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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/01/2021

L-ALI, Sickonce, Tilt, DarkSunn e Keso falaram-nos sobre o impacto do MC e produtor mascarado nas suas vidas.

A influência de MF DOOM no hip hop português

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/01/2021

A noite de 31 de Dezembro foi a mais fria de 2020. A transição para um novo ano sempre foi motivo de euforias e esta última, mesmo com todos os impedimentos impostos no que toca a festejos, tinha um sabor especial. “Tinha”, porque apesar de querermos todos acreditar que não vamos voltar a ter outros 365 dias a viver dentro destes moldes, afastados e receosos, não estávamos à espera de saber que tinha partido um dos maiores ícones da cultura hip hop.

A prova de que não estávamos emocionalmente preparados para arrancar 2021 sem a presença de MF DOOM está, ainda, impressa nas nossas timelines de redes sociais. Se houve quem na altura não se tivesse manifestado pelos desaparecimentos precoces de Mac Miller, Juice WRLD, XXXTENTACION, Lil Peep ou Pop Smoke, o mesmo não aconteceu na hora do adeus a Daniel Dumile. E agora, já de cabeça mais fria, é fácil entender porque tal sucedeu. DOOM era um rapper com mais de 30 anos de carreira, dono de uma discografia inqualificável e um poeta com uma imaginação infindável que trouxe novos condimentos para a escrita e declamação de rap. Além disso, o seu aparecimento a solo — formato no qual mais se destacou no período pós-KMD — deu-se numa altura crucial para que a sua obra se viesse a tornar transgeracional, hoje investigada e/ou apreciada tanto por quem ainda se lembra da Golden Age como pelos que começaram só agora a procurar orientar-se nos labirintos do underground.

Tendo logrado alcançar um estatuto tão “popular” quanto o que é possível para um rapper underground, DOOM criou uma legião de seguidores digna de uma qualquer inesperada vedeta que tenha perfurado pelo mainstream e é um nome habitualmente referenciado por outros artistas no que toca às suas influências. “O rapper favorito do teu rapper favorito” é, por isso mesmo, um título que lhe assenta que nem uma luva. Obras como Madvillainy ou MM..FOOD são autênticos compêndios que nos ensinam sobre a elasticidade que um verso de hip hop consegue adoptar e marcos pioneiros na reformulação estética que o género seguiu no virar do milénio, servindo de inspiração para gente de universos tão distintos quanto Drake, Flying Lotus ou Earl Sweatshirt e Tyler, The Creator — estes dois últimos que rejubilaram no dia em que conheceram o seu ídolo.

Basta deslizar um bocado pelo Twitter para percebermos que estamos perante uma clara inundação de dedicatórias a surgir de todos os quadrantes da indústria musical — e há até uma onda enorme de utilizadores que tomou a iniciativa de emoldurar a mítica máscara de ferro no lugar do seu avatar ou acrescentar as siglas “MF” ao seu nome de utilizador. E esta é a beleza que até um momento tão triste como este consegue gerar.

Fomos trocar algumas impressões com cinco artistas da esfera hip hop nacional para percebermos um bocado melhor a importância que a escrita e a sonoridade de MF DOOM tiveram nos seus respectivos desenvolvimentos enquanto criativos.



[L-ALI]

Lembras-te da primeira vez que te cruzaste com a música do MF DOOM? Quais foram as impressões que tiraste nesse momento?

Cheguei ao DOOM por volta dos 15/16 anos, por aí. Fiquei parvo com a métrica do gajo e tudo o que envolvia a “personagem”. Fui descobrindo alter-egos e ele foi crescendo mais e mais.

De que forma dirias que a sua pegada te educou como ouvinte de rap?

A pegada dele educou-me como ouvinte e educou muitos daqueles que fazem música hoje e eu aprecio a arte dos mesmos. Desde Earl Sweatshirt, Tyler, The Creator, Rejjie Snow a Mos Def.

Influenciou-te também enquanto artista? De que forma?

Diria que tudo o que ouvimos nos influencia como artista mas este senhor teve um peso especial dado que me levou a procurar uma máscara também, para dar os primeiros passos sem expor esta linda tromba. Também escrevo L-ALI em maiúsculas. Esteticamente gosto mais mas também há uma pitada de DOOM nessa escolha. Não concordo muito com a narrativa que se faz quando se diz que isto foi uma maneira de desvalorizar a imagem quando essa máscara é icónica e fez com que ele se destacasse também por aí.

Uma faixa do DOOM que não te saia da cabeça? E porquê?

É difícil escolher uma dentro de tanto instrumental e rap ridículo mas a destacar uma… talvez o “Figaro”. A maneira como ele desliza nesse beat é qualquer coisa. O Madvillainy está no meu top cinco de álbuns de sempre, seja qual for o género musical.

Foi uma perda enorme, um dos melhores MCs que esta cultura já viu. Obrigado, Villain.



[Sickonce]

Lembras-te da primeira vez que te cruzaste com a música do MF DOOM? Quais foram as impressões que tiraste nesse momento?

Essa pergunta é complicada porque a primeira vez que tive, conscientemente, a ouvir MF DOOM com a atenção devida foi quando comprei os álbuns MM..Food e Madvillainy, mas já conhecia músicas antes que me chegaram através de filmes de patins, que eu via com pessoal do skate park. Quando ouvi realmente com atenção a primeira coisa que me chamou a atenção foi a relação da voz com o beat. A escolha dos beats é incrível também.

De que forma dirias que a sua pegada te educou como ouvinte de rap?

Rap aparentemente muito simples, ou seja fluído, sem muitos truques mas com muito skill e principalmente que nos cola de inicio ao fim. O conceito também me agarrou muito.

Influenciou-te também enquanto artista? De que forma?

Enquanto artista ensinou-me que as regras são para quebrar e que tudo o que é suposto pode ser posto em causa. A utilização de uma personagem para ter total liberdade é incrível. E mais ainda que essa personagem se tenha tornado o artista e, ao contrário de praticamente todos os artistas hoje em dia, sem ter necessária relação à pessoa atrás da máscara.

Uma faixa do DOOM que não te saia da cabeça? E porquê?

Impossível dizer uma, então vou reduzir a quatro, que são para mim as mais viciantes e que me marcaram em momentos específicos: “Accordion”, “Meat Grinder”, “Figaro” e “All Caps”.



[Tilt]

Lembras-te da primeira vez que te cruzaste com a música do MF DOOM? Quais foram as impressões que tiraste nesse momento?

Deve ter sido lá para 2008 que eu o ouvi pela primeira vez, com atenção. Penso que a primeira faixa que ouvi foi a “Figaro”, do álbum dele com o Madlib (um dos meus álbuns favoritos). Confesso que não me lembro exactamente da primeira impressão… Mas ele está num grupo específico de artistas que mudaram a minha visão sobre o rap, e acho que a primeira impressão com eles todos foi uma certa estranheza, que pouco mais tarde se converteu numa grande admiração. É curioso. Grande parte dos meus artistas favoritos foram os que eu estranhei mais ao início. Provocaram em mim uma transição de “que rap é este?” para “rap é isto: a arte da rima.”

De que forma dirias que a sua pegada te educou como ouvinte de rap?

Tornou-me um ouvinte mais atento, mais aberto ao experimental e a novas abordagens (que são as grandes características que retiro daquilo que era chamado na altura de indie rap). E inspirou-me a querer deixar a mesma impressão, naturalmente.

Influenciou-te também enquanto artista? De que forma?

Sem dúvida. Acho-o um dos grandes exemplos de skill, carisma e originalidade. É como te disse: ele pertence a um grupo de artistas muito específico que me alimentaram enquanto rapper. Todos eles me mostraram que o universo que existe nas nossas mentes, é um universo singular, irreplicável e vasto. Ensinaram-me o que é a criatividade. Ensinaram-me que a partir do momento em que és tu mesmo, não és cliché. Ensinaram-me que somos todos diferentes, e a beleza disso.

Uma faixa do DOOM que não te saia da cabeça? E porquê?

Porra. Pergunta muito complicada… Mas diria a “Meat Grinder”, também do álbum Madvillainy (penso que seja o álbum que mais ouvi do DOOM, enquanto rapper). É um álbum de “5 mics”. Sempre fiquei (especialmente) maluco com essa faixa. É uma faixa perfeita, desde flows, dicas, esquemas silábicos, o instrumental bem groovy… Mas aí está, é uma de várias. No final do dia fico apenas feliz por ele ter existido e ter-me influenciado através da sua visão e ideias. E isto faz-me reflectir acerca do rap e todo o prazer que me deu, e que me dá. O valor que acrescentou, e ainda acrescenta, à minha vida. Obrigado, DOOM.



[DarkSunn]

Lembras-te da primeira vez que te cruzaste com a música do MF DOOM? Quais foram as impressões que tiraste nesse momento?

Foi com o Operation Doomsday, talvez em 2000, 2001. Chamou-me muito à atenção, até antes de ver a capa. Primeiro, soava ultra raw, o que estava muito alinhado com o que estava a consumir na altura para fugir do rap dos “shiny suits” e luzes brilhantes. Toda a camada instrumental evocava NY, mas de uma maneira ultra densa, e muito crua. Quando me concentrei nas rimas, na flow partido e especialmente no subject matter, agarrou-me totalmente. Toda a estética do Super Vilão, mas especialmente o efeito quase cómico do que ele dizia, era muito muito inteligente e deixava-me sempre com um sorriso na cara. Tinha sempre as dicas mais fresh e mais inusitadas.

De que forma dirias que a sua pegada te educou como ouvinte de rap?

Acho que o ponto fundamental — tal como rappers como o Aesop Rock, Raekwon, El-P e outros — foi obrigar-me a ouvir várias vezes com muita atenção para não me escapar nada. Ou seja, o DOOM não tinha de usar palavras mais “caras”, mais estranhas ou slang inventado: ele cativou-me pelas dicas serem witty, mas ao mesmo tempo havia muito fluxo de pensamento, muitas multies (a “Figaro” é uma obra de estudo) que me obrigava a ouvir e reouvir até as estruturas entrarem em ordem na minha cabeça. Aguçou-me o gosto para o rap complexo e de digestão lenta.

Influenciou-te também enquanto artista? De que forma?

Antes de mais nada, fazer o que quero fazer sem dó nem piedade. Ser eu mesmo. Se quiser basear um EP num livro de ficção científica, posso. Se quiser colocar um sample de um filme de série B, também posso. Se quiser samplar desenhos animados e falar sobre isso com orgulho, posso também. Ser eu próprio, não o que querem que eu seja. Ao mesmo tempo, a valorização da mística e mitologia foi fundamental para a Monster Jinx. Sem DOOM, a Jinx não seria como é, seria diferente. A ideia de um Monstro — o Jinx — que lidera a label é similar à ideia da máscara: toda a gente pode ser o DOOM, o que interessa é a máscara e, consequentemente a música, e não o que está por trás dela. Propriamente, Monstro Robot é a brain child da ideia do poderes rimar sobre cenas geeks, sobre cultura popular, sobre os cartoons que vias enquanto comias os cereais ao sábado de manhã, sobre anime, godzilla e os seus vilões, sobre Star Wars. Sem DOOM seria difícil — talvez impossível — existir Monstro Robot como existiu e a Jinx seria algo completamente diferente do que é.

Uma faixa do DOOM que não te saia da cabeça? E porquê?

Duas: a “Next Levels” de King Geedorah, por causa do instrumental que levou a uma busca louca pela sample original — das melhores histórias sobre obsessão — e a “Can I Watch” de Viktor Vaughn com a Apani B, que ouvi tanto que sei os versos de cor e que continua a ser dos meus versos favoritos do DOOM e da Apani. E podia ficar aqui o dia todo a dizer-te faixas favoritas do homem [risos].



[Keso]

Lembras-te da primeira vez que te cruzaste com a música do MF DOOM? Quais foram as impressões que tiraste nesse momento?

Não me lembro exactamente de qual foi o meu primeiro contacto, mas lembro-me de ter o privilégio de no inicio dos anos 2000 começar acompanhar o portefólio da Stones Throw e de apanhar as primeiras semanas de revelação do Madvillainy. Talvez o DOOM tenha vindo parar à minha vida pelo Madlib, o que não é de todo algo mau, sendo eu um fã de Quasimoto e do produtor em anos de JayLib ou Shades of Blue. As conclusões foram imediatas. Uma voz sem igual e uma escrita tão criativa nas ideias como nas métricas.

De que forma dirias que a sua pegada te educou como ouvinte de rap?

Eu acho que a Stones Throw me educou muito e, por consequência, o DOOM acabou por ser um dos professores. Com personagens como ele eu percebi que o rap podia ser muito mais do que aquilo que me chegava na altura. Há arte, há representação, há ficção e há acima de tudo uma humildade extrema em tudo o que o DOOM fez. Se conseguisse resumir isto numa frase diria mais ou menos isto: “DOOM é um rapper artista plástico, ele torna ideias e imaginários em algo muito palpável”.

Influenciou-te também enquanto artista? De que forma?

Julgo que a resposta anterior é complementar. Influenciou, claro. Ser um vilão ou alguém enigmático e incontrolável é talvez a minha génese como Original Marginal e, seja nos registos de estúdio como ao vivo, ou em comentários online, o DOOM deu-me muito esse sentido de legitimidade artística. Outra característica não menos importante foi o facto de esconder a identidade, coisa que nos inícios de 2000 com nomes como Burial ou Zomby, particularmente, fascinava-me. O DOOM apareceu incógnito no rap, independentemente de se saber que era o Zev dos KMD, coisa que, muito honestamente, eu nem estava interessado em saber. Este detalhe, que segundo o próprio DOOM servia para o colocar no mesmo patamar de um ouvinte comum anulando a pretensão da indústria em criar estrelas, acabou por me servir até aos dias de hoje como um barómetro do underground. Ele fez o que queria e como queria, fosse quem ele fosse.

Uma faixa do DOOM que não te saia da cabeça? E porquê?

“Monkey Suite”, o tema que ele fez como Madvillain para a compilação Chrome Children (primeira versão). O beat, a voz do DOOM, e depois o vídeo. São uma experiência e pêras!


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