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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/04/2023

Música com alma.

Alex Figueira: “Tento sempre adquirir novas linguagens”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/04/2023

A meio das preparações para rumar a novas paragens e enquanto vai embalando a sua certamente pesada bagagem – instrumentos, equipamento de estúdio, generosa colecção de discos e demais posses materiais que se acumulam durante toda uma vida -, Alex Figueira faz uma pausa para conversar com o Rimas e Batidas sobre Mentallogenic, o álbum que, de facto, marca a sua estreia em nome próprio.

O músico com ascendência portuguesa, criado na Venezuela e há quase duas décadas estabelecido em Amesterdão, que, como faz questão de frisar Andy Votel, o cérebro da Finders Keepers, é “um mágico metronómico” capaz de “desvendar o tecido total da vossa colecção de discos para expor um vórtice onde a Punkumbia e uma tropicália-transplantada deveriam estar”, tem no seu já considerável catálogo pessoal entradas como Fumaça Preta ou Conjunto Papa Upa que foram, na verdade, laboratórios onde foi refinando uma fórmula única que contém elementos recolhidos nas mais criativas músicas das Américas todas – as do Norte, do Centro e do Sul – de muitas Áfricas – sobretudo lusófonas -, que aponta às pistas, mas também aos labirintos da mente, que tem psicadelismo, dub e tanto mais dentro.

Com a Music With Soul, editora com um já significativo catálogo de lançamentos em sete polegadas, Figueira divertiu-se a fornecer combustível para as pistas de tendência mais tropical. Depois, no ano passado, deu-nos uma explosiva “banda sonora”, Maracas, tambourines and other hellish things O.S.T., que é prova clara da profundidade da sua visão, combinando bases rítmicas de pronunciada dançabilidade com coberturas sintetizadas de efeito lisérgico. E tudo isso embalado com a sua própria arte gráfica, tão expressiva e inventiva quanto a sua música. Miles Cleret, da Soundway, descreve a obra de Alex Figueira como “incendiária e lisérgica” e garante que nela se descobre “música sul-americana e caribenha de um dos produtores verdadeiramente autênticos e excêntricos da cena. Pode sempre contar com Alex Figueira para surpreender e inovar, mantendo-a sempre verdadeira e real”. Totalmente verdade.

Através do Zoom, o músico, compositor, produtor, investigador e pedagogo abre as portas da sua mente e conta-nos de forma generosa e transparente como nasceu o disco com que agora se volta a apresentar ao mundo.



O número de catálogo já diz tudo: Music With Soul LP01. Começa aqui a aventura da tua label com este formato mais ambicioso e também vem assumido o teu nome na capa. É um disco que foi inteiramente produzido por ti. Começo por te perguntar o que é que significa este disco no conjunto da tua carreira, que já não vai tão curta quanto isso?

O disco marca um ponto-de-partida em várias frentes. Como tu bem disseste, é o primeiro LP do selo, que é uma coisa em que eu já vinha pensando há algum tempo. Mas o facto de eu não querer dar aquele passo tinha que ver com questões de dinheiro, logística ou por não ter o aparato necessário. Parece que não, mas um LP é bem mais complicado do ponto-de-vista logístico. Os singles facilitam muita coisa por várias razões — não vale a pena estar aqui com tecnicismos, basta dizer que é mais complicado [risos]. Quando eu acabei o disco, o áudio, eu fiquei convencido que só fazia sentido pô-lo cá fora naquele formato. Não é que só fizesse sentido, mas ele realmente merecia esse formato. Como amante de discos que sou, achei que ele merecia essa justiça. Antes de ir procurar um selo, decidi que era um bom momento para saltar para a água fria e me atirar de cabeça. Ele significa isso, em primeira instância. Em segunda instância, é o assumir, finalmente, aquela fase a solo das coisas, algo que vinha sendo um bocado mais casual, anteriormente. Eu comecei a lançar coisas no meu nome por sugestão já não me lembro exactamente de quem. Mas era tudo muito pouco premeditado, era muito mais uma consequência das músicas que se iam acumulando no processo de criação. Desta vez, foi um bocado mais frontal, mais assumido, digamos assim.

Sentes que estás a explorar algo de novo, musicalmente falando, aqui? Eu sinto este disco como uma espécie de sínteses de várias das tuas experiências musicais anteriores. Há alguma coisa nestas músicas que nunca tinhas experimentado antes?

É uma boa pergunta. Para dizer a verdade, quando eu tento fazer música, gravar uma coisa nova, eu faço questão de tentar sempre alguma coisa que não tenha tentado. Às vezes pode ser uma coisa bem subtil, bem mínima. Por exemplo: experimentar gravar um instrumento que já tinha gravado 50 mil vezes com um microfone novo; ou gravá-lo de uma outra forma; ou a tocar com outra baqueta. Eu tento sempre dar um ângulo, porque senão fica chato, fica repetitivo. Eu tenho muito medo de me repetir, porque é uma coisa à qual, pessoalmente, sou alérgico. Eu não gosto da repetição, não gosto da monotonia, não gosto da fórmula. Acho que é uma coisa que acontece cada vez mais na indústria musical, sobretudo na questão discográfica. Há muitos selos que vejo a fazer as coisas bem e que, a partir do momento em que descobrem “a fórmula”, ficam ali um bocado fixados. Isso é uma coisa que não me atrai. Tento sempre fugir. Umas vezes de forma mais proactiva, mais consciente, outras de forma mais subconsciente ou inconsciente. Para responder mais directamente à tua pergunta, eu não sei se, musicalmente, tenha sido muito mais arrojado do que o que já tinha feito anteriormente. Acho que, se formos pôr uma lupa em cima e formos ver exactamente os géneros que fazem parte da mistura, com certeza haverá ali coisas que eu nunca tinha tocado anteriormente. Coisas que puxam mais, sei lá… Há, por exemplo, a música que fecha o disco, que tem um steel guitar. Eu nunca tinha gravado um steel guitar. Foi a primeira vez que gravei steel guitar porque não tinha, foi uma coisa que arranjei ali numa loja de velharias. Estava para ali arrumada desde então e eu pensei: “olha, deixa lá ver como isto fica!” E ficou bom. Tens outras músicas com umas flautas maradas que eu arranjei. Também é mais uma daquelas falcatruas em que, às tantas, aparecem uma data de flautas no estúdio que eu nem sabia tocar. E pronto, entraram no disco. Tem muitos momentos assim.

E em termos de linguagens rítmicas, estás a experimentar ritmos que nunca tinhas experimentado tocar antes?

Tem algumas misturas que eu até poderia afirmar que nem sei apontar directamente o que é que são. Tem algumas coisas, na bateria sobretudo, que são sínteses de várias coisas com as quais estou mais ou menos familiarizado, mas acabaram por ganhar uma forma um bocado mais singular. Portanto, com certeza. Eu tento sempre adquirir essas novas linguagens e incorporar naquilo que eu já consigo fazer mais à vontade. Isso é uma coisa que eu faço muito naturalmente, porque gosto. Como há as pessoas que gostam de falar línguas e procuram sempre aprender uma nova, ou como uma pessoa que faz uma tatuagem e, se ficar bem, vai querer outra. É mais ou menos igual. Se me fores perguntar exactamente quais são os ritmos, fica mais complicado.

Não deixa de ter alguma graça: dizes que não gostas de te repetir, mas a tua linguagem rítmica vive muito do hipnotismo que deriva da repetição, precisamente. O groove assenta na repetição e isso não deixa de ser curioso.

Nesse aspecto, assumidamente. Quando estava a falar de me repetir, estava a falar de fazer exactamente a mesma coisa.

Há toda uma história — que quase remete para, não sei, uma visão extraordinária — da qual este disco resulta. Queres falar-me sobre o lado conceptual do disco?

Não quero desvendar tudo. Quero deixar a maior parte possível à interpretação das pessoas. O que eu te posso dizer é que, a história que está pode detrás, não é totalmente verdade e também não é totalmente mentira.

Entendo que há ali um romancear de algo. Mas também, exactamente como dizes, sinto que há ali um fundo de verdade. O que mais sinto neste disco é que há uma demanda qualquer, uma procura qualquer.

Há, sem dúvida. Para resumir uma história longa: eu recebi uma encomenda muito específica e deixei o deadline aproximar-se demasiado. E depois tive um acidente enquanto praticava ju-jitsu que me obrigou a tomar medicação. O disco foi feito a lidar com estas duas coisas: um prazo que estava prestes a acabar e dores físicas que exigiam medicação. Foi no meio deste contexto que eu tive de fazer o disco. Foi duro.

Portanto o lado psicadélico do disco é real, não é uma coisa estética, não é?

É uma mistura, sim. A minha cabeça não estava bem. Eu não vinha gravar todo drunfado, porque eu só usava medicação realmente para dormir. Se não fosse isso, não podia dormir. Aliás, eu passei duas ou três noites sem dormir nada. Estava aqui pelo estúdio, sem sono nenhum na cabeça. A minha cabeça não estava muito bem. Acredita.

Avançando na conversa: tu já tiveste experiências colectivas, a última das quais Fumaça Preta, e és um músico que colabora com frequência com outros músicos — seja a gravá-los, a participar nos seus próprios projectos, como é o caso do Rocky Marsiano. Como é que foi, desta vez, estares completamente sozinho nessa missão criativa? O que é que mudou?

O processo de criação absolutamente individual não era terreno completamente virgem para mim. Eu já tinha feito bastante isso. Uma das minhas outras bandas, o Conjunto Papa Upa, os primeiros singles e quase 80% do LP foram feitos nessa base. Não era um processo completamente novo para mim. Era uma coisa com a qual já estava mais ou menos à vontade. E quando digo mais ou menos, é porque é uma coisa que eu já sabia fazer e não tinha qualquer problema, mas era uma coisa que fazia de maneira muito demorada. Para fazer uma música sozinho, eu demorava não sei quantas sessões e ficava ali, no labirinto do perfeccionismo e aquelas coisas todas. Desta vez, por causa da pressão e do cenário todo, eu tive mesmo de fazer o disco e não houve sequer tempo para isso. O perigo do perfeccionismo e do self-doubt com que qualquer artista tem de lidar, pura e simplesmente ficou de fora. Não havia tempo para tal coisa [risos]. “‘Bora! Tá bom! Siga para a próxima!” Isso foi uma coisa que eu… Quando eu estava lá, no meio do processo, sentia que era uma pressão quase asfixiante, quando eu consegui acabar não me fartei de agradecer por ter sido colocado naquela situação. Foi como se eu tivesse entrado num túnel. Eu já tinha trabalhado com deadlines e não sei o quê, mas desta maneira foi… Estavas a falar de aspectos psicadélicos e, para mim, aqueles dias foram como se eu entrasse num túnel. É a única maneira que consigo para te descrever. Tive aqui fechado no estúdio como nunca tinha estado e só saia daqui para comer e dormir, mais nada. Nesse contexto foi, sem dúvida, uma experiência única que eu não tinha vivido, naqueles termos, anteriormente.

Já ponderaste, pensaste ou planeaste fazer alguma coisa com este material em palco? Esse plano existe ou não existe? Pensas nisso mais lá para a frente?

Estou neste preciso momento a trabalhar nisso. Consegui arranjar mais dois músicos que entendem mais ou menos a linguagem, nos termos que eu plantei, e estamos a ensaiar. Não te sei dizer quanto tempo é que vai demorar, porque há várias complexidades. A primeira é o facto de eu não querer ter uma banda muito grande, por questões logísticas e de pouca paciência da minha parte [risos]. Quero fazer tudo com mais duas pessoas. Vamos ser três. Outra das razões é eu gostar do formato. É fascinante. O três é um número mágico. Além de ser mágico e atraente, acrescenta muitas dificuldades do ponto-de-vista musical e logístico. Cada um de nós vai ter de tocar duas ou três coisas. No meu caso, vai ter que ser a bateria e a percussão ao mesmo tempo. O disco tem muita percussão, como tu com certeza notaste. E eu acho que a percussão é fundamental. Numa primeira instância pensei em acabar com a percussão, fazer só bateria. Mas foi óbvio que não ia dar. Para o disco manter a sua essência são necessárias as duas coisas. Eu estou, basicamente, a aprender a tocar tudo o que eu gravei com duas mãos [risos].

Isso significa que estás neste momento a elaborar um kit muito específico para tocar este repertório?

Exactamente. Estou neste exacto momento… Antes de falar contigo, tive uma chamada com um amigo meu, que é uma pessoa bastante singular. É coleccionador de percussão vintage, aqui na Holanda, que por acaso também é mestre de ferro [risos]. É uma pessoa muito fixe, muito querida. Estive a comentar com ele vários dos problemas que eu estou a ter agora, nomeadamente com o equipamento, que não existe, para eu poder fazer algumas coisas que eu acho serem necessárias. Ele está a ajudar-me. Estamos a tentar maquinar ferramentas para conseguir levar a coisa avante.

Nesse caso, para apresentações ao vivo, também já existe algum deadline? Tens alguma data marcada ou ainda não?

Ainda não há deadline. Estou a pensar seriamente em arranjar um deadline, para pôr uma beca de pressão. Sem essa pressão…

Se funcionou criativamente no álbum, pode funcionar criativamente, também, agora na resolução desta fórmula.

Sem dúvida.

Quando eu apanhei o disco em Portugal e tu agora me disseste que ainda não o tinhas tido na mão, imaginei que ele estivesse a ser prensado em Portugal. Para quem, como tu, opera um pequeno selo que depende tanto deste formato, a vida para quem cria e lança em vinil tornou-se muito complicada nos últimos tempos não tornou?

Nada que tu não saibas. Com certeza que sim. Está mais difícil do que nunca esteve. Quando eu comecei a lançar vinil, lembro-me que esperávamos por volta de três semanas, no caso mais grave, e a malta queixava-se. “Três semanas!” Se nós soubéssemos onde íamos acabar… [Risos] Meu Deus. Olho para trás, para aqueles primeiros singles que eu fiz, e rio-me. Três semanas, meu Deus. Quem me dera agora [risos].

E não é só o ser mais rápido. Eu imagino que os orçamentos também deviam ser muito mais baixos do que agora, não é?

Era tudo muito mais fácil e mais barato, sem dúvida. Não quero fazer desta pergunta um muro de lamentações, mas está muito difícil fazer vinil. Da maneira como tento olhar para a coisa, do ponto-de-vista mais optimista, estamos a chegar àquele cúmulo das dificuldades, onde os abutres que estão a aproveitar a onda vão cair, porque vai ser insustentável. E nós, que estivemos sempre ali pelo amor à camisola, vamos continuar a surfar a onda, mas a descer. É assim que eu quero acreditar que a coisa vai funcionar. Vamos ver.

Mas tocas num assunto que é mesmo pertinente de se discutir nesta altura: este formato, que esteve praticamente extinto… Eu li muitos e, se calhar, até escrevi um ou dois artigos a decretar a morte do vinil, porque parecia inevitável ali, algures nos anos 90 – as editoras simplesmente deixaram de lançar vinil. Reparei nisso também nos departamentos de promoção: havia alturas em que se ia às editoras e saia-se de lá com sacos cheios de vinil promocional nas mãos. Isso desapareceu porque as editoras deixaram de acreditar no formato e deixaram de o usar. As únicas labels que continuavam a dar trabalho às fábricas de discos eram pequenas labels, muito centradas no universo da música de dança, na música electrónica para clubes — chama-lhe o que quiseres — e noutras margens, do metal às músicas experimentais. Mas eram coisas micro. Não havia Madonnas a imprimir em vinil nesse tempo. Não deixa de ser irónico que as editoras que mantiveram isto vivo são as que estão neste momento em sérios riscos de sobrevivência, por causa de não terem acesso a um formato que foi sempre o formato em que elas se expressaram, não é?

É trágico, sim. Tem qualquer coisa de trágico e de cómico, também. É exactamente como tu estás a dizer. É bastante injusto, bastante irónico, mas é o que temos. Eu confio e quero acreditar até os números não darem mais. O formato está na moda, há pessoal que aderiu ao formato por X ou Y. Não vou julgar ninguém, mas o que é certo é que as fábricas, se se conseguiram manter graças a pessoas como nós, aproveitaram e pronto, viraram-se para aí. Eu não julgo, porque acaba por ser inevitável. Se tu tens um cliente que faz uma encomenda de 50 mil e tens outro que faz uma de 500… Eu percebo perfeitamente. Compreendo e, felizmente, não estou no lugar deles, não tenho de fazer essa escolha. Agora, eu acho que, olhando para outras crises económicas — de outras matérias primas, outros produtos — é inevitável o rebentar da bolha. Estamos a chegar lá. Estive em Bruxelas no fim-de-semana, entrei numa loja lá — que era o mais parecido com aquelas lojas que tivemos muito no início dos anos 2000, estilo FNAC, Virgin, essas coisas assim — e era tipo um comeback, estás a ver? [Risos] Não havia um único disco lá à venda por menos de 40 euros! Isto é ridículo! Como é que um disco pode valer 40 euros?! Não dá! Eu não me importo de pagar 40 euros por um disco ou outro, que eu goste, mas uma pessoa que esteja a começar, a entrar neste universo, não tem maneira de construir uma colecção com estes preços. É inconcebível. Não dá! O mercado sempre se conseguiu manter porque havia um equilíbrio mais ou menos saudável entre a velha guarda — pessoas como tu, que nunca deixaram o formato de lado — e a nova guarda — pessoas como eu, que agora estão a passar mais para a velha guarda. As pessoas da minha geração, quando entraram… Eu comecei a comprar vinil como um louco, porque dava! Era mais barato que o CD, praticamente. “Fixe. ‘Bora!” Para as pessoas que agora estão nesse ponto, onde eu estive no final dos 90/início dos 2000, está impossível. As pessoas não têm como pagar isto. Não dá. O que eu acho que vai acontecer… O ecossistema não tem como se manter apenas com uma parte, a da velha guarda. Isso não dá.

Entretanto, estás prestes a mudar-te.

Estou, sim, para Bruxelas. Acho que estou a sentir falta dessa mudança. É curioso: se for ver os números, em Janeiro fez 17 anos desde que estou em Amsterdão. Esse número fez com que Amsterdão se tornasse no lugar onde já morei por mais tempo em toda a minha vida. Antes disso tinha sido a Venezuela — fui-me embora de lá antes de fazer 17 anos. Portanto, Holanda — e Amsterdão, especificamente — tem sido o meu lugar. Apesar do número ser pesado, de ter essa força, acho que não tem contribuído tão significativamente na minha personalidade e na minha formação, quer seja artística quer seja pessoal. Não sei se é por causa da maneira como eu trabalho — estou praticamente sempre aqui fechado a fazer música — ou se é por causa das diferenças culturais, que eu acho que são bastante grandes, apesar do que possa parecer. A realidade tem sido essa. A Holanda é, inquestionavelmente, um país interessante por causa das vicissitudes históricas das comunidades que fazem vida aqui. No entanto, eu acho que, na prática, para um músico que faz vida aqui, tem sido um bocadinho mais difícil. Pelo menos para mim tem sido. Sempre tentei, digamos, inserir-me, procurar os pontos de encontro musicais entre todas as comunidades que são muito interessantes do ponto-de-vista musical, a do Suriname, a de Cabo-Verde… Neste país faz-se música que eu considero muito boa e muito excitante, rítmica e musicalmente. No entanto, esses pontos de encontro, se eles existem, para mim tem sido muito difícil encontrá-los. Acho que há muita segregação aqui, na Holanda. Não sei se é auto-imposta, por parte das comunidades, ou se é o próprio sistema que impõe, mas sei que essa segregação é inquestionável. Cada vez que alguém tenta misturar as duas coisas fica um bocado aquela coisa que lemos muito na imprensa anglo-saxónica — fica “pastiche”. Não há uma integração verdadeiramente orgânica, como tem havido, por exemplo, acho eu, tem havido mais em Portugal nas diferentes comunidades africanas. Acho que em Portugal há muito mais promiscuidade entre a música de Angola e a música de Cabo Verde do que existe aqui entre, sei lá… Não há essa mistura entre a música cabo-verdiana e a música do Suriname. Se ela existe, eu não a tenho visto.

Que papel é que Portugal representa no meio disso tudo? Antes de me dizeres que te ias mudar para Bruxelas, ainda pensei que me fosses dizer que vinhas para Portugal, embora Portugal também esteja muito complicado neste momento. Mas vês-te a vir tocar aqui com mais frequência no futuro? Como é que Portugal se encaixa nesses teus planos de vida que estás a renovar por esta altura?

Estás a fazer boas perguntas, Rui. Daquelas que metem um gajo a pensar.

É suposto [risos].

É complicado porque, apesar de eu ter pessoas em Portugal cujo trabalho respeito muito, acompanho e que admiro até certo ponto, eu não sinto que Portugal tenha muito interesse no meu trabalho, para além de toda aquela moda que foi Fumaça Preta. Não sinto particular interesse. E isso traduz-se no pouco acompanhamento da imprensa, no facto de não receber muitas ofertas para shows… Mas se me perguntares se eu gosto de ir a Portugal tocar, digo-te “obviamente”. Qualquer razão para ir a Portugal tocar é boa. Mas em termos práticos não tenho sentido isso. Não quero que isto soe a queixume ou choradeira, mas é um facto. Se isso mudar, terei todo o gosto do mundo, porque gosto sempre de ir a Portugal apresentar o meu trabalho. Para mim é sempre especial, pela razão mais óbvia. E mesmo sem ser essa razão mais óbvia, das minhas raízes, também pela questão musical. A linguagem musical que eu hoje em dia pratico tem muito a ver com o tempo que eu passei em Portugal, com a música que dá vida a Portugal, especificamente o eixo Brasil-África, muito mais do que a música portuguesa em si, sendo muito honesto. É, para mim, um lugar fundamental. A presença dos elementos “lusófonos” — de todo aquele triângulo — na minha música é muito forte. Há pessoas que conseguem identificar imediatamente e tu, de certeza, serás uma delas. Outras não percebem: “Epá, há qualquer coisa aqui, uma tristeza qualquer…” [Risos] Eu digo-lhes: “Epá, ya!”

Faz parte do ADN, não é?

Totalmente.


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