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Fotografia: Cristian Andersson
Publicado a: 23/11/2023

A produtora-xamã foi uma das grandes figuras da edição deste ano do Mucho Flow.

Aïsha Devi: “Todas as frequências de som tocam uma parte do teu corpo. Com uma ‘parede de som’, tu és plena”

Fotografia: Cristian Andersson
Publicado a: 23/11/2023

Quando em 2015 Aïsha Devi lançou o primeiro álbum de longa-duração, o conceito de “clubbing desconstruído” foi abalado, sem se saber, na sua falta de aparente fundação. Suíça-nepalesa, crescida num contexto muito Europeu e pouco diverso, Devi sobressaía musical e sonicamente por propor mais do que um simples momento de fruição. Não que o prazer não vibrasse nas frequências da sua música, mas desde sempre que nas suas peças houve algo de francamente complexo, reflexivo e desafiante — algo que ía, ainda vai, além do momento, e que o expande além do espaço-tempo.

O seu primeiro single “Mazdâ” (que teve direito a um vídeo “Holy Mountain-esco” realizado pelo artista multidisciplinar chinês Tianzhuo Chen) ancorava-se numa frequência metamórfica, que mudava em tom e em cadência, serpenteando entre a sua voz alterada sobre um subgrave desconcertante. A sua sonoridade é assim mesmo: desconfortável por não ser o lugar a que sempre vamos ao ouvir música, e ao mesmo tempo apaziguadora, proporcionando um bem-estar sensorial atávico. Devi tem tanto de novo quanto de familiar.

“Desde o princípio que a música sempre foi uma prática de investigação sobre filosofia e metafísica,” conta a produtora em entrevista ao Rimas e Batidas. “Tenho investigado alquimia e todas as escrituras ancestrais. A escritura védica indiana, a alquimia europeia, a alquimia chinesa, [práticas] ancestrais africanas e sul americanas, e apercebi-me de que a música era um ponto comum a todas elas. O uso da música nestes contextos não servia de entretenimento, mas antes para a abertura de um portal ritualístico e ancestral para reunir pessoas e guiar a humanidade até uma transcendência. Transcendência que é, para mim, o ponto comum a todas as práticas ritualísticas, xamãnicas. E algo que se tem perdido na música europeia.”

Esta ideia, de que a sua música é mais do que um mero ocaso performativo para passar o tempo, é essencial para entender a sua carreira e a sua discografia. É o fundamento da sua maneira de criar: “Esta ideia definiu realmente a forma como eu iria criar música. É uma forma de mergulhar-me num estado de consciência alterado e de levar a audiência comigo.” Não é por acaso que Devi se auto-descreveu como a ‘xamã do hi-fi’. Ao manipular frequências de som de forma muito clínica e ciente, consegue desdobrar toda a realidade que nos rodeia em novas dimensões que ultrapassam o plano material. Para si, música é a “prática terapêutica que realmente me guia para diferentes questões e de encontro às suas respostas. Agrada-me muito esta ideia de que música não é apenas música — música compreende campos de conhecimento como filosofia, como física, como matemática.”

Death Is Home, longa-duração recentemente editado com o selo da inglesa Houndstooth, surge como um novo ponto alto na sua carreira, muito marcado pelo novo capítulo da sua jornada de auto-descoberta. “Eu costumava pensar que ser xamã era uma forma de emular a [minha] própria história, mas apercebi-me de que a minha história, quem eu sou, é a razão porque me tenho dedicado a fazer música. A minha prática de música está totalmente integrada com esta jornada de auto-descoberta.” Este disco é o que de forma mais clara bebe do seu passado e das suas vivências, dos seus traumas e das suas lutas, ainda que os temas que percorre sejam comuns a toda a sua carreira, desde a alquimia, as várias dimensões das nossas coordenadas de existência, o ADN enquanto invólucro de ancestralidade e símbolo de magnetismo e de vibração, o poder da mente, e, o mais demarcado no título, o da dimensão não corpórea da vida.

O seu próprio pai, o percussionista nepalês B K Gurung, que nunca conheceu, mas cuja história tem servido de farol para a sua vida, acaba por se tornar uma das principais influências emocionais do álbum. “Eu tenho vindo a pensar no meu pai, no facto de vir de um país distante, de uma cultura diferente. Ele é a razão porque eu sobrevivi [na Suíça] e abracei essa identidade alternativa como um refúgio. Ele tornou-se num um ídolo para mim, retratado na capa do meu álbum quase como um deus. Foi por isso que eu sabia que pertencia a algo que era para mim e para além de mim, mais ligado à eternidade. É por isso que o álbum se chama Death is Home, porque há algo mais que nós carregamos no nosso ADN, algo que é a nossa história passada, presente e futura, a nossa eternidade.”



[“O corpo é apenas um invólucro”]

O novo álbum surge, assim, como um momento em que Aïsha Devi se apropria da sua própria história, sem se vitimizar, sem se subjugar. Recorre a ela como um veículo para algo maior do que a sua dimensão corpórea. A tridimensionalidade com que descrevemos o mundo, e o materialismo que dessa ideia advém, é insuficiente para descrever a produtara-xamã e a sua obra. Isto não é novidade e já se ouvia de forma clara em peças como “I’m Not Always Where My Body Is”, do último EP S.L.F., ou em “Anatomy of Light”, do LP Of Matter and Spirit, e volta a ser tema neste novo longa-duração. “O principal propósito deste disco é ampliar a consciência a um nível energético e atómico. Desenvolvi e crio métodos sonoros que transcendem a nossa própria fisicalidade e proporcionam o acesso à realidade intangível. Quando esse transe acontece, começamos a curar-nos e emancipar-nos do hipermaterialismo opressivo em que vivemos. É por isso que não reduzo a música apenas a um campo de conhecimento, apenas a três dimensões. Música e frequências são a questão essencial da vida. O primordial do visível e do invisível.”

Esta ideia desdobra-se numa série de conceitos, onde o que definimos como princípio e fim se tornam em capítulos de uma história que não é individual, que é coletiva e ancestral, se desenrola no agora e no passado, e que se propaga no que é devir.

“O nosso nascimento não é decidido e até certo ponto tu estás submissa a estar viva. Mas é quando decides fazê-lo que tu realmente nasces. É uma decisão que podes tomar, de entrar neste corpo, de viver esta vida e de seres o melhor ser humano possível. Eu acredito que quando nos desligarmos deste mundo material é quando abraçamos a nossa verdadeira identidade e encontramos o sentido metafísico da existência. Vivemos sob tantas regras e restrições, que quero que as pessoas percebam que podem quebrar com a tirania tornando-se autodeterminadas e autocriadas para alcançar a liberdade. Isto é supraconsciência, quando a fronteira entre a vida e a morte é dissolvida.” Esta é uma ideia particularmente viva em “Unborn Yet Alive”.

É, de resto, uma mensagem que ressoa além da sua própria pessoa, e que encontra refúgio na cena em que crê inserir-se melhor, do clubbing e mais especificamente na comunidade LGBTQ+: “Eu ainda me sinto danificada neste mundo, por causa de todo o abuso [que sofri]. Ainda assim, quando lambo as minhas feridas, de noite, no clube, com as minhas pares, com pessoas que passaram por tanto quanto eu, há uma transcendência de identidade. É por isso que a cena em que me insiro é a LGBTQ+, porque pertenço a uma cena em que todes tivemos de lutar contra um contexto violento, exclusivo e binário. Eu acredito que todes devemos lamber as nossas feridas juntes, afirmando que somos omniformes e ilimitados. Trata-se de estarmos conscientes de que somos capazes de nos curar.”

Há uma série de características comuns, além do conceptual, às músicas de Death is Home, a começar pelo profundo subgrave, que de forma sustentada, pouco sincopada e muito prolongada, cria uma sensação de suspensão permanente, sobre a qual Aïsha Devi constrói toda a experiência musical. “Immortelle”, um dos singles de avanço, existe exatamente nesse plano alado, em que os elementos melódicos se cravam na mente numa harmonia expressa inicialmente e que depois desaparece, diluindo-se na voz e em sintetizadores esparsos e sincopados e existindo apenas no que absorvemos nesses primeiros momentos. “Mind Era” transporta a mesma ideia de espaço, de uma existência não-corpórea, fazendo uso da mesma abordagem sem silêncios, mas que abraça o vazio e que não sobrepõe demasiados elementos. Por outro lado, “The 7th Element” e “Prophet Club” ligam-se mais à ideia de clubbing com elementos percussivos sincopados a propagarem-se e a apelar ao balançar dos corpos — corpos que já perdemos para a dimensão Aïsha Devi da música; mesmo aqui, os sintetizadores não se impõem, insinuam-se, marcam as ideias de melodia e harmonia para que a mente as coloque no que fica por preencher.

“A minha intenção para quem ouve o disco é exatamente a de criar a sensação de anti-gravidade.” explica-nos. O elemento de cura surge uma vez mais aqui: “Gravidade também transporta a ideia de que quando tens problemas, quando tens dor, sentes-te pesada. Para contrariar esta sensação de peso tens de criar a sensação oposta. É precisamente esse o foco da música que estou a criar. É essa a magia da música, o seu poder sobre toda a matéria, incluindo sobre as nossas próprias células. É isso que estou a injetar na minha música, uma dissolução do espaço-tempo para gerar uma conexão com o impalpável, um transe cósmico.”

O uso de cada frequência é clínico para a produtora, que canalisa todo o seu conhecimento, assim como a sua ancestralidade, para cada som que cria. Filha de um percussionista nepalês, neta de um físico suíço, aluno de Albert Einstein e que dedicou a sua vida a estudar quântica e supercondutividade, a sua abordagem aparentemente new age (aos olhos dos mais rápidos julgamento) aproxima-se muito mais da prática de ciência do que de algo inverosímil, ou impossível de verificar. “Eu coloco tudo o que sei na minha música. Física, matemática, frequências [sónicas], práticas ritualísticas.”

Há um uso premeditado de cada som na música de Devi, como a própria explica e bem: “Eu uso frequências específicas, beats binaurais, subgraves, uso muito a minha voz e o seu impacto vibracional, transformo-a num som não-humano, uma espécie de feitiço divino, para poder ir para outro plano dimensional. Estamos presos à ideia de tridimensionalidade, mas há muito mais dimensões [além das de espaço]. Isto é sabido. Antes era algo mais ligado a espiritualidade, mas agora é física. Nós vivemos nesta ideia de 3D e com a minha música eu tento projetar as pessoas até à quinta dimensão, a do éter. É por isso chamo à minha música Aetherave.”

[Música para transcender]

Esta expressão Aetherave atinge uma nova complexidade em “Azoth Eyes”, faixa que encerra Death is Home e onde é feita uma óbvia referência a alquimia. Nesta peça, a música de Aïsha Devi, de uma maneira bastante singular na sua carreira, surge saturada e imensa em cores, em oposição aos bem-torneados e espaçados sons a que recorre normalmente. “A minha intenção era criar uma parede de som,” conta ao Rimas e Batidas, elaborando sobre as possibilidades de cura que esta transporta. “Todas as frequências tocam certas partes do teu corpo; tocam as tuas células, o teu cérebro, o teu sistema endócrino. Quando tu saturas o espectro de frequências e crias uma ‘parede de som’, tu és plena. Crias um efeito terapêutico que toca todas as partes do teu corpo. Este facto tem em mim muito impacto, e eu queria encontrar um lugar no disco em que pudesse fazer isso mesmo.”

Esta ideia tirou-a dos seus lives que, como se viu recentemente no Mucho Flow, não recorrem ao volume pelo volume, em que faz um uso volumoso de frequências saturadas que criaram um momento muito especial no festival. Quem mergulhou na dimensão Devi da música sentiu precisamente este reverberar e projetar da existência, principalmente por via do impacto dos subgraves. “Quando toquei com a orquestra da BBC, eu percebi que havia algumas partes da minha música que eu tinha de manter, que faltavam à orquestra. O sub era um deles. É algo típico de um clube, e que não existe na música clássica, e eu queria muito esse elemento. Quando tens tudo isso, tens todo o espectro de som.” É difícil crer que quem tenha permanecido durante todo o concerto em Guimarães, e se tenha sujeito ao “castigo” do sistema de som do Centro Cultural Vila Flor, não tenha saído de lá mais leve, de pernas massajadas e energias recobradas para as sessões de comunhão e dança que se lhe seguiram. “Eu gosto desta ideia de gerar estas experiência fora do corpo, e é algo que eu procuro fazer nos meus lives.”

Apesar de admitir que na Europa fomos despojados de espiritualidade há muito tempo, de que há um materialismo prevalente na cultura do continente, Aïsha Devi ainda acredita que existem pequenos resquícios do ritualistico, do espiritual e do transcendente. “Eu acho que é muito, muito óbvio que as pessoas estão fartas de qualquer ideologia que se concentre apenas no dinheiro. E acho que isso leva as pessoas a aproximarem-se da ancestralidade, da tradição, mas não de forma conservadora. Aliás, é disso que eu gosto [no fenómeno], e é isso que eu acabo por fazer com a música, a ideia de se ser totalmente sincrético. Adoro a ideia de sincretismo, de colocar tudo o que já foi a certo ponto a dizer a mesma coisa, de formas diferentes e através de práticas diferentes,” esclarece. “Isso é a cena clubbing… Dançar coletivamente e alinhar os nossos corpos e mentes no mesmo BPM vai desencadear um estado alterado de consciência. Esta é uma das poucas e últimas práticas rituais de transcendência no mundo moderno. Uma maneira mágica de chegar a reinos celestiais.”

É precisamente esta experiência que Aïsha Devi cria em concerto, e aquela que nos canta com a parede de som saturado de “Azoth Eyes”:

“You wanna shine
As bright as gold
Look into my eyes
See the styx unfold”

Este é o poder da mente. Melhor ainda, este é o poder de Aïsha Devi, que consegue animar som para nos levar a um plano em que tomamos consciência de nós mesmos. “Animação [literalmente ‘animation’] é a chave desta vida. Tu podes animar [animate] tudo o que queres com a tua mente. É ter consciência e saber-se que podemos gerar coisas, e de que não temos de ser submissos.” E a sua música é, de facto, libertadora.

Não há uma forma boa de encerrar um texto que tem tanto de sugestão para ouvir, quanto de matéria para pensar. Há uma forma de canalizar e ouvir, uma vez mais, a própria produtora-xamã a explicar-nos o que tem feito e o que continuará a fazer: “Eu quero trazer a música de volta para o seu primeiro e principal papel, que é ritual, que é coletivo e que é transcendente. E gosto de pôr a minha música dentro desta ideia de descolonização espiritual.”

A descolonização espiritual de Aïsha Devi pode-se ouvir no mais recente Death is Home, editado neste mês de novembro pela Houndstooth. Pouco antes de lançar o disco, a produtora suiça-nepalesa atuou no Mucho Flow, em Guimarães, para gáudio de que assistiu ao concerto. E já se se pede um regresso, e mais outro. E outro ainda.


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