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Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 22/06/2021

Das reflexões que se fazem nos momentos de procura individual.

Afonso Pais: “Eu quero, sempre que possível, redescobrir a razão de ser músico”

Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 22/06/2021

Compositor, guitarrista e professor, Afonso Pais é um artista que deu tempo ao tempo para perceber qual seria o seu próximo passo no campo musical. O Que Já Importa, álbum que acaba de lançar e que é apresentado mais logo no Teatro Maria Matos, em Lisboa, é a conclusão dessa busca interior que teve dois companheiros externos que acabaram por ser cruciais para o que ouvimos nas sete músicas do alinhamento: João Hasselberg e João Correia.

Porém, e como a colaboração é algo tão importante para si, o autor de Terranova (2004) chamou ainda um trio de vozes (Margarida Campelo, Nazaré da Silva e Maria Luísa Caseiro) para fazer um três para três com os instrumentistas, mas também a rapper Capicua e o cantor transformado em herói nacional via Eurovisão Salvador Sobral. Numa conversa com o Rimas e Batidas que aconteceu em Maio passado, o músico fala da sua reaproximação a um amor antigo, o blues, da sua experiência enquanto aluno e professor e, como não poderia deixar de ser, de guitarras.




Comecemos pelo lado mais técnico: de quando é que data a gravação e onde é que aconteceu?

A gravação foi sendo feita ao longo de cerca de um ano e meio. Começou antes do primeiro confinamento, portanto começou ali em Setembro de 2019 com umas experiências exploratórias com o Joca (o João Correia) e o João Hasselberg. Guitarra, baixo e bateria. E fomos fazendo uma sessão de estúdio corresponder a uma música, fomos explorando em conjunto as possibilidades, ou seja, as músicas foram nascendo destas experiências a trio e depois foram desenvolvendo para o que acabou por ficar no disco. Mas foi sendo um trabalho assim muito espaçado, exploratório e contrário no fundo àquilo que era um pouco o que eu conhecia antes, que era chegar ao estúdio e fazer primeiros takes e segundos takes. Aliás, minto, ali são primeiros takes e segundos takes mas depois de uma tarde ou um dia de explorar em conjunto as matrizes de composições que eu fui levando.

Eu ia-te perguntar exactamente isso, se essas explorações tinham algum ponto-de-partida, nomeadamente ao nível da composição, ou se eram criações colectivas. Pelo que percebi, tu estás-me a falar de matéria que apresentavas ao grupo e que depois o arranjo é que era desenvolvido em conjunto. 

Mais ou menos, vou só tentar não entrar assim numa coisa muito muito muito técnica e incompreensível, mas a ideia é: cada um dos três instrumentos, guitarra, baixo e bateria, fez a sua proposta concisa de como é que eles, João Hasselberg e João Correia, sentiam que o seu contributo poderia ter um corpo dentro da própria composição. Eu levava as matrizes da composição mas os grooves foram sendo criados, portanto é uma parte que eu considero essencial da composição e não só arranjos. Mas está lá o contributo criativo muito claro e seria diferente se fossem outras pessoas. É mesmo um som nosso, digamos. Dos três.

Onde é que gravaram?

Namouche. Sempre no Namouche. 

Fala-me também das vozes. A Margarida Campelo conheço-a, aliás, vi-a há dias, nomeadamente com o João no concerto do Pernadas na Culturgest, mas as outras duas vozes confesso que não conheço. Fala-me um pouco desse lado do disco.

Vou começar pela Margarida: é uma pessoa que eu conheço há muito tempo na música, mas também somos amigos e sempre tive uma vontade de arranjar uma forma de colaborar musicalmente com ela. Pensei agora, para este projecto, fazer uma coisa que espelhasse um pouco um três a três, o trio instrumental e o trio de vozes, porque a Margarida, para além de ser uma pianista fantástica e um músico supra-instrumentístico (ela compõe, arranja e toca), tem uma faceta muito de compatibilidade com outras vozes, de arranjos e de tudo, então achei que seria interessante procurar vozes que fossem compatíveis entre si. E pensei na Margarida Campelo como indutora dessa faceta dela de tornar as vozes compatíveis e de trabalhar muito bem com arranjos de vozes e tudo. E também pensei na Maria Luísa, com quem já tinha feito um concerto de primeira experiência com esta formação de dois trios no Hot Clube há três anos. A Nazaré da Silva, que é a filha do João Paulo Esteves da Silva , o pianista, que eu também conheci há não muito tempo, musicalmente [falando], e considero, e modestamente digo isto porque fui que escolhi, que aquelas três vozes em conjunto têm um brilho colectivo em que se supera as somas das três partes. E era um pouco essa a ideia que eu sempre tive.

Quem é que escreveu para as vozes, nomeadamente ao nível de texto?

A nível de texto as duas participações que existem, uma das letras é minha, outra o poema é da Capicua. A nível de exploração das músicas é exactamente a mesma coisa que fiz com o Hasselberg e o Correia: nós fizemos sessões, e portanto o arranjo e o conceito e as ideias são de todas. 

Como é que o texto da Capicua aterra aqui?

Nós conversámos durante um mês, fomos trocando ideias musicais, ou seja mais sobre o que podia ser um pano de fundo… não gosto muito da palavra “fundo” porque acho que as duas coisas estão muito ligadas e são muito importantes uma para a oura. A Ana tinha, supostamente, um poema à espera de contexto musical que me apresentou como experiência. Eu vi ali uma excelente oportunidade também de criar uma parceria que não fosse só um texto que já existe… “só”, atenção, não estou nada contra, mas fomos negociando um bocadinho, no melhor sentido, uma adequação desse poema que depois a Capicua veio a desenvolver para um loop musical que tinha uma duração determinada e, portanto, no fundo é um encontro que me parece muito… ou seja, a música foi feita ao encontro do poema que ela inicialmente me apresentou e a expansão do poema que ela já tinha foi feito ao encontro do loop que eu depois vim a fazer. 

E antes de mergulharmos um bocadinho mais no lado estético e artístico do disco há mais uma colaboração no álbum para lá do trio de músico e o trio de vozes?

Sim, o Salvador Sobral, num single que eu se calhar vou deixar para destacar a seguir ao Verão.

Quem conhece o teu percurso sabe que tu és uma pessoa aberta a colaborações com artistas de muitas linguagens estéticas diferentes. Isso representa algum tipo de desafio para ti? É como aprender uma língua nova quando de repente colaboras com um artista que consideres um bocadinho mais, vá lá, distante da tua raiz?

A pergunta é certeira e é muito difícil de responder ao mesmo tempo porque a resposta é um bocadinho aquilo que eu procuro com a minha entrega à música. Para mim, a colaboração é uma coisa que me estimula no sentido de eu criar música de formas diferentes, em primeiro lugar, e depois, por conseguinte, muitas das vezes com resultados diferentes. Mas nunca é tentando ter os resultados diferentes directamente. Ou seja, a colaboração em si leva-me para pontos-de-partida e pressupostos que não são aqueles aos quais eu chego sozinho enquanto estou a fazer uma composição puramente minha. Depois, por outro lado, e esta é no fundo a explicação mais simples que eu tenho até hoje — daqui a uns anos se calhar terei outra mas mais completa também –, o meu envolvimento com o jazz, como o envolvimento de qualquer pessoa com um estilo tão absorvente no aspecto da linguagem e da complexidade, é de amor-ódio no aspecto de: eu continuo a ter uma ligação indubitável ao jazz, e adoro sempre tocar standards de jazz, por outro lado a minha relação com a música e com a guitarra, que é o instrumento que eu amo, no fundo não é só um veículo de expressão, é uma relação anterior e é uma relação que não se prende só com o estilo. É como se fosse uma relação com uma pessoa que se vai redescobrindo. Portanto, eu preciso muito e vivo muito de um caminho de procura do meu lugar criativo na música, e não só num estilo ou numa linguagem. E para isso apetece-me sempre imenso conhecer pessoas e aprofundar esse conhecimento através do lado da arte dessas pessoas.

Essa aproximação é sempre intelectual no sentido de “está ali uma pessoa que é artista, que faz um determinado tipo de obra com que eu me identifico ou que me intriga ou que me interessa e portanto vou abordá-la no sentido de podermos vir a colaborar juntos” ou às vezes essas colaborações nascem de um lugar mais emocional de “cruzámo-nos num jantar, houve ali uma empatia qualquer e de repente estávamos a falar em fazer qualquer coisa juntos”. Como é que as coisas acontecem?

Quer dizer, pensando em algumas das colaborações, a maioria dos casos é completamente emocional. Com a Capicua foi claramente eu sentir que há uma pessoa com um trabalho super relevante, para além do mais escreve incrivelmente bem em português e consegue ajustar esse domínio da língua à música. Enfim, um encantamento (pouco explorado ainda) que eu também tenho pelo hip hop.

Ou seja, acaba por ser muito mais emocional essa aproximação e depois, eventualmente, também terá algum momento no qual eu paro para pensar um pouco em como é que pode ser essa procura. E aí eu também gosto de pensar em caminhos de formas mais estruturadas. Mas a primeira ligação é sempre emocional. Por exemplo à música “Conforto, parceria que fiz com a Capicua, eu ligo-me de uma forma totalmente emotiva como se a música nem fosse minha. É uma terceira entidade. Portanto, a resposta mais completa é essa: é muito mais emocional que outra coisa.

Gostava de falar um bocadinho sobre a guitarra, o instrumento (ou instrumentos), que usas neste trabalho. Estiveste alguns anos sem editar em nome próprio, isso significa que estás a explorar algum novo instrumento neste disco? Quiseste ir à procura de um novo som ou usas uma velha guitarra (ou várias) que já fizesse parte aí do teu arsenal?

A guitarra por acaso até está ali [apontando para o que está atrás de si]. Ou seja, é um instrumento novo, da mesma maneira que se calhar uma guitarra clássica, um instrumento de reportório clássico com cordas de nylon, é um instrumento diferente de uma guitarra de jazz. Uma guitarra de jazz é um instrumento diferente de uma guitarra de blues e de rock. É uma guitarra, como eles chamam em inglês, solid body (corpo sólido). E a música que cada um desses instrumentos produz, e a mim encanta-me essa ideia, é uma causa e uma consequência da música que existe. Ou seja, a guitarra eléctrica criou o caminho para o rock, vamos lá, e a guitarrra jazz criou a possibilidade da guitarra ser um instrumento que tem uma predominância no jazz que não tinha antes de existir a guitarra jazz que, no fundo, é a electrificação da guitarra. 

Quando te referes à guitarra de jazz, estás a falar dos hollow bodies?

Exactamente. A guitarrra com o corpo oco, ou seja, tem um som acústico, tem um som particular, é feita de uma maneira específica. Como são feitos os contrabaixos. É escavada à mão, etc. E esta guitarra de corpo sólido foi o primeiro instrumento que eu toquei, quer dizer, o primeiro instrumento foi o piano, mas a primeira guitarra que eu toquei e a minha aproximação à guitarra…

Mas não esse modelo específico que está atrás de ti?

Este não, tem poucos anos. Este foi um regresso às raízes do instrumento que me fez tocar guitarra. No fundo, guitarra não é só guitarra, guitarra são instrumentos diferentes que criam reportórios diferentes ou que se adequam a reportórios diferentes. Este disco é a reaproximação à guitarra de corpo sólido. À Fender Telecaster, à Gibson Les Paul, e neste caso é uma Pensa Suhr, que é um outro modelo um pouco mais recente, mas a ideia é válida na mesma. É uma redescoberta do meu amor pelo instrumento guitarra. A guitarra de jazz é um veículo para expressão do meu amor pelo jazz, ou seja [risos], há aqui um bocadinho de ligação ao instrumento. Existe uma ligação ao instrumento que pode ser esquecida se não for relembrada. E eu senti essa necessidade de me relembrar desse amor original. E realmente não é por acaso que demorei quatro anos entre o disco anterior e esta próxima edição a perceber de que forma é que eu conseguia reunir essas duas coisas que são importantes demais para estarem separadas e que são: o amor pelo instrumento e a minha expressão criativa. É como aprender a falar e depois saber o que dizer. Também só aprendemos a falar tendo o que dizer. E essa junção destes dois polos demorou este tempo. Tardou, felizmente, porque também me trouxe a um ponto muito mais aprazível de relação com a música. E também se nestes tempos não tiver essa relação, eu e qualquer pessoa que faça música, é um bocado difícil irmos caminhando porque as coisas estão… agora estão a renascer… desejavelmente vai tudo ficar bem. 

No teu texto refere-se que há aqui uma espécie de religação aos blues, que eu imagino que seja uma fonte de onde bebeste abundantemente. Fala-me um bocadinho sobre isso: como é que aconteceu a tua descoberta desse género? Na escola, imagino.

Antes até, começou em casa, ou seja, tive a felicidade de ter pais que ouviam música e um pai que tocava (e toca), de forma amadora, guitarra. O blues é um veículo bom para quem não tem conhecimentos muito aprofundados — a guitarra e o blues são coisas que se exploram facilmente, e o prazer de tocar o blues é uma coisa muito pluralista. Portanto, logo que eu peguei na guitarra sabendo pouco também tive essa possibilidade. Peguei na guitarra que existia lá em casa, a guitarra do meu pai, e repliquei, ou seja, fiz um bocadinho aquilo que sempre o tinha ouvido fazer. Ao meu pai de uma forma amadora mas também aos músicos e aos discos que se ouviam lá em casa. B.B. King, algum John Lee Hooker e depois um pouco mais tarde blues de Chicago. De seguida fui procurando uns festivais de blues dos anos 60, fui procurando por mim várias coisas mas essa ligação inicial — à improvisação até, e de certa forma o blues acaba por ser isso, quer seja no texto, quer seja nas notas — veio realmente daí. E a guitarra, a escolha da guitarra como instrumento principal, também foi totalmente pela paixão pelo blues e por ser, lá está, um estilo de fácil expressão, digamos, para os iniciados, que no fundo é o que qualquer guitarrista que pega numa guitarra sem saber mais nada é. 

Tu terás estudado o género ao longo dos anos. Desenvolveste paixões particulares? Há guitarristas que hoje tenhas como referência por causa desse mergulho mais fundo no género que possas ter feito?

O reportório é quase secundário, o que me dá prazer é ouvir o B.B. King tocar, ouvir o John Lee Hooker tocar. Não tanto pela música, ou seja, não construí grandes paixões pelos trabalhos discográficos. A seguir transformei um pouco essa paixão pela guitarra e pelo blues compatibilizando-a com um amor por reportórios. E isso já teve mais lugar com o Mark Knopfler, por exemplo, através dos Dire Straits, e o Eric Clapton. Guitarristas muito bons, também eles com uma raiz bluesy e aí comecei um pouco a consumir os discos como obra artística ou obra discográfica. Mas o B.B. King continua a ser uma influência gigante. Encontrei no Knopfler e no Clapton, e mais tarde no Chet Atkins, um ponto que me encantou de reportório como possibilidade de exploração de novos lugares da guitarra. Já não era só blues em Mi — depois de 10 blues em Mi também já ninguém tem paciência para ouvir mais. 

Mas mencionas músicos brancos porque interessa-te mais o lado estético do que o lado cultural da coisa?

Eu acho que me identifiquei mais com a história mais europeia, a verdade também é essa. A essência da improvisação do blues sei que está do lado negro da guitarra, mas eu realmente afeiçoei-me mais a um processamento europeu — o Mark Knopfler e o Eric Clapton são britânicos. 

Fala-me um bocadinho sobre o teu percurso académico. Ainda hoje o lado académico, agora como formador/professor, é importante na tua vida, mas a tua experiência, nomeadamente nos Estados Unidos em instituições de ensino, foi determinante para o artista que és hoje? De que forma é que tu sentes que te marcou e ajudou a ser aquilo que hoje sentes que és?

Sendo totalmente honesto e não querendo ser ingrato, acho que a instituição em si não tem grande papel, excepto o de ter sido a forma de eu estar em Nova Iorque com 18 anos. Ou seja, se não tivesse ido para uma instituição, eu tenho consciência que, mesmo que tivesse tido as possibilidades financeiras de o fazer, não tinha tido a estrutura nem a maturidade para aguentar esse tipo de pressão e de liberdade. Com 18 anos ir para Nova Iorque conhecer pessoas, viver na noite, enfim, acho que a instituição e a escola onde eu estive, a New School, foi essencial a eu poder ter vivido isso nesses anos. E nesse sentido não acho que a academia tenha sido indiferente. Foi a forma de eu ir para lá. Agora, onde as coisas aconteceram… aconteceram em clubes, aconteceram em sessões, aconteceram em pessoas que eu conheci, música que eu desenvolvi com essas pessoas. Ou seja, a mim importou-me muito mais esse lado, não é, o lado do underground, vamos lá, não querendo soar pretensioso. Mas underground literalmente: os clubes, a noite, enfim, chumbei a algumas disciplinas por faltas — não ia de manhã. Aí é que eu aprendi. Por outro lado também é verdade que aquela disciplina necessária para poder ir tendo as notas para ir ficando porque eles depois tinham que renovar o visto de estudante — se eu não o tivesse não podia estar lá. Essa disciplina aconteceu porque eu tive que compatibilizar esses dois mundos, não é, portanto mais uma vez acho que foi essencial estar nos Estados Unidos, para mim, pessoalmente, nomeadamente para encontrar um ponto no qual eu consiga estar sempre à tona daquilo que eu posso ser. E eu sinto que essa disciplina, vamos lá, é uma coisa essencial-

Em que anos é que lá estiveste?

A partir de ’98 até 2004/2005. Ou seja, estive em duas temporadas: uma fiz o curso, depois voltei para cá, trabalhei uns tempos para juntar dinheiro e voltei para lá uma segunda vez já com visto de artista e aí sim já consegui tocar — já não estava em escola nenhuma. Mas a primeira parte, a primeira temporada lá, foi mesmo importante como forma de eu me disciplinar a conseguir estar em casa um dia inteiro fechado e ter uma produtividade de cinco horas a trabalhar sozinho que é uma coisa que eu acho que não teria conseguido se não tivesse saído daqui/estado num país que é tão competitivo e em que a pressão é tão grande. Se uma pessoa não tiver um auto-estímulo também não o arranjará certamente nos clubes e na rua. 

Quando descreves essa experiência a alguém com quem estejas a conversar, qual é assim aquele concerto que tu dizes “ah, sim, eu quando lá estive consegui ver ao vivo” aquele nome que arruma com as conversas? Quais são os concertos que tenhas testemunhado e que tenhas guardado assim num lugar especial da tua memória?

É mesmo muito difícil essa pergunta. Eu estava muito muito muito focado, ou seja, esses anos foram os anos em que eu estava absolutamente embebido no jazz e portanto também com muita pouca receptividade às minhas origens musicais. Eu recusei totalmente e pus num canto da minha existência o blues e aquelas coisas todas que eu adorava para estudar jazz e para poder ser um guitarrista jazz incrível. Nessa altura estava muito fixado nisso.

Nessa vertente do jazz, vi tudo. Guardo, por exemplo, a memória de um concerto do trio do Keith Jarrett no Carnegie Hall. Acústicos, totalmente acústicos, foi a coisa que mais me impressionou na altura. Ou seja, um espaço gigante, piano acústico, baixo acústico e bateria acústica. 

Sem amplificação?

Nada. Foi forte. E em vez de destacar um ou dois concertos, destaco um ritual que eu tinha que era ir às terças e às quartas ao Smalls [Jazz Club]. Na altura era mesmo uma coisa muito caseira no melhor e no pior dos sentidos. Levavam a própria bebida. “Ok, as pessoas que vêm ao Smalls não têm provavelmente dinheiro para pagar uma cerveja a três ou quatro dólares, então podem trazer as bebidas”. Ia nesses dias porque tocavam dois dos guitarristas que eu mais gostava, e gosto, claro, o Peter Bernstein e o Kurt Rosenwinkel, um em cada dia e com as bandas de cada um vinham músicos fantásticos.

Em relação à tua carreira do lado de lá dessa vedação, digamos assim, porque já foste aluno e hoje dás aulas, como é que tu achas, olhando para os alunos que tens tido ao longo destes anos, que está entregue o futuro da nossa música? Que tipo de experiência tem sido esta? Compensadora, complicada…?

No dia em que eu achar simples, alguma coisa está errada. Acho que é a coisa mais desafiante, e às vezes até me assusto com a facilidade, e estou a ser outra vez totalmente aberto, mas ao mesmo tempo também estou a pensar nisto neste momento… ou seja, acho que é uma responsabilidade tão grande ser professor que eu só espero nunca sentir-me confortável. E não sinto. Até hoje não sinto. Tive o privilégio de ter sempre pessoas interessadíssimas, e muitas delas depois com carreiras lindas e que eu adoro acompanhar. E adoro essencialmente estar por perto das pessoas que vão surgindo e perceber todos os anos, de forma renovada, como é que as coisas me aconteceram inicialmente porque eu acho que estamos sempre… podemos estar sempre equidistantes do nosso início, podemos ou até devemos, mas eu não quero estar aqui com coisas que parecem que moralizam. Eu sinto que quero, sempre que possível, redescobrir a razão de ser músico. E obviamente que, estando por perto de pessoas que o estão a fazer –porque começaram agora –, eu tenho essa possibilidade. Ou seja, isto parece muito um pensamento egoísta, e do que é que eu extraio dos meus alunos, mas ao mesmo tempo eu creio que isto também é um espelho que reflecte a mesma imagem para os dois lados. Se eu tiver perto dessa génese do interesse e da curiosidade que leva ao nosso envolvimento com a música também se calhar vou conseguir passar melhor aquilo que eu fui tendo ao longo dos anos na minha própria experiência. E acho que é essencial que a minha experiência como professor reflicta o mais possível aquilo que eu vou sempre fazendo na prática, ou seja, discos, concertos e ter sempre vários pés no mundo real. Acho que é um bocado por onde eu sinto que posso levar melhor aquilo que posso passar a quem seja. Mas é uma responsabilidade muito grande.

Falando de jazz especificamente, mas imagino que poderíamos falar também na área das músicas eruditas, tenho identificado como um paradoxo, se quiseres… como é que 47 anos após o 25 de Abril continuam quase a contar-se apenas pelos dedos de uma mão, se tanto, os músicos afro-descendentes de jazz em Portugal. E o que eu tenho vindo a questionar-me a mim próprio, que ainda não estudei o assunto, é se isso não é um problema das instituições de ensino, ou seja, tens noção se existe acesso facilitado ou trabalho dessas instituições junto das comunidades em busca de talento para o futuro? Ou seja, neste momento ingressar numa instituição dessas é uma coisa fácil? É uma coisa ao alcance de qualquer um? Um bom saxofone, por exemplo, custa muito dinheiro, não é?

É uma pergunta super pertinente e o que eu acho é o seguinte: o acesso às instituições não é dificultado por via racial ou de background cultural ou financeiro ou faixa etária ou o que seja. Acho que existe de raiz uma dificuldade de acesso, como mencionaste, aos instrumentos até às próprias propinas, [sejam] caras ou baratas. Acho que essas dificuldades que possam começar por uma questão simplesmente financeira deviam ser asseguradas. 

Há bolsas, por exemplo?

Eu não posso falar por todas as instituições. Acho que não é uma coisa que esteja muito enraizada cá na nossa na cultura. Nos Estados Unidos todas as universidades tinham imensas bolsas e tal. Acho que não é uma tradição nossa, tal como o mecenato não é tanto uma tradição nossa. Diria assim de uma forma generalista porque há muito gente que se calhar me vai repreender por dizer isto, mas acho que a nossa visão um bocadinho mais tendencialmente esquerdista de “o estado há-de dar conta de uma boa estruturação da sociedade” nos leva a não explorar tanto esse lado das bolsas e do mecenato. Agora, não acho que estejamos num ponto ideal de igualdade. Acho que não, não estamos.

Para complementar esta resposta, é importante dizer que existe uma aculturação que eu acho que é super positiva, não menosprezando o jazz como música de origem afro-americana. O jazz português é um conceito/designação que é usada um pouco porque existe essa aculturação.

Mas há portugueses de todas as cores e não há portugueses de todas as cores a tocarem jazz.

Ou seja, na primeira parte da resposta eu concordo plenamente que não creio que já tenhamos feito o caminho que precisamos de fazer para retirar essas desvantagens para quem queira estar e contribuir para o desenvolvimento deste idioma, se é que podemos chamar isso, jazz português. 

Mas acho que existe uma aculturação e portanto, a um certo ponto ou de uma certa perspectiva, eu não distingo nem vejo a proveniência nem a etnia. Mas, obviamente, há uma parte que é muito musical e muito artística e há uma outra parte que é muito pragmática e com certeza que eu acho que tem que haver soluções para esses problemas. As bolsas, a questão dos acessos, as pessoas mais desfavorecidas que precisam que exista disponibilização de instrumentos, etc., enfim, acho que há imensa que pode e tem de ser feita ainda.

Estamos a aproximar-nos do final da conversa e queria voltar ao Hasselberg e ao Correia. O que é que esses dois companheiros têm de tão especial? Tu já trabalhaste com eles em diferentes contextos no passado, e eu acho que eles são músicos incríveis. 

Os dois em comum têm uma coisa que eu procurei e procurarei sempre nos meus companheiros de música que é: são mestres de parcimónia. Ou seja, com muito pouco dizem muito. E isso faz com que tocar com eles seja sempre um prazer até porque há sempre muito muito muito espaço e tranquilidade para a música acontecer. Realmente chegam ali à essência daquilo que a música pede — e não mais. Eu identifico-me imenso com isso, acho que a procura da simplicidade está muito ligada à música que eu quis fazer neste disco e ao blues, neste caso. 

O João Correia é a primeira vez que eu colaboro com ele, neste projecto, mas já queria há muito tempo tocar com ele e tive assim uma intuição de que ele e o Hasselberg juntos seriam bombásticos e, pronto, obviamente que são. Não conheço outro projecto em que eles já tenham tocado juntos. Individualmente são fabulosos e as coisas todas que eles fazem eu sigo e adoro. Ah, uma coisa que eu queria dizer: timbricamente cada um deles nos seus instrumentos para mim são fenomenais também. Pronto, é sempre uma descoberta estar com eles a explorar reportório e, atenção, no dia 22 de Junho, no Teatro Maria Matos, vai ser a primeira vez que tocamos juntos em palco. 


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