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Fotografia: Pedro Pena
Publicado a: 19/05/2021

Menos palavras, mais acção.

A lake by the mõõn: “No Life in Warp tentei retratar a dor e o desespero dos seres vivos que mais sofreram com o Antropoceno”

Fotografia: Pedro Pena
Publicado a: 19/05/2021

Aquando das gravações de Fitzcarraldo (1982), o realizador alemão Werner Herzog constatava o seguinte sobre a vida animal na floresta da Amazónia: “os pássaros não cantam, eles gritam de dor”. Em Life in Warp, a estreia de A lake by the mõõn em longa-duração, estes mesmos clamores de sofrimento foram submetidos a manipulações digitais várias e transformados posteriormente em novos elementos musicais, retirando-os do seu contexto ecológico em colapso para, através de ferramentas DAW, preservá-los.

Segundo notas disponíveis no Bandcamp, todos os sons presentes no disco foram criados a partir de gravações de campo de animais que estão ou já estiveram em perigo de extinção desde o início do Antropoceno, desde os beats aos sintetizadores e todos os restantes ruídos que pensámos estar a escutar. É um exercício admirável de produção que combina paisagens electrónicas distópicas com um minucioso desenho sonoro, e que assinala um passo decisivo na promissora carreira de Duarte Marques.

Os primeiro concertos de apresentação de Life in Warp já estão marcados: o Musicbox e o Núcleo A70 (inserido no festival Rama em Flor) acolhem este projecto nos dias 20 e 22 de Maio, respectivamente. A propósito do seu lançamento, que aconteceu no dia 17 de Abril nas várias plataformas de streaming, conversámos com o jovem produtor e activista por trás desta fascinante obra que nos alerta para o perigo cada vez mais iminente das alterações climáticas.



Fala-me sobre o teu novo disco. Há uma mensagem muito premente de luta e consciencialização ambiental que acho muito bonita e que é importante ser discutida.

Neste álbum tentei retratar a dor, o sofrimento e o desespero dos seres vivos que mais sofreram com o Antropoceno. Já estive em Engenharia do Ambiente, já estive em colectivos activistas, já tentei sozinho convencer pessoas a virar vegan… percebi que não tenho muito jeito para palavras e estou muito esgotado de organizar protestos, fico mesmo nervoso e sentimental e parece que as pessoas respondem quase sempre com uma grande apatia, não porque não acham que isto é um problema mas porque ainda não assimilaram lá dentro o quão grave é. Por um lado, as pessoas ainda não têm obras artísticas nas quais possam rever os seus sentimentos face à crise climática, o sector cultural está a dormir completamente nesta temática. Quis que o Life in Warp despertasse e encorajasse as pessoas, que nos unisse num lado sentimental e espiritual, acho que é essencial para enfrentar tal problema. Lanço este disco no início da década de 20, pois é a última que temos para evitar o pior caso possível do colapso ecológico que é A EXTINÇÃO DE TODA A VIDA NA TERRA PARA SEMPRE. De momento estamos a caminhar nessa direção.

O que mudou artisticamente desde os anteriores EPs world world e let’s pretend we’re real?

[Risos] Ainda não reflecti o suficiente nisso, sinceramente, mas estou constantemente a tentar surpreender-me a mim mesmo, e que maior surpresa do que ter-me dedicado tanto a algo como fiz agora no Life in Warp. Muitas vezes nunca achei que fosse capaz. Também vejo este disco como o meu primeiro passo de afirmação artística, um “vim chatear e estou aqui para ficar”.

O lançamento de Life in Warp foi marcado por alguns percalços. O álbum estava agendado para sair no dia 17 de Abril pela editora australiana Eco Futurism Corporation, mas isso acabou por não acontecer o que te obrigou a publicá-lo de forma independente a partir do teu Bandcamp. O que é que aconteceu ao certo?  

Pfff… Espero que nunca mais ninguém trabalhe com essa label. Foi literalmente a única label para onde mandei o álbum, mandei-lhes as demos em  Abril de 2020 e ficaram interessados e a partir daí foi toda uma história de ghosts agressivos. E não é uma label australiana, de momento é só uma pessoa russa a tomar conta daquilo e há um grande histórico de ele ser uma pessoa horrível para artistas, infelizmente descobri isso tarde demais. Em culpa foi parte minha por ter ignorado as red flags e não ter pesquisado o suficiente, mas fico contente de ter sido selfrelease, este álbum nunca me fez sentido no catálogo de label nenhuma. Mas, pronto, lição aprendida.

Na descrição do álbum fazes questão de deixar claro que todos os sons escutados em Life in Warp foram feitos a partir de sons de animais que estão ou já estiveram em vias de extinção. Isto inclui kicks, drums, snares e todo o tipo de elementos que pensámos estar a escutar. Queres elaborar um pouco sobre o teu processo de gravação? 

Yup, literalmente todos os sons mesmo: os kicks, por exemplo, foram sons de baleia e tigres a rugir dentro de jaulas com muita compressão, EQ, saturação… As tarolas são camadas e camadas de orangotangos a mandar beijinhos, morsas a bater no gelo e focas a bater palmas. Foi mesmo com muito amor e paciência que fiz isto, foi grande trabalheira mesmo, muitas vezes ao estar a ouvir e a tratar os sons parecia que estava a dar festinhas aos animais. Só o processo de ir à procura dos sons pela Internet demorou muito, depois limpar os ruídos dessas gravações e transformá-los nos sons que ouvimos foi uma maluqueira. No processo houve muita dor a pesquisar os sons, muitas vezes os animais estavam em jaulas ou em terrenos de caça e, ao verificar se estavam ou não em vias de extinção e ver que a resposta era quase sempre sim, foi devastador. Houve também muita libertação de frustração e angústia na composição musical.

Qual foi o conceito que tu e o Eduardo quiseram explorar no vídeo que o acompanha?

Assim como eu exploro os aspetos plásticos do som dos animais, o Eduardo explora a plasticidade do vídeo. Nas palavras dele: “Sobre este álbum que desde o início percebi ter como tema a urgência numa revolta ecológica, eu sabia da recolha de sons da biosfera e quis fazer essa recolha em vídeo. Colhi do YouTube e archive.org vídeos de texturas de glaciares, água, árvores, entre outros, que comprovam o poder estético da natureza. Estas coisas servem como fundo para explorar temas e objetos mais concretos como footage da BBC, vistas de microscópio e até shows hipnóticos para bebés que existem para nos unir aos sons e ritmos do Life in Warp. Para além da natureza, houve interesse em explorar a componente tecnológica porque é o meio que me permite explorar o álbum através do vídeo. Assim introduzi vídeos de gerenciamento de imagem através de AI (Stylegan) e também imagens do videojogo Drunk on Nectar (um simulador de vida animal). Tudo processado por efeitos de vídeo funciona mais ou menos como um caleidoscópio como homenagem às projecções das raves e visualizers dos softwares de reprodução de media do início dos 2000 onde todos escutámos as primeiras faixas de música de dança.”

Os primeiros concertos de apresentação do Life in Warp já estão marcados. O que podemos esperar destas performances? E como é que se vai dar esta transferência do estúdio para o palco? 

Vou transformar os palcos numa autêntica manifestação dos animais. Vai haver projeção bem louca e até VJ numa cidade a anunciar em breve.  

Alguma nota final que queiras deixar a quem te ouve?

Não é altura de palavras, é altura de acção. Espero que o álbum tenha falado por si, mas, por favor, basta de ficarmos a ser espectadores do apocalipse. Juntem-se a colectivos activistas, juntem-se a protestos de desobediência civil, falem da crise climática nos vossos círculos, se tiverem noutras lutas sociais percebam como o colapso ecológico se liga a todas as outras lutas e percebam que é o cúmulo e a conclusão lógica deste sistema económico, percebam que estão a condenar animais indefesos e tribos indígenas à extinção com uma dieta carnívora.

De momento já temos garantido um aquecimento global de +2ºC e estamos a caminhar para os +7ºC, morrem milhões de pessoas todos os anos devido à crise ambiental, as grandes migrações climáticas já começaram. Já não vamos a tempo de salvar a sociedade tal como a conhecemos, a questão agora é o quão grave isto vai ficar? As pessoas que menos contribuíram para o aquecimento global e mais sofreram com ele ao migrar para os países responsáveis pela sua miséria vão ser recebidas de portas abertas ou com o punho assassino da extrema-direita? Quantas mais espécies vamos levar à extinção? O que quero dizer com tudo isto é que podemos começar a ser parte da solução e não do problema.


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