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Fotografia: Gabriela Bhaskar
Publicado a: 12/11/2020

45 anos depois, o fogo do saxofonista ainda arde.

Alan Braufman: “O jazz é lindo… é uma forma fantástica de expressar o amor e a raiva”

Fotografia: Gabriela Bhaskar
Publicado a: 12/11/2020

Para Alan Braufman, não há dúvida de que o fogo ainda arde ou de que, por outras palavras, quem sabe nunca esquece, tal é a evidente prova de talento que o saxofonista e compositor recentemente nos deu em The Fire Still Burns, o seu novo LP lançado em plena pandemia. Apesar das adversas circunstâncias do lançamento, o álbum não deixou de ter repercussão mundial, com aclamações inúmeras e constantes vindas de distintas partes do globo. Ninguém ficou indiferente: afinal, Braufman emergia de um hiato de 45 anos como autor de discos no domínio do jazz, apenas interrompido por uma breve paragem nos anos 80 por distintas e exóticas paisagens.

The Fire Still Burns surge, então, como o sucessor de Valley of Search, este que é um valioso documento da era loft jazz nova-iorquina, apetecível na prateleira de qualquer coleccionador, mas que, devido à sua raridade, até à sua reedição, em 2018, apenas estava disponível para aqueles que estivessem dispostos a abrir os cordões à bolsa. Felizmente, Nabil Ayers alterou esse paradigma, recolocando Valley of Search de novo em circulação, facto que, de certo modo, impulsionou a que Braufman se juntasse a Cooper-Moore, James Brandon-Lewis, Ken Filiano, Andrew Bury e Michael Wimberly para a concretização deste novo registo onde se sentem reminiscências das topologias experimentais e exploratórias da era loft. Porém, se a dinâmica é a mesma de outros tempos, o brilho, esse, é diferente, com o saxofonista a transcender o seu trabalho anterior, apresentando um álbum repleto de interessantes composições, fantásticas execuções, e uma produção com acabamentos de luxo.

Tivemos a oportunidade de falar com Alan Braufman numa entrevista por Zoom: nós, em Portugal, Braufman, em Salt Lake City, nos Estados Unidos da América. A distância geográfica não nos afastou do valor das suas inestimáveis histórias. Assim, com simpatia e agradabilidade, o músico foi-nos respondendo a perguntas sobre a sua vida, explicando como surgiu o seu interesse pela música e como desenvolveu a amizade com Cooper-Moore e James Brandon-Lewis. Também relatou as idiossincráticas experiências vividas no loft da 501 Canal Street e detalhou pormenores sobre a história dos seus álbuns. Houve ainda tempo para contextualizar o músico como um ser político e conhecer alguns dos seus interesses não-musicais. 


Valley of Search (Reissue) by Alan Braufman

Tudo bem?

Está tudo bem, apesar de tudo o que está a acontecer no mundo, estou bem [risos].

Ainda vive em Salt Lake City?

Sim… aqui mesmo em Salt Lake City. Estou aqui preso durante a pandemia. Também costumo passar muito tempo em Nova Iorque, mas não há oportunidade de tocar em Nova Iorque neste momento e, por isso, vou ficar aqui até isto passar.

O The Fire Still Burns foi lançado em plena pandemia. Como acha que isso afectou a promoção do álbum, assim como a visão das pessoas sobre o mesmo?

Bem, em primeiro lugar, a pandemia afectou certamente a possibilidade de, neste momento, sair, realizar turnês, dar concertos e apoiar o disco. Esperemos que estas oportunidades voltem a surgir. Quanto ao lançamento em plena pandemia… não sei! Decidimos lançá-lo. Gravámo-lo e pusemo-lo cá fora para ver o que acontecia. As pessoas ainda ouvem música, as pessoas ainda compram discos, espero! Talvez ainda mais agora, durante a pandemia, que não há muito mais para fazer… [risos]

Ainda há planos para, no futuro, fazer uma digressão a apresentar o The Fire Still Burns?

Digamos que não chegaria ao ponto de lhe chamar planos tanto quanto esperanças. Temos de ver o que vai acontecer e quando as coisas voltam [ao normal], mas… sim! Há certamente o desejo de que isso aconteça. Adoraríamos ir a Portugal… nalgum momento [riso].

Isso seria fantástico! E qual é o impacto que a pandemia tem tido na sua vida pessoal e na abordagem que tem a compor e a tocar?

É uma pergunta interessante. Certamente [que a pandemia] teve impacto na minha vida pessoal… sabes, como músico, quer estejas num club a tocar ou a ver os teus amigos a tocar, há toda uma cena que não está a acontecer neste momento. É engraçado… pessoalmente, quando isto começou, em Março, andava a praticar muito e estava a sentir-me inspirado e a preparar-me para o lançamento do álbum dentro de alguns meses. Na verdade, ainda não sei se tive COVID, suspeito que sim. Tive um dos casos mais leves, mas, mesmo assim, tirou-me de circulação: não me apeteceu tocar durante um mês porque estava com pouca energia. Depois [a energia] voltou e fiquei bem passado um mês, mas… foi difícil ultrapassar [essa situação]: não tocava há um mês, a pandemia estava a acontecer e, por isso, não havia concertos. É muito difícil conseguires inspiração para voltar a praticar [numa situação destas], mas… tens de o fazer e, eventualmente, uma vez que o faças, sabe-te bem. Isso atirou-me para um pequeno ciclo, mas estou de volta… e em pleno vigor [risos].

Viajando até à sua infância… Como começou o interesse pela música?

Isso começou desde muito cedo porque a minha mãe… o meu pai também, mas principalmente a minha mãe, eles gostavam muito de jazz e [o jazz] estava sempre a tocar em minha casa enquanto crescia. Então, sabes, quando tinha 8, 9 anos, essa era a música que eu ouvia. Foi uma surpresa para mim que não fosse a música que todos ouviam, na verdade [risos]. Então, sabes… Charles Mingus, Eric Dolphy, Coltrane, Miles Davis ouviam-se a toda a hora em minha casa. Duke Ellington e Ella Fitzgerald para continuar uma longa, longa lista. A minha mãe tinha muito bom gosto musical…

Dá para notar que sim [risos]…

[Risos] Isso fez-me interessar pelo jazz, e quando tinha 8 anos comecei a tocar clarinete. Fui muito bom [no clarinete] desde novo, qualquer que seja razão [para que isso tenha acontecido]. Os meus interesses, quando era criança, eram o basebol e a música. Eventualmente, a música ganhou precedência sobre o basebol. Tive um saxofone aos 13 anos e aos 15 tive uma flauta. Em 1964, quando tinha 13 anos, com o dinheiro que poupei a fazer trabalhos aleatórios comprei o Point of Departure do Andrew Hill, que tem uma excelente secção de sopros: Kenny Dorham, Eric Dolphy e Joe Henderson. Lembro-me de ouvi-lo e dizer: “Isto é o que quero fazer!”. Nessa altura, tinha provavelmente uns 13 ou 14 anos, quando esse pensamento me veio à mente. Não sabia como o faria, mas [sabia que] era o que queria fazer.

E acabou mesmo por estudar música na Berklee, estou certo?

Sim, na Berklee College of Music, em Boston.

Exactamente… Tornou-se amigo do Cooper-Moore e começaram a trabalhar em conjunto em Boston, por volta de 1969, quando estudava lá música. Como começou a vossa amizade? Quais eram os interesses que partilhavam e que vos levaram a trabalhar juntos?

Penso que conheci o Cooper-Moore em 1970. O David Ware estava em Berklee ao mesmo tempo e, sabes, somos amigos, e o David disse que estava a tocar num clube chamado Western Frank, em Cambridge, com o Cooper-Moore. Penso que o Marc Edwards estava na bateria naquele concerto, ele que mais tarde tocaria com os Apogee. O David Ware [tocaria mais tarde] na banda do Cooper-Moore. Fui ao concerto, levei o meu saxofone, e eles foram suficientemente simpáticos para me deixarem sentar e, depois, [soube que] o Cooper-Moore estava a fazer sessões semanais numa casa em Mattapan, que fica nos subúrbios [de Boston], à distância de um comboio e dois autocarros. Então nós íamos para lá… acho que era às sextas-feiras – todas as sextas-feiras — e muita música incrível foi lá tocada, numa fase inicial, não necessariamente por mim, mas por eles [risos]. Isso fez com que nos tornássemos amigos. Em 1973, já tinha acabado em Boston, e o David também já havia acabado em Boston – o Cooper-Moore não frequentava a escola, andava apenas por lá –, por isso estava na altura de nos mudarmos para Nova Iorque. E assim o fizemos. Para mim estava a voltar [a casa]. E o David também, porque o David é de Nova Jérsia, do outro lado do rio. O Cooper-Moore encontrou o [loft do] 501 Canal Street para alugar. Era essa a morada: 501 Canal Street, no lado oeste perto do Holland Tunnel. Isto foi antes da TriBeCa se chamar assim. Era apenas uma área desolada, sem nada, o que era perfeito para nós [risos]. Então, mudámo-nos todos juntos para aquele edifício.

Como era a atmosfera no loft? Como era o seu quotidiano nessa altura?

Era fantástica! Porque, sabes, éramos jovens, tínhamos muita energia e muita coisa estava a acontecer. Foi uma altura fantástica para voltar a Nova Iorque para fazer música. Seria muito mais desafiante fazer isso nos dias de hoje [riso]. Mas, de qualquer forma, não foi fácil viver ali… não havia aquecimento central no loft, por isso, tinhas de aquecer uma sala com apenas um aquecedor elétrico, o que podia ser um risco de incêndio se o deixasses ligado demasiado tempo. Íamos dormir à noite no Inverno e era normal haver duas semanas [com temperaturas pouco] acima do nível de congelamento. Quero dizer, acima de zero – isso [do zero definir o nível de congelamento] é Centígrados – isto é zero Fahrenheit [risos]. Se desligasses os aquecedores elétricos à noite e fosses dormir, se tivesses um copo de água ou uma garrafa de água ou algo assim, congelaria durante a noite. Para evitar que congelasse, colocávamo-los no frigorífico, e o frigorífico estava mais quente do que a nossa casa [risos]. Mas havia muitas idiossincrasias interessantes como, por exemplo, por qualquer razão — não sei se estava lá antes –, mas havia uma cabine telefónica no primeiro andar. O primeiro andar era a frente da loja e onde fazíamos os nossos próprios concertos todos os fins de semana. E havia ali uma cabine telefónica. Um amigo nosso descobriu que se podia fazer chamadas para qualquer parte do mundo que, desde que se continuasse a meter dinheiro – moedas –, no final, ele unia dois fios e todo o dinheiro era devolvido [risos].

Isso devia ser bastante útil!

Sim… estávamos a viver off the grid. Mesmo em relação à electricidade – com os aquecedores que aqueciam o espaço – a companhia elétrica não nos tinha na rede, então nem sequer nos enviavam as contas. Foi bom ser invisível naquela altura.

Acha que terem vivido off the grid teve impacto no facto da música da era loft ser tão baseada em improvisação e orientada para a exploração? O jazz sempre foi associado à improvisação, mas a cena loft jazz, em particular, parece ter tido uma dimensão experimental extra que outros movimentos de jazz não tiveram. A que se deveu isso?

Bem, não creio que a nossa condição de vida tenha afectado a música tanto como a nossa música nos levou a essa condição de vida [risos]. De alguma forma, nós procurámos isso, tínhamos um lugar desconhecido em Nova Iorque, com cinco andares, e que era ridiculamente barato. O David e eu dividíamos o segundo andar. Isto foi nos primeiros três anos. Foi principalmente um edifício de músicos nesses três anos, de ’73 a ’76. Depois disso, um grupo de músicos mudou-se e outros não-músicos [também se] mudaram para lá, mas de ’73 para ’76 foram os anos em que os concertos aconteceram. E gravámos o meu primeiro álbum lá, o Valley of Search. O Bob Cummins — que geria a India Navigation, a editora que o lançou –, trouxe-nos equipamento de gravação para o loft e tocámos como se nos gravássemos a nós mesmos num concerto, mas sim… foi uma altura fantástica para estar em Nova Iorque e tocar aquela música toda.

Qual foi a força motriz que levou à gravação do Valley of Search? Foi simplesmente o facto de andarem a tocar com tanta regularidade?

Sim, essa é a peculiaridade álbum. Tocávamos regularmente aos fins de semana concertos no loft do 501 Canal, embora não fosse exactamente essa a banda que gravaria [o álbum]. Quem me dera que pudéssemos ter o Cecil McBee todas as semanas, mas não conseguíamos. O Cecil pediu-me para tocar no Mutima, o seu primeiro álbum como líder. Então pensei, bem, se ele me pediu para tocar no álbum dele, posso pedir-lhe para tocar no meu. E ele disse que sim…, mas, basicamente, tocávamos a música todas as semanas como banda, de uma forma ou de outra, por isso não tivemos de ensaiar para aquele álbum. Tratámo-lo como se fôssemos dar um concerto, um dos concertos de fim de semana. Não o fizemos como um concerto ao vivo porque não havia público, mas tratámo-lo dessa forma. Tocámos o primeiro lado, depois o segundo… e, nesse álbum, tal como no novo, o The Fire Still Burns… sempre me senti atraído pela ideia das músicas, em vez de pararem, fluírem de umas para as outras, e eu fui influenciado por isso. Basicamente, quando ouvi pela primeira vez os álbuns de Don Cherry, o Complete Communion e o Symphony for Improvisers, era tão espectacular como, em vez de um final de música onde há uma paragem e depois outra [música] começa, a música simplesmente fluía, não parava e evoluía. Estávamos a fazer isso nos nossos concertos ao vivo e, por isso, é claro que gravámos [o Valley of Search assim]. Mantive uma dinâmica semelhante a acontecer no The Fire Still Burns.


Live at WKCR May 22, 1972 by Alan Braufman & Cooper-Moore

A propósito, achei bastante interessante que, nas notas de apresentação do The Fire Still Burns, Don Cherry seja mencionado como uma grande influência, não só a nível musical, mas também numa dimensão espiritual. O Don Cherry foi também uma personalidade importante no desenvolvimento da cena europeia de free jazz, tendo um enorme impacto, por exemplo, no desenvolvimento do Peter Brotzmann como músico. O que tinha de tão especial o espírito do Don Cherry para que ele tivesse uma influência tão poderosa sobre os que o rodeavam?

A música dele significou muito para mim desde tenra idade, creio eu. O Complete Communion saiu em 1966 — eu tinha 15 anos –, e este foi um álbum que a minha mãe trouxe para casa e eu ouvi-o. Antes de tudo, a primeira coisa que me impressionou: nunca tinha ouvido um som de saxofone como o do Gato Barbieri, e isso foi lindo… Depois, só a inclusividade da música, a sua influência de todo o mundo, porque, sabes, o Don era um viajante do mundo, e ele era todas essas influências. Há uma complexidade tão grande naquele álbum, pequenos detalhes que são executados na perfeição. Aquela era verdadeiramente uma grande banda… mais uma vez, não necessariamente aquela encarnação: a banda do Don na Europa era [formada pelo] Karl Berger, e um baterista diferente, o Ed Blackwell, que não tocava muito fora da Europa com eles, mas, apesar disso, a coesão do grupo era incrível. Por outro lado, a maneira como foi escrito como uma suite, tão bem pensado. Não era do género: vamos fazer esta melodia, e aquela melodia… a ordem das melodias era tão importante que esta melodia se seguia àquela melodia e fluía para a seguinte. Um dos melhores álbuns de todos os tempos, na minha opinião. O mesmo em relação ao Symphony For Improvisers, o sucessor que foi lançado pela Blue Note, penso eu. Na verdade, vi a banda do Symphony For Improvisers. Nesse ano, em 1966, o primeiro concerto do Don [depois] de voltar da Europa foi no Town Hall, e eu fui vê-lo com 15 anos, sozinho. Havia, literalmente, cerca de 20/25 pessoas na plateia. [A sala] tem capacidade para 1000 [pessoas] — não sei ao certo — mas ninguém estava lá…, mas na plateia estava o Ornette, e o Albert Ayler também lá estava [risos]. Então, ali estou eu a olhar à volta, um miúdo de 15 anos, e a banda era o Gato Barbieri e o Pharaoh Sanders… e tinha também o Ed Blackwell e o Rashied Ali a tocar bateria. O Henry Grimes estava no baixo e o Karl Berger [no piano] — era uma grande banda, sabes, foi lindo! Aquilo foi especial.

Imagino que deva ter sido muito especial… além disso, estava consciente de que o Valley of Search era uma raridade fora de circulação e que era considerado um documento importante da música improvisada da era loft?

Não, não sabia de nada [risos]. [O álbum] está fora de circulação, não estou a receber dinheiro dele [risos]. Depois as pessoas disseram-me que têm vendido as cópias originais… acho que uma, no ano passado, foi vendida por mais de 400 dólares ou algo assim. Fiquei muito surpreendido com isso. E também fiquei surpreendido quando a reedição saiu em 2018 e reparei que havia tanto interesse nele. Fiquei muito feliz, surpreendido!

Como surgiu a ideia de reeditar o álbum?

Bem, isso foi tudo por causa do Nabil Ayers. Ele é meu sobrinho e está dentro do negócio de música. Ele trabalha na 4AD Records. Em todo o caso, ele tem a sua própria editora e um dia ligou-me. Sempre fomos próximos, e ele perguntou-me: “Que tal reeditarmos o Valley of Search na minha editora?”. “Bem… claro, vai em frente!”, respondi [risos]. Depois disso, ele disse-me: “Vamos dar uns concertos em Nova Iorque para marcar a reedição”. E assim o fizemos! Mais uma vez, para minha surpresa, houve dois espectáculos esgotados e isso pôs as coisas a andar para o The Fire Still Burns ser gravado.

13 anos depois do Valley of Search, gravou o Lost in Asia, em 1988…

Lost in Asia, sim! Esse [álbum] é interessante. Foi lançado com outro nome.

Sim, e possui uma estética completamente diferente em comparação ao seu antecessor. Soa completamente diferente do que o Valley of Search, com baterias pungentes e sintetizadores electrónicos. Qual é a história por detrás deste disco? Quais eram as suas influências musicais na época?

Ok… as minhas influências musicais na época… eu comecei a interessar-me muito por bandas inglesas. Gostava daquilo. Não necessariamente inglesas, como os Kraftwerk, que eram alemães. Fiz uma pequena digressão com os Psychedelic Furs, em 1982. O Gary Windo, um amigo meu — nós [os dois] fomos a secção de saxofones na banda da Carla Bley durante vários anos –, estava em digressão com eles e não podia tocar nalgumas datas, então eu substituí-o. Há muitas coisas a acontecerem ali [no Lost in Asia] que são bastante interessantes, de diferentes estilos de música, não só jazz. Gravei aquele álbum, produzi-o eu mesmo e fiz o que tinha a fazer: em vez de [já] ter uma editora, fui às compras para tentar arranjar uma. Eu telefonava [para as editoras] e atendiam-me sempre as recepcionistas. “Daqui é o Alan Braufman”. “Alan quem?”. “Alan Braufman”. Não falo de forma muito clara, como podes ter reparado [risos]. De qualquer forma, cansei-me de soletrar o meu nome cinco vezes [cada vez que ligava] que disse: “No próximo que enviar, vou enviar como Alan Michael, que é o meu nome do meio”. Enviei-o para a Passport Records e eles disseram: “Oh sim, claro!”. Gostaram, assinaram e editaram-no. Depois decidi: “Bem, agora posso dizer-lhes que não, que sou o Alan Braufman, mas talvez isto seja um presságio, é melhor continuar assim”. Não houve complicações com isso até à reedição do Valley of Search que, claro, teve de ser reeditado como Alan Braufman, porque foi [ele] quem o fez. Mas o Lost in Asia tem um estilo muito diferente do Valley of Search e do The Fire Still Burns, por isso… talvez documente um bocado o que eu andava a ouvir naquela altura. Gosto do álbum. Não é o que faço [actualmente]. Foi o que fiz na altura, gostei, e por isso continuo a apoiar.

E a sua última obra é o The Fire Still Burns… se tivermos como referência o Valley of Search, demorou 45 anos a criar este novo trabalho. Os dois álbuns tiveram diferentes processos de criação, mas partilham algumas similaridades em termos de estética e dinâmica. Quais foram as suas principais actividades durante este hiato?

Ok, sim, é uma boa pergunta. Acho que simplesmente estava a tentar viver a vida. Enveredei por algumas coisas não-musicais: [por exemplo o] Aikido, uma arte marcial japonesa, interessei-me muito por aquilo, e depois, eventualmente, comecei a correr e corri imensas maratonas e ultramaratonas — coisas que eu gosto de fazer! Olhando para trás, teria ficado melhor servido se tivesse tido uma visão de túnel com a música e não me tivesse desviado por nenhuma destas outras coisas, mas é o que é e não me arrependo. Durante os últimos sete anos vivi em Salt Lake City, Utah, e não é como se eu tivesse parado de tocar ou algo assim — nunca fiz isso! Na verdade, desde que vim para cá tive mais tempo para tocar, tive mais tempo para praticar. [Mas] estava quase fora de cena [musical]. Há aqui uma pequena, mas vibrante cena de jazz com alguns bons músicos, por isso tive de a oportunidade tocar com eles e de trabalhar noutros aspectos da música, que acho que acabaram por fortalecer o meu tocar, o que fez o The Fire Still Burns, no final, sair melhor do que eu esperaria [risos]. Quando dizes que demorei 45 anos a criar um novo álbum, isso não é verdade. Foram 45 anos de distância entre esses dois álbuns, mas todas as músicas do The Fire Still Burns foram escritas — com exceção de uma que foi escrita alguns anos antes, todas as músicas eram novas — poucos meses antes de gravar o álbum.

Por curiosidade, qual foi a maratona mais longa que já correu?

A minha [corrida] mais longa foi… bem, eu diria 35 milhas, mas corri fora do trilho e fiz 37 [risos]. Tive algumas lesões. Ia fazer as 50 e as 100 milhas, mas 35 milhas e 50 km foram [as distâncias] que atingi. Tudo em trilhos, trilhos de montanha, aqui no Utah, que são espectaculares. O melhor que o Utah tem a oferecer.

Como é que conheceu o James Brandon-Lewis? Ele lançou há muito pouco tempo o Molecular, na minha opinião, um dos melhores álbuns de 2020.

Sim, absolutamente! Tudo o que o James faz… É um belo músico. Conheci o James em 2016. O Cooper-Moore convidou-me para tocar no Vision Festival com uma banda. O James estava nos bastidores e havia uma sala de bandas onde toda a gente tocava. Falámos e demo-nos bem e decidimos manter-nos em contacto e, se houvesse oportunidade, tocar juntos nalguma altura. Então, nestes dois anos, sempre que eu estava em Nova Iorque, juntávamo-nos e ficámos muito bons amigos. Quando tive a oportunidade de fazer os concertos de apoio à reedição de Valley of Search, pensei: “Que banda? Quem é que eu quero a tocar na banda?”. O Valley of Search só tem um saxofone, apenas eu, por isso não precisava de outro saxofonista, mas adoro o James a tocar. Eu gosto muito dele! Então disse: “Vamos adicionar outro sopro a isto!” — e correu muito bem. Quando chegou a altura de fazer o The Fire Still Burns, decidi que aquela combinação de pessoas, com o Andrew Drury, na bateria, Ken Filiano, no baixo, e, claro, Cooper-Moore e James Brandon-Lewis, seria a certa. [Acabei por concluir:] “Vamos manter isto juntos. Essa será a banda para o novo álbum.”

Mencionou numa entrevista anterior que nunca ouviu o The Fire Still Burns na sua totalidade desde que foi lançado. Esta afirmação mantém-se verdadeira?

Eu disse isto? Não, não sei… Ah, sim! Desde que foi lançado! Sim, tecnicamente é verdade. Estava a pensar: “claro que o ouvi porque tínhamos de misturá-lo e tudo isso”. Mas, sim, desde que foi lançado, não, não senti necessidade de voltar e ouvi-lo. Sabes, quando gravas um álbum pensas tanto nele que, depois o gravares e de o misturares, já ouviste muita coisa nessa altura: todos os pontos fracos que esperas que as pessoas não notem, e todos os pontos fortes que esperas que as pessoas reparem. Geralmente não volto atrás e ouço as coisas que faço. De algum modo, já as ouvi.

O Fire Still Burns explora paisagens sónicas muito ricas e interessantes: faixas como “Home” e “The Fire Still Burns” têm uma estrutura e beleza mais evidentes, ao passo que faixas como “No Floor No Ceiling” e “Creation” são muito mais abstractas e exploratórias, quase como se estivesse a desafiar o ouvinte a sair da sua zona de conforto. Esta era uma dinâmica intencional que queria impor ao disco, ou foi apenas uma expressão natural da sua musicalidade?

Acho que ambos, na verdade, porque — isto não é necessariamente uma boa qualidade a ter –, mas consigo aborrecer-me muito facilmente. A música que quero ouvir viaja para muitos lugares diferentes e não é muito longa. É outra coisa que talvez tenha absorvido do Complete Communion, porque estas músicas [do The Fire Still Burns] são realmente curtas. E depois evoluem e vão para um outro lugar, e assim sucessivamente. É como uma viagem, em vez de se ficar no mesmo lugar e depois parar. Quis manter esta dinâmica. Pensei muito sobre a ordem [das músicas] porque, para mim, a liberdade e intensidade de “No Floor No Ceiling” flui para a, creio eu, mais fácil de escutar — tradicionalmente mais fácil de escutar — “Home”. Para mim, “Home” funciona melhor vindo da “No Floor No Ceiling”, [isto é,] do caos para a forma. Quis fazer uma viagem. Descobri que me aborreço facilmente. Se não estou a ficar aborrecido, talvez as outras pessoas também não fiquem [risos].

E conseguiu fazê-lo de forma brilhante!

Oh, obrigado!

Tem planos ou expectativas para lançar mais álbuns no futuro?

Sim, certamente, espero que sim. Temos de ver para onde é que tudo isto leva o mundo da música — a pandemia e tudo isso –, mas com certeza! Estou constantemente a ter ideias, e as hipóteses são, digamos, um álbum, daqui a um ano, seria possível. Caso venha a gravar [no futuro], provavelmente não seriam [estas ideias a ser] gravadas porque coisas novas estariam [já] escritas nessa altura. Mas vamos ver… Adorava ter essa oportunidade. Vamos ver onde tudo isto vai dar.

Com as eleições presenciais dos EUA a aproximarem-se, posso perguntar-lhe se a sua música é, de alguma forma, influenciada pela política?

Sim, absolutamente! Não de uma forma específica. Acho que a música só expressa quem tu és e isso [a política] também faz parte de mim, assim como, sabes, buscas espirituais — não digo religiosas, necessariamente, mas espirituais. Não direi que há uma melodia particular que expresse agitação política ou insatisfação com o que está a acontecer ou algo do género. Está tudo aí! Sabes, sou eu! É disso que eu gosto na música: não tens de o dizer em palavras, não tens de ser específico; é uma expressão mais geral de quem tu és e isso é certamente parte de quem eu sou. Então, sim, estou consciente do que está a acontecer na política e isso definitivamente afecta a [minha] música, mas não de uma forma tão específica que eu tenha escrito uma determinada melodia por causa disso. É mais o sentimento geral. O jazz é lindo… é uma forma fantástica de expressar o amor e a raiva, sabes?


The Fire Still Burns by Alan Braufman

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