No passado dia 3 de Outubro, foi lançado Roulette, o mais recente álbum de estúdio do pianista e compositor Alfa Mist, que leva já uma carreira de feitos inovadores e música que transcende as barreiras de qualquer estilo, apresentando um jazz de fusão que une os mais variados estilos como o nu jazz, hip hop, soul (e neo-soul), entre tantos outros. Neste LP, ouvimos um caráter densamente jazzístico, mas que se apoia em pequenos plot twists na forma de acordes de passagem, para além de incorporar uma elaborada dimensão construída apenas a partir de um ensemble de cordas friccionadas que vitaliza e enriquece a música em criatividade e originalidade.
Desde a faixa de abertura, “Reincarnation”, que ouvimos um caráter maravilhosamente etéreo e belo a nível das cordas. Já a dimensão vocal no trabalho de Alfa Mist, quando aparece, é muito mais desperta e enérgica, como se respirasse vida, e intrinsecamente bem-articulada na dimensão letra-música. Das cordas, por vezes com um caráter ligeiramente contrapontístico, que revela uma construção coesa e bem pensada composicionalmente, ouvimos música cinemática e intemporal, que nos remete aos arranjos para grupos de cordas de bandas sonoras de Henry Mancini, por exemplo. Normalmente mais presentes no início de cada tema, estas passagens cultivam uma harmonia que soa natural, quase reminiscente do trabalho de Bill Evans, mas sempre com um pequeno detalhe, tão singelo como um simples acorde de passagem, que faz girar o leme da progressão harmónica para paragens completamente diferentes — é esta criatividade em criar o inesperado que nos prende o ouvido e nos faz sempre esperar por uma nova surpresa, mais do que um desenvolvimento harmónico que seja acirradamente moderno.
Em faixas como “Roulette”, que dá nome ao álbum, continuamos esta vertente jazzística com uma bateria demarcadamente groovy, que será, porventura, o instrumento responsável por manter a música sempre cativante e capaz de prender o ouvinte — os seus padrões são sempre responsáveis por descolar do óbvio. As linhas de trompete são dotadas de uma naturalidade intemporal e desenvoltura a nível de condução melódica verdadeiramente deliciosas de ouvir, quase ao estilo de Miles Davis. Estas passagens mais improvisatórias são curiosas por, muitas vezes, se dividirem em secções que adotam sabores muito diferentes — há momentos que refletem um movimento harmónico livre, e outras uma fusão com o funk.
A própria exploração do timbre neste álbum, que nos traz um evocativo trompete com surdina ou uma guitarra aquosa e etérea em “Between Lives”, por exemplo, destaca-se pela mesma versatilidade que ouvimos nas texturas a nível de cordas. Quando temos a presença da voz feminina, a guitarra aproveita ao máximo esta sonoridade para revelar um ritmo que cria novidade, permitindo individualizar o tema sem distorcer uma condução melódica transparente da linha vocal. Há, também, um travo a neo-soul que nasce dos efeitos de reverb e sobreposição vocal utilizados na voz, conferindo-lhe um caráter muito mais preenchido. Em faixas como “9 Months”, a música é intimamente ligada à letra; a voz lenta e ritmada vem complementada por retardos tão densamente melancólicos como a harmonia de um tango.
O álbum apresenta-se, portanto, como uma demonstração madura e original marcada, principalmente, por uma dimensão harmónica cativante e uma exploração a nível textural criativa e dinâmica. É um disco onde a ambiguidade estilística é sinónimo de genuinidade e a atenção ao pormenor funciona como chave para a vitalidade, cor e inegável mestria musical demonstradas pelo artista inglês.