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Publicado a: 30/12/2015

A Tribe Called Quest: Yes, they can!

Publicado a: 30/12/2015

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Em 2006, Nas dramaticamente assinou uma declaração de óbito para o hip hop, mas em 2015, volvida quase uma década, não há como negar a força de um género que tem conseguido uma rara proeza: instalar novos valores no topo das tabelas de vendas e fornecer títulos para as listas de melhores discos do ano. Sucesso de público e sucesso de crítica – um equilíbrio delicado que requer uma referência e essa régua parece encontrar-se agora nos alvores dos anos 90: é para aí que remete o grande sucesso cinematográfico do universo hip hop este ano – Straight Outta Compton, o filme dedicado aos N.W.A. de Dr. Dre, Ice Cube e Eazy-E – e é para aí também que aponta a reedição comemorativa dos 25 anos de People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm, o extraordinário álbum de estreia dos A Tribe Called Quest de Q-Tip, Ali Shaheed Muhammad, Jarobi e Phife Dawg.

 


 


Há uma espécie de mito que rodeia os A Tribe Called Quest e que tem sustentado os seus vários regressos: o de que este grupo poderia ter ido muito mais longe do que logrou ir, ter alcançado muitas mais glórias das que conseguiu ainda assim alcançar. E isso sustenta-se na qualidade constante dos seus álbuns, sobretudo os quatro primeiros, que personificam todas as qualidades do hip hop da chamada Era Dourada situada algures entre finais dos anos 80 e meados da década de 90: positivismo, inventividade, qualidade poética, variedade musical, imaginação. De facto, a estreia com People’s Instinctive Travels… seguida logo em 1991 da obra-prima absoluta The Low End Theory e ainda, em 1993, Midnight Marauders e, em 1996, Beats, Rhymes & Life representa uma das melhores sequências discográficas da história do hip hop. Um grupo em estado de graça, capaz de criar êxitos e ao mesmo tempo de estabelecer uma elevada fasquia artística que serviu de exemplo e guia para mais do que uma geração.

Foi isso que justificou o regresso do grupo, meia dúzia de anos depois da “despedida” com The Love Movement, na fatídica noite de desaparecimento de Ol’ Dirty Bastard, em Novembro de 2004, para um concerto na digressão Rock The Bells; foi por isso que voltaram à estrada em 2006, em 2008 e em 2010, assinando concertos em várias digressões e deixando sempre claro que em palco pelo menos alguma da química original ainda sobrevivia; foi isso, enfim, que inspirou o famoso actor Michael Rapaport (faz parte do cast de Justified, entrou em Prison Break e em Boston Public, por exemplo) a assinar o documentário Beats, Rhymes & Life: The Travels of a Tribe Called Quest em 2011, visto como um dos melhores olhares sobre esta cultura. Por muito que os A Tribe Called Quest queiram deixar o hip hop, ao que parece o hip hop não desistiu ainda dos A Tribe Called Quest. Pode ser isso que agora justifique o regresso ao momento fundador do primeiro álbum, que merece na nova reedição comemorativa não apenas um som restaurado, mas também o envolvimento de Pharrell Williams, Cee-Lo Green e J. Cole, três nomes pesados que actualizaram o legado por via de remisturas.

 


 


Do outro lado do telefone, directamente de Nova Iorque em declarações para a Blitz, o discreto arquitecto do distinto som do grupo, Ali Shaheed Muhammad, admite que há algum tempo que o seu grupo equacionava este regresso ao disco com que tudo começou: “Queríamos celebrar o nosso legado”, confessa. “Mal pegámos na gravação original começámos a ser assaltados por muitas memórias. Para mim, devo admitir que nunca fui muito de ouvir a minha música para lá dos concertos em que a toco, por isso este regresso soube muito bem. E o Bob Power, que fez os nossos álbuns, voltou a masterizar este disco e trouxe-lhe nova vida. Sonicamente, soa incrível se comparado com o que era originalmente e essa nova riqueza sonora fez com que me voltasse a apaixonar por ele”. Missão cumprida, portanto, regressar à origem para recuperar o entusiasmo original. O documentário de Michael Rapaport deixava no ar a ideia de que os desígnios do grupo ainda não foram totalmente cumpridos e que os Tribe ainda devem um álbum ao seu contrato original. Voltar a estes caminhos instintivos do início poderá ser o tónico necessário para o grupo se redescobrir no presente e voltar a olhar para o futuro.

 


 


Apesar de se cumprirem agora 25 anos sobre a edição original do álbum de estreia deste grupo, passam já três décadas desde que Q-Tip e Ali Shaheed Muhammad decidiram que o hip hop era o seu caminho para o futuro. E tudo começou em Queens, o mesmo bairro que ofereceu ao mundo a carreira de Nas: à dupla original de Tip e Ali – um MC e um DJ – juntaram-se depois Phife, colega de escola de Q-Tip, e Jarobi, que só gravaria o primeiro álbum do grupo. A primeira exposição a uma das marcas distintivas do som dos Tribe, a voz anasalada de Q-Tip, veio com a participação em dois temas no trabalho de estreia dos Jungle Brothers, Straight Out The Jungle, editado em 1988. Foram os Jungle Brothers de Afrika Baby Bam e Mike G que baptizaram os Tribe e lhes apontaram o caminho das editoras. Tip e companheiros ainda assinaram um contrato inicial com a Geffen, mas esse poderoso selo deixou-os cair tendo People’s Instinctive Travels… acabado por ser lançado na então bem mais modesta Jive. Desse momento fundador, em finais dos anos 80, resultou uma aliança estratégica e espiritual com o colectivo Native Tongues, então a dominar criativamente a paisagem hip hop graças às estreias fortíssimas dos Jungle Brothers e sobretudo dos De La Soul, com o histórico 3 Feet High and Rising, lançado em 1989.

“O Q-Tip e eu andávamos no liceu com o Mike G e o Afrika Baby Bam dos Jungle Brothers e ainda com o Brother J dos X-Clan”, recorda Ali Shaheed Muhammad, ao traçar as origens do movimento Native Tongues que na época sintonizou o hip hop com uma ideia progressiva de afro-centrismo oferecendo uma via alternativa ao gangsta rap que se espalhava a partir da costa oeste dos Estados Unidos. “Apesar de andarmos numa escola de economia e não de música, a comunidade artística era muito forte e a nossa amizade assentava num sonho comum de fazer música e editar discos”, explica o produtor. “À época, o DJ Red Alert era o principal DJ de Nova Iorque e era tio de Mike G. E foi através dele que começámos as nossas ligações a outras pessoas que tinham ideias similares às nossas, como os De La Soul ou a Queen Latifah. Nesse tempo, esse nosso colectivo era muito exótico, sentiamo-nos diferentes de todas as outras pessoas no hip hop. Não queríamos ser o Rakim, não queríamos ser o Doug E. Fresh ou o Slick Rick, não éramos os Run DMC ou o LL Cool J, nem os Audio Two ou a MC Lyte. Foi nesse ambiente que crescemos e todos eles nos influenciaram, mas nós tínhamos as nossas próprias ideias. E aquela era uma época com espaço para a individualidade e a diferença. Os De La Soul usaram um mesmo sample que nós também usámos nos Tribe e lembro-me de pensar: “uau, a versão deles desta canção é muito boa, vamos deixá-los usar o sample e fazer algo de diferente nós mesmos”. Era um ambiente criativo muito saudável”, garante Ali Shaheed Muhammad.

 


 


E desse ambiente nasceu um disco que, tal como 3 Feet High and Rising uns meses antes, apontou novos caminhos estéticos para o hip hop. Bob Power, o já mencionado engenheiro de som que construiu uma carreira sólida graças a trabalho em discos importantes de D’Angelo ou Erykah Badu, para citar apenas um par de exemplos, comparou a estreia dos A Tribe Called Quest à obra-prima psicadélica dos Beatles nas páginas do livro que Shawn Taylor assinou para a colecção 33 1/3: “Eram ambos discos que assentavam em conceitos fortes, não se limitavam à fórmula canção, pausa, canção, pausa”, apontou o famoso engenheiro. Ali recorda essa comparação: “Claro que me faz sentir bem, mas também me faz sentir humilde. Os Beatles foram parte importante das conversas que tínhamos na altura sobre como abordar o disco, como usar certas possibilidades tecnológicas que eles foram pioneiros a usar”. Por outro lado, há o espírito aventureiro de um grupo negro de Nova Iorque que interpreta a paisagem sonora da sua cidade olhando para lá das marcas que o jazz ou a soul imprimiram na sua memória. “O Jimi Hendrix foi uma grande influência”, admite Ali, quando procura contextualizar a brilhante utilização do baixo de “Walk on The Wild Side” de Lou Reed. “Os Rotary Connection ou os Sly and The Family Stone também surtiam apelo sobre nós. Penso que nos inspirávamos em muitos géneros, algo que os nossos pares, como os Jungle Brothers ou De La Soul, também andavam a fazer. Soava natural para nós”.

Essa capacidade de assumir o risco e de olhar para lá das apertadas margens de uma cultura fez de People’s Instinctive Travels um dos grandes álbuns de 1990, talvez só com paralelo em Fear of a Black Planet que os Public Enemy lançaram no mesmo ano. 25 anos depois, este poderá ser um novo princípio para o grupo que ofereceu a Obama o mote para mudar a história: “Can I Kick It?”, perguntavam eles. “Yes you can”, deveremos responder todos nós.

 

 

*Texto originalmente publicado na edição 114 da Blitz.

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