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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/10/2023

Biografia de uma Consciência é o novo disco do rapper e produtor.

Ace: “Para fazer este álbum enfrentei o maior desafio da minha carreira”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/10/2023

No ano em que celebra o 50.º aniversário de vida e os 30 anos de carreira (foi em 1993 que os Da Wreckaz deram o pontapé de partida, eles que rapidamente se tornariam nos Mind da Gap), Ace reflecte sobre a sua própria vida de múltiplas formas. Por um lado, iniciou o A Minha Vida Dava um Podcast, onde vai contando episódios curiosos de vida que o marcaram, sejam mais íntimos ou profissionais. Por outro, lança esta sexta-feira, 6 de Outubro, um álbum que acaba por servir como metáfora para a sua carreira, Biografia de uma Consciência.

O disco conceptual tem no centro uma espécie de alter-ego, que dá pelo nome de Brando como Marlon, o ator que interpretou o “Padrinho”, essa figura carismática, célebre e obscura a que Ace se tem associado, tendo sido ele um padrinho para tantos, sobretudo no rap do Grande Porto. Num álbum com um registo mais “street” ou “gangster”, Ace vê Brando como uma continuação de A.Ventura, heterónimo com que gravou um par de maquetes há perto de 20 anos. Não querendo utilizar este nome artístico por razões óbvias que têm a ver com a política nacional contemporânea, optou por desenvolver a persona de Brando, curiosamente o protagonista de um disco especialmente duro, com uma sonoridade mais crua.

Ace olha para Biografia de uma Consciência quase como se se tratasse de um filme, sendo um álbum com narrativa. Para si, o objectivo máximo do projecto seria eventualmente escrever o livro deste “filme”, onde aprofundasse o guião que podemos escutar ao longo destas 13 faixas, ou adaptar o projecto ao palco através de um “musical”, ou levá-lo mesmo ao grande (ou ao pequeno) ecrã. Além disso, planeia lançar um livro complementar à obra, com ilustrações relacionadas com as faixas. O Rimas e Batidas entrevistou Ace sobre o novo disco e o podcast ao qual tem dado voz desde Julho deste ano.



Com o podcast que tens estado a fazer e o novo álbum, Biografia de uma Consciência, parece que estás numa fase de reflexão sobre a tua própria vida, num processo de olhares para trás. É o que te apetece fazer neste momento?

Sim. Acho que também tem a ver com ser um ano simbólico para mim. Fiz os 50 de idade e também há uma feliz coincidência, apesar de eu não acreditar muito nelas, que é o facto de o IntensaMente fazer 20 anos, eu fazer 30 anos de carreira e os dois aniversários somados dão a minha idade. Acho que fui um bocado movido por este acontecimento numérico, pelo menos na parte do podcast, porque o álbum já está a ser feito há uns anos. Não posso usar isso como desculpa. Apesar de o nome ter a ver com este estado de espírito, digamos assim. Mas o podcast, nitidamente, foi uma vontade que tive por ter chegado a uma altura… Era um ano em que queria ter feito muita coisa de especial e que, de certa forma, me senti meio impossibilitado. Então resolvi fazer estas coisas sem precisar de ninguém. Escrever um livro era uma ideia que eu já tinha há muito tempo, mas um livro também não é assim uma coisa tão simples hoje em dia se calhar até é simples demais, mas a forma como as coisas são feitas não me agradam muito portanto achei que deveria aproveitar as possibilidades que tenho de fazer isto sem precisar de ninguém, de editoras, de mecanismos nenhuns pelo meio que não sejam um computador e um microfone para gravar o podcast. O álbum, apesar de se chamar Biografia de uma Consciência, e entrar um bocado nesta filosofia, já é algo que estou a fazer há algum tempo. Já está gravado há dois anos, para aí. Entretanto foi arranjar alguém para misturar, para me ajudar a fazer a capa que também foi um projeto ambicioso, porque é uma capa toda feita com ilustrações, que em princípio darão origem a um livro com elas e as letras das músicas. Foi todo um processo que também não quis apressar e quis ter a certeza de que chegava ao fim, olhava para o produto final e que fiz tudo o que podia para que isto fosse o melhor que estava ao meu alcance.

Indo primeiro ao podcast: pensaste logo nesta estrutura de contares episódios específicos da tua vida? Não estão por uma ordem cronológica, são mais ou menos soltos, e valem pelas histórias. Porque cada episódio, no fundo, conta uma história que te marcou. Sendo que o primeiro funciona mais como introdução, para dar um contexto geral. 

Tinha lógica começar pelo meu nascimento, porque é uma história forte e é a primeira pela qual passei [risos]. Esse fazia mesmo sentido ser o primeiro. Depois, não decidi que não fosse cronológico. É mais porque, para não me perder muito no discurso quando estou a gravar, porque tenho muita dificuldade em focar-me porque estou muito consciente de que as coisas para acontecerem como acontecem tiveram várias influências, e depois começo a perder-me e vou contar outra história, e buscar uma referência de um livro ou de um filme qualquer… Acabo por me perder, normalmente é o que acontece nas entrevistas. Então, para não me perder, obriguei-me a escrever guiões. E o facto de não ser cronológico tem a ver com… Tenho aqui uma lista de temas que acho que são importantes ou engraçados ou curiosos de contar. Abro o caderno onde tenho isso apontado, “hoje apetece-me escrever sobre isso”, e escrevo. E também tem a ver com o facto de a minha memória não ser a melhor: eu sou péssimo com datas e há temas nos quais, para não estar completamente vazio de referências temporais, tenho de andar a pesquisar quando é que eu acho que isto aconteceu, ou ir ao Facebook de alguém e tentar encontrar gajos que andaram comigo na escola e falar com eles… Há uns que me vão dar mais trabalho e esses se calhar estou a deixar mais para o fim. Também acho que não ser cronológico tem mais interesse do que estar aqui a seguir a historinha toda. Assim apanha-se surpresas e nunca se sabe o que vem a seguir.

E tens ideia de quantos episódios é que vais querer fazer? Ou é um processo on going?

É on going. Porque estou sempre a tentar puxar pela cabeça, a tentar lembrar-me de assuntos… Há episódios de que me lembro e quando vou apontar no caderno onde tenho os temas percebo que já lá está… Mas vou-me sempre lembrando de coisas. Felizmente, como já deu para perceber, é uma vida recheada. E também tento que não sejam apenas histórias… Não diria depressivas, mas fortes. Já passei por algumas situações sérias na vida e não queria que fossem todos assim, queria que alguns episódios fossem mais divertidos. 

Até agora tem havido esse equilíbrio.

Sim, meti aquele do Sandro G pelo meio para tentar equilibrar. É mais engraçado do que propriamente de “levares um soco no estômago”. E uso esta expressão porque ma disseram no Instagram há uns dias a propósito do episódio do “Daniel”, de alguém a dizer-me que estava a ouvir o podcast, ainda não tinha chegado ao fim, e como ainda não tinha chegado mandou-me assim um comentário mais fútil, sem grande profundidade… E quando chegou ao fim mandou-me outra mensagem, quase a pedir desculpa, porque ainda não tinha ouvido tudo e só depois é que percebeu que era uma história bastante mais séria do que aquilo que estava à espera que fosse. Começando a ouvir, as pessoas pensam que é a cena do “ah, eu gostava de andar de mota e era um teenager maluco”, mas quando chegam ao fim é que percebem onde eu queria chegar.

Que feedback tens tido?

Tenho tido feedback de pessoas que conhecem o Ace, mas não conhecem propriamente a minha vida. E que me congratulam por eu lhes dar a possibilidade de dar a conhecer um bocado mais a pessoa que está por trás do artista. É engraçado porque, logo no primeiro episódio, recebi uma mensagem de um rapper do Algarve, que percebeu que havia uma letra de Mind da Gap e há-de haver várias que tem relação com uma daquelas histórias pessoais. “OK, agora já percebi porque é que nesta letra disseste isto”. Isso faz-me sentir que estou a fazer bem isto e gosto de pensar que é um registo que vai ficar aqui, pelo menos enquanto houver Internet… E que é uma coisa que toda a gente vai poder sempre ouvir, inclusive a minha filha quando for um bocado mais velha pode ir ali e conhecer um bocado as histórias do pai. Acho piada a isso. E está a dar-me prazer. É uma coisa que sinto que precisava de fazer para me esvaziar a mim mesmo destas cargas energéticas, destas histórias, e eventualmente poderei ajudar alguém e essa situação dar também a conhecer mais do Nuno, que está por trás do Ace…

Muitas vezes os artistas descrevem o processo de fazerem a sua arte como terapêutico. Isto também é terapêutico para ti, nesse sentido?

Sim, e sou dos gajos que conheço que, em termos de letras, se calhar mais fez esse exercício de se expor ao público e de dizer coisas que nem eram muito naturais ou normais de dizer. Gosto de pensar que essa é a minha marca no rap nacional, a minha invenção em termos de estilo. Mas sinto que isto me está a fazer bem. Isto acaba por ser um cliché, mas os artistas têm muitas vezes aquela coisa do “falso tímido”. Temos problemas em falar com uma pessoa, mas quando estamos à frente de muitas pessoas conseguimos abrir-nos. É um mecanismo mental que certamente já terá sido estudado na psicologia. E aqui há coisas que só uma ou duas pessoas no mundo conhecem e que eu estou a sentir-me bem ao colocá-las fora de mim. De certa forma, é terapêutico.



Embora tenhas exposto sempre as tuas vulnerabilidades e de o estares a fazer novamente no podcast, há histórias ou assuntos que preferes não partilhar? Porque também é natural não quereres partilhar tudo. 

Não… Acho que vou mesmo partilhar tudo [risos]. Daquilo que me toca, vou dizer. Quando envolve terceiros, tenho que ter cuidado, porque não me compete estar a expor outras pessoas. No episódio do Sandro G, por exemplo, tive o cuidado de dizer que aconteceram outras situações que não iria expor ali. E falei com o Sandro. Mandei-lhe uma mensagem no Instagram a dizer: “Lembras-te da nossa noite em São Miguel? Estou com um podcast e gostava de contar essa história. Vou escrever, gravar e mando para ouvires para dares a tua aprovação”. Passados dois segundos ele estava a ligar-me via Instagram e tive mais de uma hora a falar com ele ao telefone, da minha e da vida dele, dessa noite, e ele disse-me logo que não haveria assim grandes coisas que eu pudesse dizer que lhe pudessem causar problemas neste momento… E quando ele ouviu mandou-me uma mensagem a dizer que tinha adorado e que podia publicar. À parte dessas histórias pelas quais passei que possam prejudicar outras pessoas, como é meu apanágio, vou despudoradamente dizer tudo e mais alguma coisa. Com algum cuidado, lembrando-me que a minha filha poderá vir a querer ouvir estas coisas e pensando no mau exemplo que posso estar a dar nalgumas situações… Tirando isso, vou dizer aquilo que há para ser dito. E não sei se estás com vontade de perguntar, mas sim, vou chegar ao episódio em que hei-de falar sobre o fim dos Mind da Gap. Ainda estou a aprender, e quando me sentir mais oleado, vou-me sentir mais à vontade para abordar assuntos mais complicados esse é um deles.

Falando do disco, estás neste álbum como Brando — tal como o Marlon. Para quem acompanha o teu percurso, a tua ligação à figura de “Padrinho” e, daí, o Marlon Brando, é óbvia. Mas porque não usar o nome Ace para este trabalho?

Nem sei bem, se queres que te diga. O álbum nasceu por iniciativa de uma proposta que me foi feita pelo Keso de produzir um disco para mim. E a forma como ele me apresentou a proposta já vinha com uma direção musical agarrada. Era para ser um álbum mais à Griselda ou Roc Marciano. Ao qual eu devo ter respondido, como sempre, com a minha super auto-confiança: “Não preciso de fazer um álbum à Roc Marciano, posso fazer um álbum à Ace de há uns anos”. Mas, pronto, a onda seria ser mais underground, nua e crua, um álbum menos “Não Stresses” e mais “És Como um Don”. E achei que fazia todo o sentido. Tinha feito o disco com o Guze, depois com o Madkutz, era fixe fazer uma série de discos com produtores. Entretanto, também tinha abordado por diversas vezes o assunto de fazer o mesmo com o Sam The Kid, e na minha cabeça fazia todo o sentido uma série de discos com produtores, e que poderia culminar nesse com o Sam. Entretanto, o Keso mandou-me beats, eu fiz músicas, já tinha 10, comecei a gravar… E entretanto tivemos algumas divergências artísticas e abortámos o álbum em conjunto. O que aconteceu foi que fiquei com 10 letras de que estava a curtir, com aquele sentimento de ser o Ace que já fui em tempos, com uma cena mais street, não sempre preocupado em passar uma mensagem…

Mas ainda assim é um disco que fala sobre a tua vida, não é? Apesar de ser mais street, como dizes.

Mais ou menos, já lá vamos. Mas, como tinha aqueles raps, não os queria deitar fora nem aproveitá-los para outra coisa. O que fazia sentido era pegar naquelas músicas e fazer um álbum. Então enfrentei o maior desafio da minha carreira, que foi fazer beats para aquelas músicas, para aqueles raps. Parecendo uma coisa simples, é super difícil porque são letras que foram escritas por cima de um beat e eu sou o tipo de MC em que nitidamente são os beats que me dizem o que tenho de fazer. Tentar encontrar um beat que me diga a mesma coisa foi super complicado. Fiz mais de 70 só para uma música específica. Ficou muito diferente daquilo que estava, eu tenho um estilo de produção muito diferente, mas foi o mais aproximado que consegui fazer para encaixar naquele ambiente de letra. E estou muito feliz com o resultado. O que aconteceu foi que, depois de gravar os raps aqui no estúdio em casa, ao ouvir as músicas seguidas percebi que, se as colocasse de uma certa forma, numa certa sequência, que havia ali uma espécie de narrativa… 

E é aí que aparece o Brando?

Comecei a escrever as letras como Ace. Aliás, há pelo menos uma em que digo mesmo Ace. Mas depois de perceber que o álbum tinha uma espécie de narrativa, que era uma espécie de um filme em música, não sei porquê mas achei que era fixe não ser o Ace. Então, o Brando acaba por ser a personagem do filme alheio a mim, imaginemos e ao mesmo tempo todo que este filme que é contado, que também é uma coisa de que me apercebi depois, funcionava perfeitamente como uma metáfora para o meu percurso na música. Portanto, acaba por não ser a história da minha vida. Nem comecei a escrever as letras a pensar nisto, sou um gajo dos conceitos à posteriori. Limito-me a seguir aquilo que o meu instinto me diz e depois, quando chega ao fim, olho para as coisas e percebo… “OK, está aqui uma cena.” É difícil de explicar, mas o Brando é um pseudónimo do Ace que poderia estar a contar metaforicamente a história da minha carreira, mas que, ao mesmo tempo, é a história de um filme de um gajo que se chama Brando e que não é rapper, mas antes um comerciante de algo ilegal que nunca é assumido nem definido o que é. O disco começa com duas ou três músicas muito de egotrip e meio freestyle, sem grande temática definida, mas que são um bocado aquele princípio de filme em que vês a personagem a fazer escolhas que vão definindo o seu carácter. E percebes que é um gajo com uma vida boa, confortável, a fazer algo de ilegal e a vida dele depois sofre uns percalços e, para não contar aqui tudo, acaba com a morte dele. A morte da personagem Brando, comerciante de algo ilegal que nunca é definido, metaforicamente será a situação de o Ace começar a sua carreira em 93 e, hoje em dia, como é natural, está noutro patamar de carreira porque os tempos evoluem e as gerações vão-se substituindo, o que é perfeitamente natural. Como te disse na nossa última entrevista, é algo que sei que é natural. Não me sinto feliz por isso, porque gostava de me sentir mais confortável na vida enquanto rapper como profissão, mas é uma coisa que aceito. Funciona para as duas histórias.



Na entrevista que deste recentemente à Agência Lusa, dizes que as últimas faixas evocam quase o fantasma ou o espírito do Brando, depois da sua morte.

Sim, as duas últimas… Uma será o fantasma a assistir à cerimónia fúnebre, e a relatá-la e a dissertar sobre a mesma, e a última é a mais difícil de interpretar. Eu próprio não sei defini-la muito bem. O truque que usei para a conseguir escrever foi fazê-la como se estivesse a falar com o meu pai, que faleceu há relativamente pouco tempo. Portanto, sou eu a falar com alguém. Eu digo: “Sentimos a tua falta”. Tento interpretar como o Brando rapper a falar com o Brando do filme, o Brando a falar com o Ace, o Ace a falar com o Brando, não sei muito bem… É uma conversa com alguém em que o sujeito sou eu na mesma. É difícil de interpretar, mas não deixa de ser, provavelmente, a minha favorita do álbum.

Também tens uma faixa com o Presto, a “Todos Tortos”.

É um momento específico do filme, em que estou um bocado desiludido com falta de aconselhamento depois de me acontecer uma situação chata. Andei a telefonar a muita gente, não me atenderam, e uma das pessoas que estão sempre lá para mim é o Presto. No filme, eu e o Presto temos uma saída, vamos para um bar ou para uma discoteca afogar mágoas e brindar às vitórias. O espírito da música é um bocado agridoce, de constatação da nossa posição… Esta é aquela música mais directa em relação ao tema da carreira. Estou muito feliz por a ter feito, aconselhei-me também com o Sam e mostrei-lhe algumas músicas, eu já era para a ter escolhido como single mas ele ainda reforçou mais isso. É uma das poucas oportunidades de as pessoas ouvirem novamente o Ace e o Presto numa música, e está muito nesse espírito. O nosso próprio tom na música é meio saudosista e acho que desperta saudosismo nas pessoas. O single vai sair quando o vídeo estiver pronto. Voltei ao underground e posso fazer o que me apetece. Se calhar preferia não ter esta liberdade e ter uma melhor posição na vida, mas posso fazer o que me apetece sem ter de ligar a ninguém a perguntar se posso… É muito fixe ter esta liberdade.


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