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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/08/2021

Fluindo.

Ace: “Tento não usar muito o cérebro quando crio. Tento usar mais a sensibilidade e a alma”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/08/2021

A Rua Antero de Quental foi o ponto de encontro entre Ace e DJ Guze, onde ambos cresceram. O início de uma pandemia que não deixa de ser assunto de primeira página um ano e meio depois atirou toda a gente para um (primeiro) confinamento, sem previsão de saída, o que levou o veterano rapper a olhar para a Rua da Frente, um álbum que fala de percursos e origens e que as invoca quer nas rimas, quer nas batidas. 

Nuno Carneiro lançou o convite ao vizinho, e juntos, volvidos à base, reviraram os cantos à casa e reencontraram as motivações que os levaram a começar a “brincar” ao rap há mais de duas décadas. É bem visível a linha do tempo que a dupla desenha ao longo do disco, de quem recorda o passado para compreender o presente e projectar o futuro. Para a Rua da Frente é que é caminho.



Este álbum partiu de um encontro entre dois amigos e vizinhos da mesma rua. A ideia deste Rua da Frente surgiu, exactamente, na altura do confinamento, ou já havia planos antigos de trabalharem juntos num projecto?

A ideia surgiu-me durante o primeiro confinamento, sim. Antes do mesmo, tinha decidido procurar um emprego porque a música há já muito que não me garante o mínimo de conforto ou segurança financeira. Fui a uma entrevista numa quinta-feira, fui aceite e começaria na segunda-feira seguinte. Só que na segunda-feira recebi uma mensagem a dizer que a empresa tinha fechado temporariamente por precaução devido ao Covid. Passado um dia ou algo assim, o Governo decreta o primeiro confinamento e eu vejo-me em casa, sem poder sair e relegado para o mesmo cenário de sempre: eu e a música. Música eu podia fazer em confinamento e foi o que resolvi fazer. A minha ideia inicial era a de fazer o álbum o mais rapidamente possível e lançá-lo para a net ainda em confinamento, por isso escrevi e gravei todo o material em 10 dias, no máximo. Foi mais ou menos uma música por dia. Tentei recriar o M.O. de tempos idos, com mais impetuosidade e inspiração do momento do que reflexão e análise aprofundada do que estava a fazer. Deixei fluir. 

Conseguiram trabalhar neste disco juntos, presencialmente?

Não conseguimos ou não quisemos correr riscos desnecessários. Mas também não foi preciso. Já nos conhecemos há muitos muitos anos, a comunicação móvel funciona.

A divisão foi totalmente linear, entre Ace nas rimas e DJ Guze nas batidas, ou a produção foi desenvolvida por ambos em conjunto?

Quase totalmente linear. É claro que o MC acaba por ser também ele produtor, porque o “aspecto” final de uma música depende muito do tamanho dos versos, onde entram os refrões, se existe uma bridge ou não, se o refrão é cantado ou não, etc… O beatmaker foi o DJ Guze, o MC fui eu. O produto final é fruto do trabalho de ambos com decisões mais ou menos divididas para ambos os lados. Também ajudei nas faixas sem rap com recolha de material áudio e o próprio “conceito” surgiu-me já com metade das letras escritas.

Procuraram uma sonoridade nostálgica propositadamente? Boa parte dos instrumentais remete para esse sentimento, como um convite à confissão nos versos. Nesse sentido, os beats serviram as letras ou foram um estímulo para escrever a partir do zero? 

Quando pensei no Guze como beatmaker a “provocar” para este projecto, já foi devido à sonoridade dos beats dele. Já sabia o que podia esperar e ele não desiludiu. Então, escolhi os beats que mais gostei e dei-lhes o que eles me pediam. Portanto não foi algo combinado entre os dois, “vamos fazer isto assim”, a sonoridade é o resultado da combinação dos beats (típicos) do Guze com a minha atitude mais crua, menos reflectida em frente ao microfone. Escrevi 10 letras para este álbum, mas não as usei todas. Inclusive acabei por ir buscar uma letra “à gaveta” para usar — a da “O Infinito É Pouco” (escrita há 6 anos e algo, enquanto a minha filha ainda estava na barriga da mãe). Portanto, à excepção dessa música, todas as outras foram escritas do zero.

Agora que já passaram alguns anos desde o fim oficial dos Mind da Gap, e com alguma distância dessa fase terminal, como tem sido seguir em frente focado na carreira a solo? Há uma grande diferença de liberdade criativa entre trabalhar em grupo, com ideias bastante definidas, e sozinho, ou pelo menos sem a condição de servir um projecto colectivo?

Tem sido menos complicado, por um lado, por essa questão da partilha de gostos e ideias, mas talvez mais complicado em termos de aceitação (talvez porque não sei até que ponto os MdG se dariam melhor do que eu a solo nos dias de hoje). Ao mesmo tempo, apesar das dificuldades inerentes ao facto de teres três pessoas muito diferentes a tentarem encontrar um espaço de comunicação em uníssono, no seio de um grupo a funcionar saudavelmente, quando a criatividade funciona, quando vês a sinergia a funcionar, é bonito. E teres com quem partilhar os momentos – altos e baixos – também é muito valioso. É o que é… Mas o rap já era a minha paixão antes de os MdG existirem e continua a sê-lo, depois de deixarem de existir. Estou aqui para mostrá-lo.

E em termos de temáticas, calculo que também haja mais espaço para abrir o livro, sem ter de seguir um caminho já pré-estabelecido. Ao fim de tantos anos a escrever música ainda há muito por dizer, ou as perspectivas é que são diferentes?

Nos MdG nunca houve “ideias bastante definidas” ou “um caminho pré-estabelecido”. Nunca usámos receitas. Inventámos receitas num álbum para no seguinte quase as refutarmos, sempre à procura do novo, do nunca feito. Olhando para trás, percebe-se que podíamos ter tido muito mais sucesso comercial se tivéssemos feito as coisas de acordo com as leis do mercado. Mas o nosso foco foi sempre a criatividade, foi sempre a exploração da nossa imaginação e capacidades enquanto músicos ao máximo, não a viabilidade comercial da nossa arte. Nunca vendemos uma enormidade de discos (quer dizer, a verdade é que não fazemos ideia, já que as editoras não nos apresentam relatórios), mas há uma árvore genealógica bastante clara no rap nacional cujas raízes são os MdG. Relativamente aos temas, há alguma liberdade a mais, claro, por não ter de partilhar assuntos nem espaço nos beats, é tudo para mim. E há sempre coisas para dizer. Se não forem coisas novas, podem ser as mesmas, desde que não sejam os mesmos raps. 

Em 2017 dizias numa entrevista ao ReB que gostavas de ter mais participações no teu próximo projecto, mas neste há apenas uma, os Enigmacru. Isso deve-se ao facto de ser um álbum bastante pessoal e partilhado com o DJ Guze? Esta parceria acabou por preencher essa vontade em colaborar com alguém?

Em 2017, o meu “próximo projecto” estava já a ser feito e já tinha algumas participações. Participações, diga-se, não têm de ser necessariamente de um vocalista — seja ele rapper ou cantor. No entanto, esse álbum, para o qual gravei cerca de 30 músicas, sofreu várias metamorfoses, passou por várias fases e acabou por não ser terminado, tendo ficado pelas gravações. Só chegaram à fase final as músicas que acabei por lançar: “Benção” feat. Macaia (com clipe realizado por Sam The Kid), “Tão Bom” e “Mui Nobre”. Quem sabe um dia debruço-me sobre isso. O meu problema com participações de rappers é que eu sou o monstro das bolachas. Mas versão beats. Quando eu sinto um beat ao ponto de não conseguir calar a cabeça de rimar compulsivamente, eu pego na caneta e escrevo. Não páro para pensar se ficava bem alguém aqui a rimar comigo, não espero um bocado antes de escrever para racionalizar a situação. Está a fluir? Deixa fluir. Quando exprimir o que queria, vê-se se sobra espaço para alguém. Esse é o problema…. Tento não usar muito o cérebro quando crio. Tento usar mais a sensibilidade e a alma. Não é uma questão de ser invejoso e querer tudo para mim ou ter a mania que sou o maior e achar que não preciso de ninguém. É mesmo tipo um toxicómano que precisa daquela dose. Eu preciso de exprimir aquela ideia que me está a martelar na cabeça desde o momento em que ouvi este beat. E sai como sair. Com 48 barras seguidas, sem refrão, com duas partes de 16 barras com refrão pelo meio, com espaço para participação (se conseguir ser sucinto, que é muito raro) ou não. Depois da letra estar escrita, muito dificilmente eu consigo “mutilá-la” só para encaixar outra pessoa. Quando são beats meus, por estranho que pareça, é-me mais fácil imaginar este ou aquele feat.. Quando recebo beats, tomo conta. A participação dos Enigmacru foi inspiração e conveniência ao mesmo tempo. Escrevi uma letra para esse beat, mas só estava a sentir as primeiras 16 barras. Um dia, ao ver algo deles numa rede qualquer pensei: esta atitude naquele beat ia matar. Uso as 16 que já tenho e junto mais duas partes. Ficamos com uma música potente e eu faço a minha homenagem ao trabalho que os Enigmacru têm feito. E assim foi. Até nisso fomos nostálgicos, onde é que já se viu convidar alguém para uma participação porque se respeita e admira o seu trabalho e não porque dá likes?

Há uma certa tendência para se esperar algo datado de artistas que vieram de uma escola do boom bap mais clássico, e este álbum vem contrariar esse preconceito. Foi algo que tiveram especialmente em mente, ou isso é apenas fruto de uma evolução e maturação natural na vossa música? Isto porque, apesar de o passado ser o mote deste projecto, acabaram por chegar a um resultado bastante fresco e actual, mesmo sem perder essa essência do rap dos anos noventa.

Em relação aos MdG — apesar de usarmos o epíteto de clássico quase como cognome — não nos vejo como boom bap clássico. Vejo-nos como um grupo com uma identidade sonora definida, com óbvias raizes nos 90s, que é a altura em que começámos, mas, ao mesmo tempo, muito experimentais, aventureiros até, aqui e ali. Vejo-nos como a vanguarda, não o “clássico”. Em 2002 rimar em “double time” por cima de um beat como o da “Pura Riqueza” não é de todo boom bap clássico, por exemplo. Não fazíamos trap, mas não há só duas linguagens no rap, não é só boom bap e trap, ou és uma ou és outra…

Em relação ao Rua da Frente, nada foi muito pensado, discutido ou analisado, honestamente. Há uma ou outra coisa que ficou de fora porque percebemos que não combinava com o resto, há detalhes de ambos os lados que foram sendo limados, pouco mais. A parte mais “back and forth” foi a das misturas porque o DJ Guze acompanhou pessoalmente e ia-me enviando o avanço das mesmas para eu também ir opinando.

Vamos poder contar com edição física deste trabalho?

Isso não está programado, mas deixamos a porta aberta para no futuro poder acontecer.  

Estão a ponderar tocar este disco ao vivo? E apresentá-lo na vossa cidade?

Falar de concertos hoje parece-me prematuro. Da maneira que as coisas estão, fazer planos pode ser só para desiludir. A ver se algum dia voltaremos a algo parecido com o antigo normal. Nessa altura pensamos nisso, se for razoável (não faria grande sentido um concerto de apresentação em 2027).


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