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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2023

Na última sexta-feira de cada mês, Miguel Santos escreve sobre artistas emergentes que têm tudo para tomar conta do mundo da música.

Abram alas para… Marta Del Grandi

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2023

Cá estamos, no final de mais um ano. O fim de mais uma volta da Terra ao Sol, o momento das prendas no sapatinho e das listas de melhores do ano no feedzinho. Enquanto indivíduos, somos convidados a um balanço sem movimento, ao ponderar de um ano que passou num momento estratégico para o fazer. É de passas na boca que damos as boas-vindas a 2024, mas enquanto ainda impera 2023, revisitemos as nossas conquistas, sonicamente acompanhados por Marta Del Grandi.

A escolha desta artista italiana como companhia musical deve-se à natureza pensativa da sua obra, mas também devido à simplicidade com que nos convida ao pensamento. E tendo em conta o percurso da artista, simplicidade não é o que seria de esperar. Desde pequena que abraçou a música, mas passou por várias etapas. Brincava às harmonias vocais com a irmã até que aprendeu flauta na escola e divertiu-se a transcrever para os sopros a canção dos sinos que ouvia tocar ao pé de casa. Aos 16 anos começou com aulas de canto e dois anos depois estava a cantar árias e a aprender técnicas vocais de renome sob a orientação de uma cantora de ópera. Aos 20 anos de idade, ingressou no Conservatório Real de Ghent para um curso de canto jazz. Saltitando por várias inspirações, Del Grandi foi lapidando a sua voz para ser uma fiel expressão de quem é.

Durante os anos de estudo em Ghent, conhece o baixista Nils Vermeulen, e juntos recrutam o guitarrista Artan Buleshkaj e o baterista Simon Rama para o projecto Marta Rosa, a alcunha de criança de Del Grandi. Depois de uma temporada no Nepal em 2014 — país onde viveria até 2020 a dar aulas de canto e a colaborar com artistas locais — é editado em 2016 Invertebrates. O projecto de estreia desta artista deve muito à música de guitarras, tingida pelas cores do jazz e da folk com alguns apontamentos vocais que nos lembram a teatralidade da música de St. Vincent. E apesar de ser o único projecto de Marta Del Grandi sob este nome artístico, elucida-nos um pouco sobre a natureza da sua música.



Em 2020, uma visita à terra natal acaba por se transformar numa estadia definitiva por causa da pandemia, e Del Grandi decide tirar algumas músicas da gaveta e conjurar outras novas, compilando um conjunto de demos que se transformaram nas músicas de Until We Fossilize, o primeiro álbum que lançou em nome próprio. O álbum foi gravado praticamente todo por Del Grandi com a ajuda de alguns amigos que dada a situação pandémica deram o seu contributo à distância. O resulto é um trabalho suave, etéreo, em que ouvimos a abordagem musical da artista ganhar os primeiros contornos definitivos. São músicas feitas de forma extremamente simples e que convidam de forma acessível à reflexão, fáceis ao ouvido e fáceis de desvendar.

Essa característica das canções de Marta Del Grandi é algo intimamente explorado no projecto que se seguiu. Lançado em Outubro de 2023, Selva foi feito em colaboração com o produtor belga Bert Vliegen, que trabalhou com nomes como Sophia ou Whispering Sons. Mas a identidade sonora da artista italiana transparece mais do que nunca. De forma apropriada ao título, somos recebidos neste longa duração por “Mata Hari” e os seus pássaros afinados contrastados com um loop ondulante de teclas. A letra diz-nos que o amor é a força que salva a existência humana, e depois da derradeira pergunta há uma nostálgica bridge que nos leva até ao indie rock dos anos 2000, uma viagem temporal que se faz por outro caminho na rockalhada guerreira de “Snapdragon”.

A natureza tem um papel central em Selva e há uma estética de comunhão com o que está à nossa volta e com a nossa própria natureza em temas como a faixa-título — um exercício sonoro que emula zumbidos de insectos e o chilrear dos pássaros através do engenho instrumental humano — ou “Polar Bear Village” cujo início parecem várias engrenagens de uma máquina a começar a funcionar. Mesmo nos momentos mais dolorosos, a suavidade destaca-se: “Chameleon Eyes” emana alegria no último momento antes da despedida, e “Marble Season” cresce com intensidade acompanhando as confissões da autora sobre uma relação falhada, saltitando sobre as lágrimas do passado sem nunca as quebrar. Del Grandi tem as emoções à flor da pele, mas é um livro calmamente aberto, sem segredos para a sua música e para quem a ouve.

Antes que cheguem os últimos dez segundos em quase uníssono de uma nação inteira para assinalar este ano que está prestes a terminar, convida-se a uma reflexão sobre o ano que passou. Almejemos uma limpeza metafórica e uma grande lufada de ar puro. Deixemos no passado o que for do passado, mas a música, essa vem sempre connosco, ano após ano, sultana após sultana.


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