voz do Rock, o colectivo de avós octogenários de Viseu que interpretam alguns dos temas mais emblemáticos do rock português dos anos 80 e 90, mas que se estão também agora a lançar na aventura da música original. A Orquestra (In)fusão é um projecto que integra vários grupos informais e amadores da região na criação colectiva de repertório original e entre vários concertos já se apresentou em palco na abertura do festival Europeade com 150 músicos. Neste momento, já está também activa a geração seguinte que é a dos filhos de quem fundou a associação. São, portanto, três gerações diferentes que se juntam e mesmo dentro de cada uma destas gerações há interesses e características diferentes o que depois se reflecte também nos projectos que desenvolvemos. 

Em tempos de pandemia, quais foram os maiores desafios que tiveram que contornar ou mesmo resolver para poderem desenhar a programação deste ano?

O maior desafio, sem dúvida, tem sido resolver o entendimento com a delegação de saúde de Viseu. No ano passado fomos apanhados de surpresa, não fazíamos ideia do que era isto da pandemia, por um lado sentíamos que as vidas tinham que continuar, mas tínhamos também muito receio de tomar a iniciativa de fazer o festival acontecer. O Município de Viseu, que é o principal financiador do festival através do programa Viseu Cultura, esteve sempre em estreita e incrível comunicação connosco, fez a ponte com a protecção civil e polícia municipal e juntos conseguimos erguer a edição de 2020 num formato muito adaptado mas que aconteceu e com o qual ficámos todos muito felizes: artistas, público, organização. Este ano pensávamos que, com a experiência positiva que tivemos e, agora, com um maior entendimento e percepção do que é e como funciona a pandemia, com uma consciência muito clara das regras que têm que ser cumpridas e de que nos episódios de encontro para ver e participar espectáculos não há historial de focos de contágio ao longo destes largos meses… é espantoso como a delegação de saúde local continua a desaconselhar este tipo de iniciativas e como andamos até à ultima a gerir e a fazer uma ginástica incrível para fazermos o festival acontecer.



Num momento em que ainda se lida com um conjunto vasto de incertezas, acham importante a cultura dizer “presente”, oferecendo um vislumbre do futuro que todos desejamos?

Sem dúvida! Mais que nunca! Se antes tínhamos vários outros contextos de encontro, de partilha, de proporcionar bem estar e tudo isso contribuir para uma vida saudável e equilibrada das pessoas, hoje é mais que óbvio que vivemos um contexto dificílimo de tentativa de sobrevivência a vários níveis, não só apenas o físico, mas o mental e emocional. A cultura é vital, sempre foi, há-se ser sempre e é importante esta tomada de consciência de que se por um lado percebemos a fragilidade do contexto actual por outro sabemos que é real a possibilidade da cultura estar presente e disponível em segurança para todos. Tem é que haver vontade não só de quem a faz e promove, mas também de quem a financia e de quem viabiliza e permite dentro do quadro legal que ela aconteça.

Podem guiar-nos um pouco pelo cartaz deste ano? O que vos leva a seleccionar estes artistas em particular?

O festival pretende ser eclético e diversificado, ocupar os espaços preferencialmente de ar livre como os jardins da cidade, integrar o trabalho que é desenvolvido localmente e deixar marcas nas pessoas da região, nomeadamente os jovens músicos para os quais são fundamentais contextos de profissionalização na área da música — estas são as características que nos levam a escolher os artistas que compõem o cartaz. Começamos por exemplo com os MAU que, para além do concerto que acontece nos claustros do Museu Nacional Grão Vasco, vão estar ao longo de três dias intensivos a trabalhar com jovens músicos no contexto do workshop de jazz, cujo trabalho desenvolvido é também depois apresentado em concerto no jardim do Hotel Grão Vasco. Privilegiamos também concertos especiais que, geralmente, incluem a participação de um convidado que lhe dá esse caracter especial, como é o caso de Edu Miranda Trio que, para além do virtuosismo num instrumento pouco comum no jazz, o bandolim, se faz acompanhar da cantora Luanda Cozzeti, os Golpe! que se fazem acompanhar de Masa Kamaguchi no contrabaixo ou Vessel Trio que juntam Marcos Cavaleiro, Hery Paz e Javier Moreno e ainda a Orquestra de Jazz de Espinho a que se junta o brilhante baterista Mário Costa. Tentámos este ano recuperar a dimensão internacional que vemos com grande importância para a riqueza e diversidade do festival e, nesse âmbito, teremos o guitarrista Femi Temowo e a sua música inovadora sob a influência das canções do povo Yoruba. O concerto especial do colectivo Gira Sol Azul com Tony Momrelle, um dos músicos da soul mais emocionantes e significativos do palco britânico moderno, terá que ser adiado, mas vai acontecer em data a anunciar brevemente e por isto abrimos espaço para receber a cantora Elisa Rodrigues, voz inconfundível e única que já deixou a sua impressão digital em palcos internacionais de grande visibilidade. Não menos importante é destacar os projectos emergentes, como os Innerville, que movendo-se entre HipHopLand, SoulBlock, RnBHill, JazzHeights e FunkPark prometem surpreender-nos, o quarteto do Carlos Peninha, um músico que se tem mantido a desenvolver o seu trabalho enquanto guitarrista e compositor a partir da região interior e que tem dado cartaz no panorama nacional com excelentes críticas ao seu mais recente disco Ponto de Vista, Luís Figueiredo ao piano num concerto intimista a solo onde a improvisação livre ocupa um lugar de destaque e ainda a natureza específica dos Carapaus Afrobeat com a sua energia contagiante que fechará o festival.

A Rádio Rossio é também uma marca do Que Jazz É Este. Quem vai estar este ano em emissão?

“Rádio Rossio, a improvisar desde 2015”, como dita um dos jingles desta rádio que se faz ao vivo a partir de uma caravana. Infelizmente este ano, devido ao aperto das regras face ao contexto pandémico, a Rádio não se vai instalar ao vivo no parque Aquilino Ribeiro como previsto inicialmente mas vai emitir em directo nas frequências das rádios locais, essencialmente a partir dos estúdios da Rádio Jornal do Centro com uma passagem pela Rádio Emissora das Beiras e outra pela Estação Diária. Aos comandos dos mais variados programas de autor, para além dos radialistas das rádios da região (Paulo Lopes, Amadeu Araújo, Maria Helena, Catarina Machado, Tozé Novais e Brunex), estarão convidados de projectos afectos a rádios nacionais como o colectivo Rádio Aurora, Maria Inês Santos, Rui Miguel Abreu e Isilda Sanches.

Já começaram a pensar na vossa 10ª edição? É um número redondo que merece algo de especial, não?

Houve alturas, sim, em que começámos a pensar na 10ª edição, mas o contexto actual tem sido tão exigente e desgastante que temos que canalizar todas as forças possível para fazer acontecer a 9ª edição e pensar um dia de cada vez. Mas cá dentro, no fundo, está essa vontade de uma 10ª edição especial e também de votos de que o festival possa continuar a desenvolver-se, a fazer o seu caminho e a ir ao encontro das vontades de quem o faz, de quem se envolve, de quem dele usufrui.

Finalmente, um festival desta natureza só deve ser possível com um forte apoio da autarquia. Há compromissos de futuro com a câmara de Viseu?

Desde a primeira edição que tem havido compromissos de futuro com a Câmara de Viseu, mas este é um ano particular, temos essa consciência… para além do contexto instável do país e do mundo, é ano de autárquicas e Viseu atravessa um período de particular instabilidade a nível político. No entanto, com a afirmação do festival ao longo destes nove anos e do reconhecimento que sempre sentimos das várias forças políticas que foram acompanhando o desenvolvimento do festival, do feedback do público em geral quer das pessoas da cidade quer do impacto que temos sentido a nível nacional, temos a crer que a câmara de Viseu dê continuidade ao seu papel fundamental de activar mecanismos financeiros que permitam a continuidade do festival.


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