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Fotografia: Xipipa
Publicado a: 20/09/2022

Dezasseis de Setembro de dois mil e vinte e dois.

A profecia do céu como não-limite

Fotografia: Xipipa
Publicado a: 20/09/2022

O Tejo vê ser semeada em si uma semente de mudança. Faz uso das suas duas margens desde 2019, entre a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, e a ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios, no Barreiro, numa tentativa de reaproximar aquilo que as dinâmicas espaciais e políticas tendem a afastar, dando-lhes a possibilidade de estabelecerem entre si um diálogo cultural e geográfico. Assim é o festival Ano 0.

Criado pela mão da Rádio Quântica, com uma curadoria que fez do vanguardismo o seu chão, composto maioritariamente por pessoas racializadas, o evento existe num tempo distante do presente, para lá de si mesmo. Tocado por elementos do aquém e além visível vem de um futuro mais promissor, queer e comunitário, em que as periferias são centro também – de arte, inovação e alento.

O primeiro dia de festival fez-se sentir na Galeria Zé dos Bois com os Living Room DJs e o seu experimentalismo disruptivo, que tinham a seu cargo dar as boas-vindas a quem ia chegando. Foram-nos movendo numa dança lenta com os nossos sentidos. Uma vez envolvidos no misticismo desta trip enter the voidiana, uma sala escura transforma-se num bom assento para a nossa imaginação – somos quem quisermos lá dentro.



Do escuro ecoa a transição para um folk latino-americano, as máquinas de fumo têm a tarefa de nos manter no registo da actuação anterior e forma-se um nevoeiro do qual se ergue a figura de Puçanga – nome que no Brasil significa remédio caseiro ou feitiço. Em Portugal, refere-se a Vera Marques, produtora e compositora da Margem Sul que navega entre o uso da voz exploratória e mistura de sons electrónicos sombrios.  Num ambiente de renascimento, como se do começo de algo novo se tratasse, recorda-nos de Audre Lorde ao declarar The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House – um verdadeiro ano zero como ponto de partida para algo que se pretende instigante e que abale os velhos modos de existir e pensar em comunidade. Vindo do céu apetrechado com uma mensagem que nos pretende fazer debruçar sobre o nosso lugar no mundo, o lugar entre o emocional e o político, guiando-nos através do seu repertório e dando-nos sempre uma contextualização sobre o que nos ia cantando (e ensinando). Agiu, realmente, como remédio caseiro para os males que nos são comuns – os da existência.

Há uma meiguice que ganha o público, característica de quem se estreia em palco e ousa começar o seu concerto com “Sozinho” de Caetano Veloso, ciente de que não o está. À sua frente, na primeira fila, há um escudo protector, que são os seus amigos e que ajuda a impedir que o nervosismo dela se apodere de si — entre risos e palavras de suporte, Natalí vai fazendo rasteiras à timidez, juntamente com o seu guitarrista Célio com quem a atenção do público ia sendo partilhada. Para evitar que existam dúvidas, deixa esclarecido que aquele é o seu primeiro concerto. Não deixemos que isto nos engane, no entanto. Existem vozes cuja experiência não cabem nos anos e sim na paixão e talento que delas emanam – este é um desses casos.

De Maria Gadú a Hiatus Kaiyote, da música popular brasileira ao r&b, passando por originais seus como “All For Now”, a cada vibrato de Natalí Ferreira a sala ia enchendo. Era como se as cortinas que separavam o local do concerto do resto do espaço não fossem suficientes para impedir quem se encontrava do lado de fora de querer descobrir que segredos escondiam aquela voz, macia como cetim mas segura de si. É isto que se espera de um artista: que aquilo que canta nos arrepie a pele como se fossem sentimentos cantados por nós.

Nascida e criada em Buenos Aires, filha de pai músico e com origens brasileiras, conta-nos que expressar-se em português, inglês e espanhol está ligado à sua essência, é o que a define.



Existe uma regra silenciosa e auto-imposta pelo público como se estivessem conscientes de que algo grandioso iria acontecer ali, diante dos nossos olhos: sentemo-nos para que possamos absorver o que estamos prestes a presenciar todos ao mesmo nível – e assim foi; as primeiras filas do concerto de Suzana, acompanhada por ariyouok e Célio, eram de gente sentada.

Inicialmente, Ari, na percussão, beatbox e voz, e Célio, na guitarra, arquitectam o ambiente para a entrada de Suzana. Como o primeiro mencionou sobre acompanhar a vocalista e instrumentista no seu projecto a solo, “ao ser feito com amigos é quase como um exorcismo pessoal, são conversas íntimas musicais”. Estes são três prodígios que apareceram em praça pública enquanto parte da comunidade encabeçada por Tristany e não nos são desconhecidos. Na espiritualidade, o número três é considerado como a união entre o corpo, o espírito e a mente, representando, portanto, pessoas que procuram manter o equilíbrio – que foi o que nos trouxeram. Uma camaradagem que adoça as nossas emoções; como confessaram em entrevista ao Rimas e Batidas, eles têm uma “vantagem”: “Já nos conhecemos há mesmo muito tempo. Somos família.”

Suzana, a protagonista deste espectáculo, entra e traz consigo um saudosismo na voz que não pertence a parte alguma, os dissabores e sequelas do amor que doem menos se forem cantados, embora nos confesse que gosta deste medo da vulnerabilidade pública. Põe a alma e expõe o seu coração através das músicas por si compostas neste projecto que lhe é íntimo e pessoal, um desabafo que solta cá para fora tanto para se libertar como para se fazer ouvir. Há um tempo que queremos que não passe para que permaneçamos ali, imóveis, enquanto o som do violino se torna num lugar ao qual queremos pertencer. A voz de Suzana tem uma origem que obedece às suas próprias regras; uma performance que foi um levantar voo constante sem tirar os pés do chão.



De seguida, Nayela surpreende-nos pela quantidade de coisas que consegue fazer numa única atuação. Ela é a tripulação e comandante do seu navio. Da Bélgica para Luanda e de Luanda para o resto do mundo, cantora-compositora e multi-instrumentista que pertence a muitos lugares e encaixa em tantos outros. É ela quem nos assume: “este cocktail, a salada louca de todos as partes por onde passei, fazem a minha música”.

Tal como na natureza, uma árvore nada é sem o apego às suas raízes são elas que a sustentam. Na vida acontece o mesmo. Num tom de confronto, Nayela choca de frente com uma sociedade que “quer os lábios grossos e a ginga mas não querem a melanina” para que entre o semba, kuduro, kizomba e música electrónica o seu “r&b sob o signo de Luanda” a conduza e a nós a uma breve reflexão sobre esta apropriação sem valorização da fonte: a ancestralidade.

Do deep house ao afrohouse, passando pelo baile funk e demais ritmos afrodiaspóricos Danykas DJ e DIDI encerram a noite. Didi apresenta-se com um top em formato de borboleta, o que faz todo o sentido não tivesse sido a sua função tirar-nos exatamente dos nossos casulos com uma energia arrebatadora enquanto exclamava “eu só quero é ser feliz” – nós decerto fomos e devemos-lhe isso. Termina o seu set com Lauryn Hill e presta a sua homenagem, “esta é para as bichas pretas” – e cumpre-se assim a profecia do festival. O tempo que há-de vir… chegou.


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