CD / Digital

Alcool Club

O Último a Sair

Artesanacto / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 15/04/2021

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Em tempos de desconfinamento, as portas de Alcool Club voltaram a abrir-se – portas essas que, na verdade, nunca chegaram a fechar-se com carácter definitivo, ainda que este regresso parecesse cada vez mais indefinido até se concretizar. Ainda assim, mal ouvimos “Hoje fumo de forma diferente…”, o célebre verso que abre a “Intro” de O Último a Sair – o terceiro disco, editado pela Artesanacto, do clube encabeçado por Praso, Montana e Sanguibom que se estende a todos aqueles que com eles partilham rimas e brindes –, as memórias distantes de noites livres, regadas a bom vinho e ainda melhor rap voltam a entrar como recordação viva do dia anterior; como encontrar um amigo de longa data, depois de vários anos sem contacto, com quem dois dedos de conversa fluem em três tempos. Foi com essa familiaridade que nos chegou o novo álbum dos Alcool Club, um disco composto por 10 faixas a perfazer um compacto total de meia hora daquele rap ébrio e nocturno que tão bem conhecemos (e que tantas saudades deixou – afinal, já lá vão cinco anos desde o último projecto desta trupe, o clássico Rap Proibido).  

Este é um clube tão exclusivo quanto inclusivo – não é para todos nem para qualquer um; porém, é bem-vindo todo o ouvinte que partilha os valores praticados e pregados nesta casa, e uma paixão incandescente por jazz e poesia. Rap feito para ouvir nas caves mais clandestinas, com luzes ténues e uma nuvem de fumo a cobrir a sala – este é o cenário onde a música dos Alcool Club respira. Criaram um universo próprio em torno da sua sociedade e reuniram afiliados de todos os cantos, muito para lá das fronteiras do hip hop; uma relação de culto e pertença, simultaneamente, sentida pelo público, que jurou fidelidade à irmandade AC como modalidade única da condição de admirador deste icónico e carismático grupo do Alentejo. E sem qualquer tipo de pretensão de aceitação perante as massas, o que é facto é que os Alcool Club sempre foram acarinhados em qualquer capela pelo país fora. São das figuras mais estabelecidas e unanimemente reconhecidas na história do hip hop português, e em cada fã de Alcool Club, que veste esta camisola como mais nenhuma outra, há um embaixador pronto a representar os valores do clã em sede própria – de verso na ponta da língua e de copo (cheio) na mão. 

Assim, e porque outra coisa não se esperava (nem se desejava, em boa verdade), este recentemente estreado LP é uma continuação natural daquilo que sempre caracterizou o rap dos Alcool Club: instrumentais predominantemente jazzísticos, com inclusão obrigatória dos pianos e scratch (com cuts que citam ilustres como Notorious B.I.G. ou Tupac), por Tommy El Finger a toda a hora; já nas letras, os temas não fogem à regra e, entre as linhas contemplativas e as barras incisivas, a estética de AC mantém-se pura e inalterada. Nem sempre inovar significa melhorar e, quando se encontra a identidade e a fórmula à partida, não há grandes alterações de direcção a fazer. Nesse sentido, não há neste longa-duração nada de novo – excepto nas participações. 

O Último a Sair é um trabalho surpreendente por trazer novos elementos inesperados à equação. Se achávamos que nos íamos recostar novamente no conforto do velho sofá de veludo, sentados na mesa do costume, acompanhados da bebida habitual, os convidados deste sarau vieram trocar as voltas ao baile e agitar o ambiente relativamente pacífico da sala. Entre algumas caras conhecidas e recorrentes neste estabelecimento, surgiram novos rostos; faces de miúdos que se formaram graúdos no rap, precisamente entre estas quatro paredes (ou polegadas), e que partilham agora o testemunho ombro a ombro com os mestres – “Eu era puto e já tripava com Alcool Club desde há muito”, confessa TOM pelos “Atalhos” trilhados por flows e rimas ágeis.  

Além do rapper e produtor de Almada, outras vozes destacam-se, a começar pela de Tilt, seu conterrâneo, que arrecada (como é seu apanágio) o verso do disco com uma prestação estonteante – do melhor que se faz no rap escrito em português –, de deixar o ouvinte sem palavras pela forma como as domina na faixa “Com Fiança”. Domi, o discípulo mais novo – “Eu sou infantil, ainda acredito no Halloween, bro” –, é outra das grandes surpresas ao merecer, em “Mudar”, um lugar à mesa dos veteranos por apresentar argumentos de gente grande e provar ter “mais retórica do que o Louçã”. A colaboração Uno e Alcool Club era algo que tinha mesmo de acontecer – só ainda não o sabíamos –, e os versos deste trovador do underground por cima do instrumental de “Sítio Onde Nunca Saí” dão significado pleno e literal à definição de rap tida por “ritmo e poesia”. As quotas-partes de $tag One, N.O.B. e Lucy também não ficam atrás e enriquecem a fasquia e a variedade deste projecto. E sem esquecer os incontornáveis no reportório dos Alcool Club: Beware Jack, com as suas falas deslumbrantemente visuais e cinematográficas, cheias de groove e coolness, que assentam que nem uma luva (daquelas que Beware usa em palco) no imaginário mais fantasioso do Club; e a inevitável Sara D. Francisco, que neste álbum – e já no anterior – tem uma presença determinante como a quarta voz do disco (algo semelhante ao papel de Amaura em Classe Crua, a título de exemplo). 

Mudam-se os tempos, não se mudam as vontades. Alcool Club é uma instituição conservadora no hip hop sem permanecer, no entanto, presa ao passado. Como os bons vinhos, vão ficando melhores com o tempo, mas não abdicam do sabor e do grau que os distinguem. Ainda há quem pise uvas pelos próprios pés à moda antiga e fora dos circuitos industriais. E este rap cheio de sumo e grainha é o primeiro a entrar e o último a sair. 


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