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Vitor Rua

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António Avelar de Pinho, Francisco Vasconcelos, David Ferreira e Carlos Maria Trindade assumiram um papel significativo, mas muitas vezes invisível, nas mudanças do paradigma musical em Portugal.

A importância dos A&R no boom do rock português nos anos 80

1. O Bosão de Higgs

Quando recordamos a música pop/rock em Portugal dos anos 80, quando lemos recortes da imprensa de música desse período, ou mesmo quando a ouvimos em programas de rádio e televisão, quase sempre se fala da importância dos músicos e bandas, e muito pouco se fala dos produtores. E menos ainda se fala ou analisa a importância dos A&R.

É verdade que foram tempos em que as bandas primavam por se apresentar com estilos e idiossincrasias personalizadas, quer musicalmente, quer na imagem e atitude. Os GNR, originais e irreverentes, diferenciavam-se dos Heróis do Mar, provavelmente os primeiros na época a investir no visual como complemento musical. Os UHF, com influências de Jim Morrison, eram distintos dos Xutos & Pontapés, mais próximos dos Clash. Os Jáfu’Mega apresentavam um virtuosismo invulgar na new wave e emanavam referências musicais de grupos como os Police; enquanto os Táxi, também compostos de músicos virtuosos, iam buscar influências a bandas de ska – ouvir o tema “Chiclete” – ou a bandas do rock progressivo, transformadas em fórmulas new wave. Os Pop Dell’arte, os Mão Morta ou os Mler Ife Dada afirmaram-se como bandas mais alternativas e próximas da PopArt, numa diferenciação das bandas mais comerciais. Os Trabalhadores do Comércio, criação de Sérgio Castro, apresentavam uma pop regionalista, de humor patente nas letras vocalizadas com pronúncia do Norte e na inclusão de uma criança. O Rui Veloso era a figura central desse boom do rock português, com o seu disco Ar de Rock.

Frisei que se muito se falou e analisou – até em teses de mestrado e de doutoramento – as bandas e músicos desta época, mas que também é um facto que pouco ou nada se disse sobre o trabalho desenvolvido nessa altura pelos produtores e que quase nenhuma menção é feita ao trabalho desenvolvido pelos A&R ao longo deste processo na indústria musical em Portugal.

Porém, estes foram determinantes e decisivos, não só na música produzida na época como em toda a futura produção musical da pop e do rock em Portugal, até à actualidade.



Porquê? Analisemos um simples facto, erroneamente atribuído aos músicos da minha geração: o de se ter começado a cantar de forma sistemática rock em língua portuguesa. Quem planeou e decidiu que o rock e a pop fossem cantados em português não foram os músicos – que odiavam cantar rock em português! – mas sim António Avelar de Pinho. Este, inicialmente no Departamento Nacional de Artistas e Reportório da Valentim de Carvalho e posteriormente A&R da Polygram, é a “figura central” da indústria musical do rock e pop produzido nessa época. Se tivesse sido um big bang a dar origem ao rock português, António Avelar de Pinho teria sido o Bosão de Higgs!

António Avelar de Pinho tinha experiência de estúdio e ao vivo, já desde os finais dos anos 1960, com grupos que fundou como os Filarmónica Fraude e a Banda do Casaco – com o Nuno Rodrigues. E é ele que em 1980 muda o panorama do rock em Portugal, ao tomar a decisão de invectivar músicos como Rui Veloso a replicar em português as letras das músicas que escreviam em inglês. Rui Veloso, que lhe apresentou uma maquete do seu disco todo cantado em inglês quando ele trabalhava para a Valentim de Carvalho. O mesmo se passou – já como A&R da Polygram – com os Táxi, também estes lhe apresentaram um disco inteiro cantado em inglês. Ele disse que tinha de ser em português. Eles torceram o nariz… mas aceitaram. E em vez de “Benign” – informação dada pelo músico Aníbal Miranda – ficamos com o “Chiclete”.

O facto do disco do Rui Veloso ter vendido milhares fez com que os grupos que surgiram depois se apercebessem que teriam mais probabilidades de edição e de sucesso comercial se cantassem em português. E assim surgem já a cantar em português os Heróis do Mar, no caso com uma ideologia muito “nacionalista”, quer pelo nome da banda, quer pela roupa e postura em palco.

Mas não tenhamos ilusões, estas bandas que surgem a cantar em português, não o teriam feito se o António Avelar de Pinho não tivesse orientado o Rui Veloso e os Táxi a cantarem em português. É a ele que esses músicos devem grande parte do seu sucesso, e é a ele que deve ser dedicado o louvor de actualmente a maior parte dos músicos e bandas de pop e rock cantarem em português.



2. A Dream Team: Francisco Vasconcelos & David Ferreira

Mas na mesma altura, e com um grau de importância tão grande ou similar, surge na EMI-Valentim de Carvalho a dupla Francisco Vasconcelos e David Ferreira.

Francisco Vasconcelos (A&R), pessoa muito bem informada musicalmente, poderia mesmo ter sido músico, pois tinha talento musical. Como curiosidade, foi ele quem gravou o bombo do “Portugal na CEE”; tendo-se dado o caso de haver um problema com a regularidade e ritmo do bombo na velocidade que a música exigia, foi o Chico que pegou nos auscultadores e o corrigiu — ao primeiro take! Desta forma ele entra como músico no “Portugal na CEE”, mesmo que isso não surja mencionado na ficha técnica do disco.

Mas, acima de tudo, tinha um excelente gosto musical!

Tal como a maioria dos músicos portugueses, também ele não era muito fã do rock cantado em português que se estava então a produzir em Portugal. O seu gosto, dentro da new wave, virava-se mais para bandas como os Talking Heads e na época não havia nada a ser feito com esse nível. Até que ele teve conhecimento dos GNR. E adorou imediatamente! Só nos disse uma coisa: “tem de ser em português!”. Mas disse-o não com um tom de “ordem”, mais como um encolher os ombros: “agora tem de ser em português…”!

Contrariados, nós lá acedemos e fiz a letra do “Portugal na CEE”, que originalmente tinha o título de “Walking Down The Street”, e do “Sê um GNR”, que em inglês era o “Giant Heads”.

Talvez a grande diferença entre o António Avelar de Pinho e o Francisco Vasconcelos fosse uma maior abertura e vontade por parte do segundo de arriscar num tipo de música, que podendo não ser a mais comercial, era a que ele gostava e que sentia ser original e criativa. Não só nos permitiu cantar canções em inglês (“The Light” ou “Hardcore”), como graças a ele e ao David Ferreira conseguimos editar uma faixa que ocupava todo um lado do LP, “Avarias” (26 minutos), sendo que era uma improvisação rock realizada em tempo-real, em estúdio, com “poesia concreta” do Rui Reininho, teclados do Miguel Megre, a bateria do Tóli César Machado e eu no baixo e guitarra.

Já anteriormente essa dream team editorial, o Francisco e o David, nos tinha dado autorização para editarmos um instrumental — coisa rara na época — que viria a ser o Lado B do single “Sê um GNR”!



Também se deve ao David Ferreira, pessoa de uma enorme cultura e de uma gigantesca educação, coisa rara na época na indústria musical em Portugal, a marca António Variações, pois inicialmente, a proposta do António era o seu projecto ser chamado António & Variações! Isto pode parecer um pormenor irrelevante, mas não é!

António & Variações seria o projecto do António com outros músicos e maquetes de muita fraca qualidade — quer instrumental, quer vocal. Imediatamente o Francisco e o David se aperceberam que naquela proposta a única coisa que lhes interessava era o António… não queriam os Variações.

Foi assim que o David, que reagia muito bem por instinto e tinha muito boas ideias a trabalhar sob pressão, resolveu propor ao António que ele se passasse a chamar António Variações!

Isto foi fundamental para a segunda fase da ideia do Francisco: permitiu-lhe ser ele a escolher o produtor e os músicos que iriam tocar no disco. E convidou-me para produzir o Variações.

E foi assim que se criou um António Variações que nada sabia de música, que desafinava, que não tinha a mínima noção de ritmo, mas que tinha umas letras interessantes, se vestia de forma invulgar e que conseguia transmitir as suas ideias musicais ao “cantarolar” mal as melodias dos variegados instrumentos musicais que queria para as suas canções — muitas delas eram influências, por vezes quase a roçar o plágio, de bandas como os ABBA, e pouco mais.

Ou seja, se na divulgação o Variações é uma descoberta do Júlio Isidro, já ao nível musical é uma criação do Francisco Vasconcelos e do David Ferreira!



3. Carlos Maria Trindade: o “Descobridor”!

Outros A&R surgiram depois de Francisco Vasconcelos e António Avelar de Pinho, mas, no geral, limitaram-se a prosseguir com a senda do “cantar em português” e com a procura de um sucesso comercial musical.

A Polygram e a EMI-Valentim de Carvalho eram as duas grandes editoras da altura, e rivalizavam, promovendo os seus artistas da melhor forma possível, numa época em que ainda havia alguma ética nessa indústria. Recordo-me que foi o David Ferreira que me aconselhou a inscrever na SPA, quando as editora actuais, grosso modo, ou nada dizem nesse sentido, ou até desaconselham só para não terem de pagar os Direitos de Autor dos discos que editam!

Ora, um músico que acumulou a função de A&R na Polygram onde desenvolveu um trabalho fabuloso nos anos 1990 foi o Carlos Maria Trindade. Descobriu bandas como os Repórter Estrábico, os Pós-GNR, e posteriormente, entre outros, o Pedro Abrunhosa.

Frank Zappa disse uma vez que nos anos 1960 os A&R eram uns velhos, gordos e carecas, de charuto, que nada entendiam de música, que olhavam para os músicos hippies de cabelos compridos que lhe entravam escritório dentro, e como nada percebiam, editavam. E depois, esperavam para ver se vendia ou não. Se vendesse… eles continuavam a editar, se não vendesse, não editavam mais. Mas na actualidade — dizia o Zappa — são uns yuppies que julgam entender imenso de música, e que acham que sabem o que é que o público quer. E sendo assim, não editam a maior parte das bandas que lhes surgem com projectos novos. A diferença — refere o Zappa —, é que, ao menos, os velhotes gordos carecas de charuto editavam tudo! Agora, os editores editam o que eles acham ser o que as outras pessoas querem e gostam! Não arriscam! Preferem apenas continuar na senda do sucesso anterior!

Isto significa que se hoje está na moda Conan Osiris, então prossiga-se com Filipe Sambado — isto para referir dois músicos que respeito. Não se aposta, nem se arrisca em mudanças de paradigma na forma de repensar as novas músicas! Na actualidade, dificilmente uma editora arriscaria editar uma banda como os Madredeus! Uns tipos vestidos de fatinho, a tocar acordeão, violoncelo e guitarra clássica, e uma cantora a cantar em estilo fado não parece ser uma ideia de sucesso comercial!

Se todos os A&R continuarem a proceder desta forma, tão cedo não teremos nada de realmente criativo e original, simplesmente porque continuando a investir apenas no mainstream não permitem essa oportunidade.

Claro está que hoje as coisas são mais fluidas. Os jovens músicos actuais não dependem das editoras. Publicam obra no YouTube ou em plataformas digitais como Spotify e aí ganham público, são convidados para grandes festivais e, por fim, então, editam um CD, por vezes em editoras criadas por eles mesmos ou em editoras independentes.

Neste contexto e de um modo geral, actualmente os A&R têm muito pouca influência nas tendências ou descobertas de novos valores em Portugal. Basta-lhes estar atentos e seguir o número de likes nas redes sociais ou em plataformas como o YouTube!



4. Variações em Ctu Telectu Maior: Independaça!

Concluo resumindo que a figura principal para uma mudança gigantesca na indústria musical portuguesa foi o António Avelar de Pinho, que teve também uma posição marcante como produtor; logo seguido pelo Francisco Vasconcelos, que revolucionou o panorama do rock em Portugal ao possibilitar a edição de discos como o Independança ou o Ctu Telectu, e ao criar um António Variações!

É graças a estas duas figuras — e ao David Ferreira —, que a pop e o rock em Portugal são hoje maioritariamente cantados em português, e não devido aos músicos da minha geração — o que muitos jovens músicos actuais erradamente pensam!

Se essa mudança foi positiva ou negativa para a pop e o rock em Portugal, isso já é outra estória que fica para outro ensaio.

Porém, deixo uma “pista”: reparem que os três maiores casos de sucesso internacional da pop e rock em Portugal são de Bandas que cantam em inglês!

Os casos da Ana da Silva das Raincoats — uma das mais importantes Bandas da new wave internacional —, o Rodrigo Leão — que convidou cantores da pop reconhecidos internacionalmente — e recentemente os The Gift — que conseguiram ter num seu disco como músico e produtor, um músico com a qualidade do Brian Eno!

Todos estes casos são bandas que cantam em inglês!

Dá que pensar…


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