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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 04/10/2022

A imaterialidade também se canta.

Amélia Muge: “Em Portugal, parece que quem pode ser moderno são só os que têm menos de 30 anos”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 04/10/2022

Amélias é um disco pandémico. O mais recente álbum de Amélia Muge, autora, compositora e formadora que trabalhou com, por exemplo e para não estar a mencionar a sua extensa discografia, José Mário Branco ou Fausto Bordalo Dias, é dona de uma voz que se multiplica com o auxílio precioso de António José Martins nos arranjos (e nas subtilezas) resultando num dos mais preciosos lançamentos do ano. Antes da sua actuação no Imaterial, festival que acontece em Évora por estes dias, o Rimas e Batidas foi descobrir mais sobre um trabalho em que o ensaio é uma acção contínua e uma forma de desdobrar infinitamente as canções.



Gostava que começasses por falar daquilo que vamos poder ver no concerto em Évora. Isto porque, quando ouvi o Amélias pela primeira vez, a primeira coisa que me ocorreu foi: “como é que ela vai resolver isto ao vivo?”

Encaro da mesma maneira o meu trabalho, seja ele para disco ou para concerto. O meu disco é uma espécie de 13 ensaios. Tive essa sensação com todos os meus discos. Ele parou ali porque a gente tem de parar, não é? [Risos] Há outro lado, que é, “quantas coisas continuaram a passar pela minha cabeça e que eu gostava de ter ensaiado e deixado registado no disco?” Digamos que, por um lado, o concerto activa essa coisa do ensaio. Vai ser mais um ensaio.

Há esta ideia de que aquilo que nós apresentamos também é influenciado pelos próprios sítios e pelas condições de produção que existem. Nesse concerto de Évora, vou ter outro grupo comigo. Por muito que eu goste de estar lá a ver o outro grupo, isto cria-me problemas, porque vou ter de cortar meia hora do meu concerto normal. Cria-me problemas com aquilo que é o respirar do concerto. Eu toco com três pessoas extraordinárias — e já irei falar nelas — e quero criar ali alguns momentos com o público, que não sejam só aquela coisa do pedir palminhas e não sei quê — há coisas engraçadas que se podem fazer mas, para isso, é preciso espaço, tempo e a criação de um silêncio que, em 45 minutos de concerto, não dá para fazer. Encarando isto como mais um ensaio, o concerto será sempre novo e dá-nos oportunidade de experimentar outras coisas. Vou estar com três artistas maravilhosas: a Catarina Anacleto no violoncelo e na voz — normalmente, ela não usa a voz, mas canta muito bem —, a Maria Seia na percussão e voz — cantar também não é uma coisa que ela faça de momento — e a Rita Maria — essa sim cantora — que também vai trazer algumas componentes de teclados — não neste concerto, em que assumo eu, mas ela assumirá mais isso ou outro instrumento no futuro. No dia 5 de Novembro estarei em Espinho e, eventualmente, outras coisas acontecerão, até porque será um concerto completo. Então, eu tenho estas três pessoas, que me trazem vozes e instrumentos.

Uma outra componente que queremos desenvolver nos concertos é a movimentação, a criação de coisas mais cénicas, mais teatrais. Há um tema — que não fará parte deste concerto — o “Diferente”, do [Wassily] Kandinsky, que desempenha esse mesmo papel, o de provocar uma certa animação corporal, e mais nada. O que nós pensámos foi, “que outras coisas audiovisuais é que um concerto pode ter?” Para mim, é claro: há não só esse trabalho de performance, que elas vão assumir em várias alturas, como existe também a parte óbvia da imagem. Quase que diria que este concerto acaba por ser uma ligação entre uma forte componente de vozes e uma forte componente de imagens em que nós acabamos por ser os mediadores do que se passa entre essas duas coisas. Aliás, a própria iluminação vai obedecer a uma ideia, que é ter o mínimo de iluminação. As penumbras, digamos, vão estar mais visíveis em certas alturas.

Algo que não pode, em momento algum, deixar de estar presente no concerto, porque seria destruir o princípio do meu próprio trabalho, sou eu e as minhas vozes. As vozes vão ser lançadas e eu vou interagir com elas. Elas vão interagir, mas não vão, nunca, fazer as vozes que eu faço. Isto é uma coisa natural. Eu própria já não vou fazer apenas aquilo que fiz no disco. Há um lado nesta coisa do acompanhamento vocal, muito aberto, que me permite até improvisar. No álbum, esse lançar de vozes é permanente. No concerto pode haver uma primeira parte em que não acontece. Ou seja, o apontamento de como é que eu cantei em disco está lá, mas há toda uma primeira parte — ou mais para o meio, ou mais para o fim — em que as coisas vão ser diferentes. Eu jogo com essas possibilidades.

Outra coisa que eu também acho ser muito forte é a forma como nós trazemos as coisas para o espaço do concerto. Vão existir momentos delas, as três, a cantar alguns temas da música tradicional portuguesa ligada aos coros de mulheres. Dentro do guião, esses momentos são cruciais para se entender, inclusive, de onde é que eu venho. A tradição é a portuguesa. Tivesse eu tempo e outras coisas mais poderiam ser feitas, dentro daquilo que poderão ser as vozes delas em outros quadros da canção tradicional ou popular.

A ideia é esta: as minhas vozes têm de lá estar comigo. A tecnologia é importante para isto. Mas estas 13 propostas, como ensaios que são, ainda têm muito para dar. É este o meu princípio. Este disco, apesar de ser um disco só de vozes, ainda tem muito para dar em termos da forma como a música pode interagir com o público. É algo que não farei neste concerto, pelas razões que falei. Mas quero muito encontrar espaço para estar num concerto sozinha, onde consiga uma comunicação com as pessoas, para que elas sintam que são importantes no som que vai acontecer. Não tanto na adesão do ponto-de-vista da participação através de palmas ou coisas do género. É mesmo numa perspectiva de criação. Neste concerto, não vou ter tempo. Mas faço muita questão de levar para o palco coisas que tenham uma ligação com aquilo que são os princípios do próprio Imaterial. O Imaterial não é só um tema. É, no fundo, a forma como estes temas tocam de maneira diferente nas pessoas. É uma forma de criar alternativas em situações de espectáculo, na forma como nós podemos comunicar com as pessoas. Elas, no fundo, também vêm para isso. Não só para tentar resolver um problema de um disco que, aparentemente, é irresolúvel.

Falaste-me na questão da tecnologia. O que é que vais estar a utilizar? Um pedal de loops para a voz?

Pensei muito numa coisa que muita gente usa. Isso de criar uma primeira voz, depois entrar outra e mais outra. Sou uma defensora daquilo que são os pequenos recursos — vivi em Moçambique e sei que a pior coisa que pode existir é esta ideia do “pobrezinho” — e tento fazer o impossível com os recursos que tenho. Não tenho a tecnologia que gostaria para poder fazer outras coisas. Tenho alguma pena. Se pensar na Laurie Anderson, que é uma das minhas referências, basta ver que quando dá entrevistas ela está no estúdio dela. Ela tem, de facto, um estúdio em casa. Isto não é uma tecnologia que se alugue. Ela tem, em casa, os recursos que lhe permitem fazer as coisas da maneira que eu gostaria. Esta coisa do “agora gravo isto aqui, depois isto ali” e mais não sei o quê… Para mim não é suficiente. No concerto, o que acontece é que são disparadas as minhas vozes e alguns pequenos loops, dentro daquilo que já existe no disco. Mas há coisas que, em comparação com o disco, são diferentes. Como, por exemplo, a voz digital. Alguns dos acompanhamentos fui eu que criei em teclado. Também vou usar algumas percussões. Ao nível da tecnologia, eu podia recorrer a várias máquinas. Para usar uma só máquina que grava e repete o que eu faço… A estrutura dos meus temas não está adaptada a isso. São coisas que se fazem, também, dentro de uma grande liberdade, do improviso do momento. Eu não fiz isso no disco pelas mesmas razões. Tivesse eu o apoio de um banco [risos]. É uma das coisas que eu lamento. Em Portugal, a partir de uma certa idade — e com as mulheres é muito pior —, parece que quem pode ser moderno são só os que têm menos de 30 anos.



Falaste na Laurie Anderson. Temos visto que ela, tendo a idade que tem, continua a ser chamada por instituições. Apesar de ser num país capitalista, existe um ecossistema para as artes, que reconhece muito o talento e o génio. Há um sem-número de prémios e subsídios que lhe permitem ter o tal estúdio que estavas a descrever.

E o que é que a Laurie Anderson está a fazer? É por isso que, para mim, essa parte do ensaio é muito importante. Enquanto temos capacidade e uma pessoa dá provas de que continua a ter, de facto, um universo em que é possível experimentar coisas novas — coisas que a gente olha à volta e vê que ainda não existe. Acho que seria natural que existisse esse financiamento. Os jovens não têm culpa nenhuma, mas existe esta coisa do “vamos para a novidade! Vamos apostar nos novos, porque os velhos já deram o que tinham a dar e nem deram grande coisa”. Há uma espécie de fobia. Os mais velhos, quando aparecem, é dentro daquela imagem… Por norma é para ser homenageado. Isto dava muita conversa. Em termos práticos, eu não vejo esse apoio a quem está a fazer experiências destas. Temos um apoio fabuloso da Sociedade Portuguesa de Autores. Se não fosse a SPA, não tinha feito este disco, como muitas outras pessoas [não teriam feito]. Mas é um apoio específico para a criação dos discos. Desse tipo de apoios vamos conseguindo ter. Dava jeito ter um pai rico porque não se fazem fortunas com o tipo de trabalho que eu faço [risos]. Mas eu convivo muito bem com isso. E ainda bem que nasci em Moçambique, num país onde, na altura em que estava a começar a dar as minhas primeiras interrogações musicais — como é que eu abordava a música ou o que gostaria de fazer — não tinha nada. Só tinha um gravador e uma guitarra. Nem piano tinha. O nível de resistência das pessoas… Acho que o mais importante é estar vivo, com tudo o que isso possa trazer de consciência. Eu já nem vou buscar aquela metáfora do homem que pode escrever na prisão. Acho que nós, ainda assim, já temos suficientes coisas para que se possa inovar com elas. Eu acredito que ainda se possa inovar com o quadro preto. Eu acredito nisso. São sempre meios. Desafios. Voltando à Laurie Anderson: uma das últimas coisas que ela fez foi com uma tecnologia a três dimensões… Nem sei bem o que aquilo é. Curiosamente, como aquilo é preto e as imagens são todas em branco, quase parece… Traz-me a memória do quadro preto, do traço do giz na lousa. Mas é isto: “com os recursos que a gente tem, o que é que pode fazer?” Por outro lado, também acho que a tecnologia, na grande parte das vezes, vejo-a a ser usada… Eu olho para aquilo e penso, “olha para mim a ser tão moderno”. Isto é: usa-se a tecnologia, os efeitos, como forma de demonstrar que temos equipamento, sabemos usá-lo e estamos no pico da história da música. Para mim, as coisas não são assim. De todo. A tecnologia não pode ser um valor artístico por si só. Não sei se é uma forma de fazer com que eu lide muito bem com esta vontade que eu tinha, às vezes, de ter outros desafios, a nível de tecnologia. Se são, ainda bem [risos]. Convivo muito bem com isso.

Outro dos pontos para os quais este disco nos remete é um no qual também já tocaste, do canto coral feminino, que é uma coisa muito nossa. Dirias que isso é algo que está a ser bem divulgado, bem documentado, ou continua a ser uma espécie de segredo da nossa tradição?

Acho que já respondeste [risos]. Uma coisa é o mundo dos estudos, das recolhas etnográficas… Há, aliás, uma candidatura a Património Imaterial, da UNESCO, por parte das Canto a Vozes, no feminino. E acho que, além desses meios, os grupos locais continuam muito activos. As pessoas podem andar distraídas, mas tudo aquilo que são festas locais, aqueles momentos de sacralidade colectiva, que pode ser tanto numa aldeia como numa cidade, em que sejam reconhecidos pelas pessoas como algo seu. O canto de mulheres é extremamente importante. Conheço melhor alguns sítios do que outros. Estou muito atenta ao trabalho que, por exemplo, tem vindo a ser feito por um grupo como o CRAMOL, de Oeiras. Integram tudo aquilo que sejam as programações das festividades locais, sejam elas dentro de um espaço próprio ou até mesmo numa igreja — e a acústica de uma igreja torna qualquer um daqueles cantos sagrados. Quem anda distraído ou quem considera aquilo um mero episódio sem importância nenhuma passa à frente. Mas elas continuam. E a quantidade de grupos que existem no país e a quantidade de trabalho que se faz… Até mesmo as tentativas, de uma coisa que eu acho fundamental, que é a criação de laços entre eles, continua. A possibilidade, inclusive, de encontros e de coisas que podem ter expressão num palco ou não. Por acaso, quando foi o Misty Fest, propus à UGURU um espectáculo chamado “O Canto Profundo Acapella”. Era um encontro entre quatro grupos, todos eles muito diferentes. Foi maravilhoso ver como miúdas tão novinhas já pegam no património de uma maneira diferente. E pegam, também, noutras coisas. Interessam-lhes certas vozes e, de repente, vão buscar qualquer coisa ao Brasil ou podem até cantar coisas que nem sejam em português. E elas adoraram aquelas pessoas, cujo canto é um canto mesmo muito tradicional — e vice-versa. Essa riqueza existe e eu sou privilegiada por participar em muitas dessas coisas que acontecem. Agora, como é que isso chega às pessoas? Acho que, se calhar, é preciso termos um espaço maior no campo da divulgação. Não há, sequer, espaço nas televisões. Ou é pouquíssimo para a comunicação de trabalhos artísticos. É muito difícil que o país perceba, através dos principais meios de comunicação, que estas coisas existem. Quem está nos locais e tem a sorte de poder participar sabe que é verdade. É evidente, também, que não são só grupos de mulheres. Há outras coisas. Mas todas essas outras coisas — sejam as bandas ou os grupos corais mistos, só de mulheres e até de crianças — continuam a existir. Acho que seria muito interessante essa realidade de meter as pessoas em contacto com aquilo que está ao lado.

Deste a entender que este disco poderia ser um ponto final. Não sei se será um “ponto final, parágrafo”, umas reticências ou outra coisa. Mas quem lança um disco como este Amélias diria que quase tem o dever de o prolongar, de apresentar novas ideias, explorar novas hipóteses e continuar a fazer esses ensaios de que falavas. De forma muito pragmática, como é que tu, neste momento, olhas para o teu futuro enquanto artista?

Tenho dificuldade em olhar para o futuro porque acho que nunca olhei para ele, enquanto artista. As coisas, quando surgem, surgem quase como uma força tão grande, no sentido de “eu tenho de perceber melhor isto”. Por um lado, é um sentido de perceber melhor, como foi o caso dos dois CDs que fiz com a Grécia. É um projecto que gostaria de continuar, mas de outra maneira. Todas as vezes que fui para o palco, eu estava quase… Aliás, numa dessas vezes eu vim do hospital, tal era a quantidade de trabalho. Porque não é só o cantar e o compor. É toda a produção que é necessária. E é evidente que ela não é uma produção de grandes palcos, porque se pressupõe que este tipo de trabalho é só para um pequeno público. Ao pressupor isto, acaba por acontecer, de facto. Haveria muitas maneiras de grupos que enchem os coliseus se preocuparem e criarem aqui, se calhar, algumas parcerias, que permitissem amenizar aquilo que, digamos, o caminho mais comum da comunicação nas rádios ou nas televisões. Não digo tanto nos jornais, porque acho que os jornais continuam a ser uma excepção. É nos jornais que eu encontro mais informação sobre o que está a acontecer com os grupos. Mais do que na rádio e na televisão. Quando há apoios, esse apoio é para aquela semana ou para aqueles 15 dias. Aí ouve-se, de facto. Por vezes até à exaustão. Os jornais são uma excepção e devemos isso a pessoas como tu, deixa-me dizer-te. O futuro, para mim, sempre foi isto do “eu tenho de conhecer aquilo melhor. Porque isto é do outro mas tem tanto a ver comigo”. No tema que eu fiz com os gregos, “Uma Pena Que Me Coube”, digo: “há um amor que eu não conheço…” Eu penso, “mas como é que passei a minha vida toda, até agora, sem este amor? Como é que isto aconteceu?” No fundo, é uma relação amorosa que se estabelece. Não é uma noção de carreira. “Ah, porque a minha carreira agora…” Não! As coisas são assim. Acontecem. Com o Amélias, o que é que aconteceu? Fui eu a pensar, “como é que a gente resiste a este confinamento e a esta pandemia?” Naquela altura, é quase como que estar a chamar todos os nossos santinhos, todas as nossas memórias, as coisas que nós fizemos e, dentro do que fizemos, quais as coisas que gostaríamos de aprofundar. Há sempre uma dessas coisas que aparece como “a possível”. Tal como acontece com os recursos. “Se não há nada, não podemos trabalhar”. Eu usei o nosso pequenino estúdio caseiro, com o Zé Martins a fazer aqueles arranjos maravilhosos, mais os meus dois amigos, a Catarina Anacleto e o Salgueiro, que não podiam deixar de estar porque são nossos irmãos. Eu quero aqueles dois sempre que possível [risos]. Quando eu digo que fechei um ciclo, quero dizer que fechei esta possibilidade de me deixar encantar desta maneira, ao ponto de fazer um trabalho novo. Mas isto, se calhar, pode ter a ver com a pandemia, ou com a idade, ou com questões familiares pelas quais estou a passar de momento, que são difíceis. Em primeiro lugar, o que eu penso é, “vou ter energia?” Não se coloca a questão da criação. Põe-se é a questão de ter capacidade de fazer mais qualquer coisa para mostrar aos outros. Eu vou continuar a ter os meus caderninhos. Há um trabalho meu, diário, que não sei se vai desaguar para algum lado. É só isso que eu quero dizer. Foi isso que eu senti quando concluí o Amélias. “Eu não vou deixar que a paixão ou a resistência me levem a pensar que tenho de fazer”. Eu não tenho nada de fazer! Já fiz muito! Eu não tenho que fazer. E esta obrigação de ter de fazer, contra as dificuldades… Isto não é porque as pessoas não gostam do meu trabalho ou porque não vou para os coliseus e encho. Eu acredito nas minorias. Acredito fortemente no trabalho das minorias. Há uma coisa que eu vou, de certeza, continuar a fazer. Os projectos colectivos, o participar nos projectos dos outros. Quero pôr cá fora algumas coisas da minha escrita, só ainda não sei muito bem em que formato. Não sei se será num site. Não faço romances nem nada dessas coisas. São aquelas coisas que tu te vês obrigado a escrever, sabes? Tu passas por sítios e, “eu quero escrever sobre isto”. Essa matéria vem de 30 anos a andar no terreno da música em Portugal e lá fora. “Meus amigos. Acontecia isto, isto e isto”. Houve coisas que pioraram, outras que melhoraram e há coisas que nem deviam acontecer nunca mais. Ainda por cima, dentro de capas e conteúdos que parecem fantásticos, como “world music” ou “imaterial”. Todas essas coisas parecem fantásticas, mas quando as vamos ver por dentro não são. Grande parte delas não são tão fantásticas assim. O que eu senti, dentro daquilo que eram os projectos de world music, foi que, pela primeira vez… Eu não sou rica e tenho uma casa que não é nada de especial. Mas eu exijo, pelo menos, o hotel de três estrelas. Exijo que a minha cama não seja de palha, como aconteceu! Mas isto só começou a acontecer com a world music. Ter um hambúrguer ou qualquer coisa execrável para comer? Só aconteceu com a world music! São circuitos cujo único benefício é o de permitir a que pessoas do terceiro mundo tenham possibilidades de se mostrarem em palco. De resto, só empobreceu. É uma das razões pelas quais deixei de cantar lá fora. Não foi por falta de convites. Acabou! Vejo os meus colegas, fantásticos, dizerem “quero lá saber. Quero é receber no fim”. Eu não quero isto, não quero ser transformada num produto exótico para banhistas que ao fim do dia passam por ali só porque é exótico e porque é uma coisa que não se ouve em mais lado nenhum. Eu não quero essas coisas! Isto é para reforçar este lado, de que se quiser fazer mais alguma coisa, vou ter de passar por isso tudo. Vai ser de uma maneira mais inteligente, porque há coisas que eu não quero voltar a viver. Isto não tem a ver com artes, tem a ver com a sociedade.


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