O ponto de encontro é a estação de barcos do Cais do Sodré. Não é um sítio qualquer, é um local comum de passagem — inscrito na memória colectiva — de todos aqueles que fazem vida entre as duas margens do Tejo, sobretudo para quem vem do concelho de Almada e arredores para trabalhar na capital. Cabeça rapada, corpo trabalhado, tez morena e roupas largas mas descomprometidas, Sérgio Pulla não aparenta ter 52 anos de vida.
Há três décadas atrás, no pequeno relvado adjacente à estação de comboios, em torno do quiosque já a caminho da Ribeira das Naus, Sérgio estava deitado na relva com o amigo António após terem perdido o último barco da noite em direcção a casa, depois de um serão animado de copos. Enquanto esperavam pelo primeiro barco da manhã, sentiu uma bota a tocar-lhe nos ténis. “Então, hoje não cantas de galo?”, perguntou um skinhead, rodeado de outros seis ou sete, rostos que conhecia de confrontos nas ruas de Lisboa ou Almada, quando o hip hop estava profundamente entrelaçado com um movimento de resistência urbano, uma consciência antirracista que combatia o novo fascismo que contaminava as ruas da capital, duas décadas volvidas da revolução de Abril.
Atordoado graças ao que tinha consumido, Sérgio Pulla e o amigo António — mais conhecido como Dodjo One, um dos primeiros writers do Miratejo (e do país) — não se deixaram ficar e deram uso à arma secreta que os skins desconheciam. Ambos treinavam boxe desde a adolescência no Lisboa Clube Rio de Janeiro, ali no Bairro Alto. Dispersaram os cabeças rapadas com os punhos, defenderam a sua posição.
Sérgio Pulla sempre foi um lutador no mais amplo sentido da palavra, um frontliner destemido a quem sempre todos reconheceram coragem e uma certa dose de loucura. Quando o movimento hip hop começou a despontar na Margem Sul do Tejo, com o Miratejo e a Cova da Piedade, em Almada, como principais epicentros de uma cultura que encontrava terreno fértil noutros territórios e se viria a espalhar pelo país, Pulla estava na linha da frente como um dos OGs do hip hop em Portugal.
Nascera em Angola em 1973, filho de pai português e mãe angolana. Quando se deu a Revolução dos Cravos e o consequente processo de independência de Angola, vieram para Portugal na grande vaga de retornados. Era 1975 e voltaram como puderam, com o que conseguiram. Estiveram primeiro no Porto, antes de se instalarem em Lisboa. A avó, mulher negra que trabalhava no negócio do café em Angola, abriu uma pensão para retornados na Ajuda — onde também viviam. A família do pai haveria de estar mais ligada a trabalhos administrativos, nomeadamente na banca; a da mãe tinha mais pendor para ofícios braçais, na restauração ou na indústria têxtil, muitas vezes com negócios próprios.
Habituados a casas espaçosas e arejadas em África, estranhavam os prédios apertados de Lisboa, e acabaram por se mudar para Vale de Milhaços, do outro lado do rio, na freguesia de Corroios. Sérgio tinha oito ou nove anos e passou a frequentar a escola do Miratejo, um bairro novo, de cariz social, construído numa área de antigas quintas para acolher aquela vasta onda de retornados vindos das ex-colónias. O ambiente era comunitário, as pessoas conheciam-se, muitos eram familiares — Sérgio, por exemplo, tinha uma tia a viver no Miratejo — e o edificado urbano ainda não era tão denso como hoje.
Rapidamente começou a integrar-se no novo meio. Fez-se amigo de cabo-verdianos, angolanos e portugueses numa zona com uma grande mistura e diversidade — aliás, Sérgio, luso-angolano, personificava essa mesma mestiçagem — mas também com pontos em comum: todos eram de classe social modesta, numa das primeiras gerações a erguer um imaginário cultural para aquela área suburbana lisboeta. Ficaria conhecido como “Sérgio Pulla” pelo tom de pele mais claro do que a média, embora tivesse a ginga angolana a correr-lhe pelas veias. “Nunca vimos cores, sempre vimos brothers”, conta hoje ao Rimas e Batidas, umas quantas décadas depois, para este artigo que funciona quase como um outtake do projecto Filhos do Meio — a exposição, documentário, livro e programação cultural que procurou contar a história da cultura hip hop no concelho de Almada e no Miratejo, mas no qual não houve a oportunidade para contar em detalhe a história deste pioneiro.
Foi durante os anos 80 que o hip hop começou a manifestar-se em Portugal. Primeiro, com a explosão da moda do breakdance, uma tendência mainstream que invadiu praças públicas e matinés de danceterias — mas não havia de todo a noção de que pertencia a um movimento cultural e social mais completo (e profundo) chamado hip hop. Graças à rádio e à MTV que já chegava às casas portuguesas através da parabólica, vários miúdos começaram a ouvir nomes populares na América como os Run-DMC ou LL Cool J.
A consciência daquilo que de facto era o hip hop e a conversão de tantos jovens locais a esta cultura, com a qual se passaram a identificar, deu-se a partir de outras influências. Tal como relatámos em Filhos do Meio, Nelson Neves, que assinava como Run One, trouxe de França — onde tinha família e passava férias regularmente — o estilo, a música e a ideologia da Zulu Nation, organização fundada por Afrika Bambaataa no Bronx que servia de alicerce a esta subcultura rebelde e interventiva que promovia a paz, defendia os direitos dos negros e denunciava as injustiças sociais. Nelson Neves acabaria por se tornar um líder a partir da Cova da Piedade, local estratégico onde vivia, entre o centro de Almada e a zona do Laranjeiro e do Miratejo, agregando um culto à sua volta.
Porém, ao nível mais local do Miratejo, nessa fase embrionária dos últimos anos da década de 80, Sérgio Pulla defende a importância de outras figuras. A mais relevante terá sido Matt One (ou Matt Uno), como também era conhecido o “Bruno Francês”. Luso-descendente filho de emigrantes em França, todos os Verões passava férias no Miratejo na casa do seu primo Maniche.
“A influência do Bruno tocou-nos muito. Vinha de França com esta cultura, então a cada Verão vinha mais forte com o movimento hip hop”, relata Sérgio. “O Nelson é negro e se calhar identificava-se ainda mais [com a cultura], mas o Bruno Francês tinha muita influência dos árabes, dos marroquinos, dos argelinos, que estavam muito deep na cena hip hop. Há muitas grandes bandas com essa ascendência.” No Miratejo havia ainda dois irmãos cabo-verdianos, que tinham vindo dos Estados Unidos da América e por isso eram conhecidos como os “Americanos”, que já traziam a mesma paixão e referências da cultura hip hop nessa fase tão precoce do movimento em Portugal.

Para Sérgio Pulla, tudo começou quando, “de um dia para o outro”, o melhor amigo António — que viria a ser Dodjo One — abandonou o heavy metal para se dedicar exclusivamente ao hip hop. “Um dia vou para a escola e encontro-me com o António a andar em direcção a mim com um [corte de cabelo] high top fade. E ele: ‘Yeah, boy!’ Antes disso, o António era todo metaleiro, era um black do metal, havia uma cultura de bandas de garagem no Miratejo. E de repente vejo-o assim com um casaco, umas calças meio baggy, uns ténis meio pump, e disse-lhe que era um grande estilo. Atraí-me logo por aquilo também, talvez pelas influências de LL Cool J e isso que já tínhamos visto. ‘Grande onda!’ E ele: ‘Ya, temos este movimento, chama-se Zulu Nation e estamos a propagar peace, unity and love’. Começámos a juntar-nos, a falar sobre hip hop, a passar a palavra da Zulu Nation, a vestirmo-nos de maneira diferente.”
Apesar do nome com que ficou conhecido (“pula” era um termo usado em Angola para designar um branco), Sérgio Pulla não tem dúvidas de que aquilo que mais o fascinou no hip hop foi a consciência e o empoderamento negro. “I’m an afro man”, diz, com o sotaque de quem viveu 20 anos em Londres. “Foi muito pela minha identidade do lado africano, até porque fui criado por uma avó negra.”
Sérgio começou a rimar nessa altura. O seu núcleo duro incluía Dodjo One (sobretudo writer, mas que também soltava umas rimas), Eli J (rapper), MC Lie (rapper) e o seu irmão mais novo Ivan Cristiano (beatboxer, hoje em dia o baterista dos UHF), bem como outros amigos que abraçaram a cultura hip hop como sua mesmo que não praticassem nenhuma das vertentes, como é o caso de Kadafi. “Aquilo no espaço de um ano cresceu muito. De repente já tínhamos um grupo, pensávamos em rappar e cantar em inglês.”
Começaram a parar na Cova da Piedade com o grupo liderado por Nelson Neves, que Pulla compara a Martin Luther King Jr., um “preacher com um mic”. Nelson fazia beatbox para as rodas de improviso, pintava graffiti e era o grande dinamizador local daquela comunidade. “Nós éramos a back-up do Nelson e também ajudava estarmos na Cova da Piedade para sermos young, wild and free, um pouco mais longe dos olhares dos nossos pais”, recorda Sérgio.
Eles seriam os B-Boys Boxers, o primeiro colectivo informal da região e muito provavelmente do país, do qual também faziam parte MC Nilton, Pio (que mais tarde formariam os One Equal e, posteriormente, os Líderes da Nova Mensagem) e General D. “Éramos uma só crew, ninguém se vestia nem falava como nós, ninguém representava como nós e tínhamos um aperto de mão único”, descreve, num período em que os adolescentes se dividiam em “tribos” urbanas sociais, muitas vezes com uma identidade subcultural ligada à música. Havia o pessoal do metal, os punks, os “vanguarda” e, claro, os skinheads.
Tal como contámos em detalhe no âmbito do projecto Filhos do Meio, este movimento cultural ganhou força na Margem Sul do Tejo, muito em resposta à opressão neo-nazi que se fazia sentir nas ruas. Aliás, Nelson Neves tinha esta missão bem patente no seu grupo — tinha experiência a percorrer as ruas de Paris com os “caçadores de nazis”, pequenos gangues que se dedicavam a confrontar os skins, meio onde havia vários luso-descendentes e se ouvia rap.
“E, quando toca a beef, quem fica sempre no meio do molho é o Miratejo”, conta Sérgio. “Éramos Miratejo fearless. Um dos grandes pontos de viragem foi a festa das listas das associações de estudantes na escola de Cacilhas, de repente arma-se uma confusão com os skins, muita gente desaparece e quem fica no meio é o Miratejo. Tínhamos uma dica nossa que era ‘poucos, mas loucos’ — íamos mas voltávamos todos, era uma regra. Os skins juntavam-se ao pessoal do metal, havia um lado racista a bater ali, saltou-nos tudo em cima e deu um grande sarrabulho, mas tivemos de dar a volta àquilo e eles é que acabaram por fugir. E quando voltámos ao Miratejo tivemos uma reunião entre todos e dissemos: ‘Isto não pode acontecer, o Miratejo dá sempre a cara, mas quando é para falar de música não somos os frontliners, e também tínhamos vontade de cantar. Só que muitas vezes éramos os que estávamos lá a fumar e ‘ya, canta, faz tu a cena’. Acho que sempre olharam para nós um bocadinho como os ghetto boys. Nós fizemos o nono ano e fomos trabalhar, tínhamos de ajudar os nossos pais a ter alguma coisa, sempre aprendi com a família a questão do trabalho. Havia pessoal que durante a semana era beto, vestia a camisinha, e ao fim de semana era do movimento. Nós não, era 24/7.”
Foi nessa sequência de acontecimentos que a crew alargada dos B-Boys Boxers — que também incluía Silver B, Paulo “Rapman” Manaças e Paulo “Rocket” Santos, dono da cadela boxer que também inspirou o nome do grupo — se fragmenta entre diferentes projectos. Nilton e Pio formam os One Equal, o núcleo mais ligado ao Miratejo acaba por criar o seu próprio grupo. Primeiramente conhecido como “Sérgio Rap”, fora rebaptizado como “Rebel B” — de boxer, até porque era pugilista desde os 14 anos, e também inspirado no verso “I’m a rebel because I rebel”, dos Public Enemy — por Nilton. “Ele desmantelou um dos crachás que usávamos para nos identificarmos, pegou numa caneta de acetato e escreveu Rebel B. E eu agarrei-me a esse nome.”
Nesse momento de relativa dispersão, juntaram-se para formar um novo grupo. “Temos força e talvez talento suficiente para fazermos isto”, recorda. Na casa de Eli J, fizeram uma primeira gravação em cassete: ao som de beatbox, Sérgio Pulla e Eli J improvisaram as suas rimas. Acabaram por marcar um encontro no Parque Urbano José Afonso para fundar oficialmente o grupo. Inspirado nos Black Panthers e com uma consciência negra e antirracista muito presente, terá sido General D a sugerir o nome Black Company.
Sérgio Pulla, General D, Eli J, Dodjo One, MC Lie, NBA, 13/13 e KJB terão sido alguns dos principais membros originais do colectivo, que era também uma ampla crew que representava o Miratejo, mesmo que nem todos tivessem experiência ou talento. “És da crew, cantas. Não sabes? Aprendes. Éramos putos, mas todas as sextas-feiras fazíamos uma reunião, ninguém podia aparecer bêbado ou fumado, e era mais sobre o lifestyle do que nos querermos afirmar como uma banda. Porque Black Company é Miratejo, simple as that. Éramos um movimento de luso-africanos a encontrar uma identidade.”
Numa altura em que o bairro da Margem Sul se afirmava como o grande ponto de encontro no movimento hip hop na região de Lisboa (e não só), mas também para a comunidade afrodescendente interessada nestas práticas culturais e sociais que a empoderavam, Sérgio Pulla usava o cabelo loiro à Ivan Drago — o pugilista de Rocky IV — penteado horas a fio com a escova à frente do espelho. A tia, cabeleireira, ensinara-lhe os truques todos. Também fazia as próprias t-shirts de Public Enemy. “Criávamos as nossas coisas, porque não tínhamos a facilidade de obter coisas como havia em França.” Os mais velhos, a geração mais antiga do Miratejo com mais alguns anos de vida em cima, chamavam-lhe TBB, sigla para The Bad Boy. Líder natural e porta-voz audaz, Sérgio já tinha “uma certa reputação” e muitos miúdos olhavam para ele “como se fosse o Elvis”.
Aliás, fora assim que vários daqueles que se tornaram de facto conhecidos, na segunda versão de Black Company, se juntaram ao grupo. Sérgio Pulla recorda como foi outro amigo, Nelsinho, que um dia o apresentou na praia ao mais novo KJB, que gostava de hip hop e queria parar com os rapazes mais firmados naquele movimento. Chegou a fingir que lhe iria roubar o casaco e os ténis antes de confessar jocosamente que estava a brincar e o aceitar prontamente no seu núcleo. Bambino vinha dos Rebel Gang, outro grupo local onde também militava Pump G, e era um jovem talento natural que rapidamente se associou também aos Black Company. Já Gutto era praticamente vizinho de NBA, na parte de cima do Miratejo, e fazia os seus primeiros esboços musicais com um rapaz chamado Becas, que produzia beats rudimentares. Makkas foi uma contribuição de General D, visto que os dois já se conheciam do Vale da Amoreira, noutra zona da Margem Sul.
No início dos anos 90, alguns anos antes de os Black Company se tornarem famosos como um quarteto — formado por Gutto, Bambino, Makkas e KJB — a primeira vida do colectivo contou com uma série de passos no campo artístico que se revelaram decisivos. O primeiro concerto terá sido, lado a lado com os companheiros One Equal, no Ponto de Encontro, em Almada. Na fotografia, podemos ver Sérgio Pulla, com o microfone na mão à esquerda da imagem. KJB, de óculos, aparece ao meio — quem lhe está a passar o outro microfone é Eli J, que “usava um high top de lado, à Bobby Brown”.

Frequentavam a discoteca Visage, na Costa da Caparica, um dos primeiros pontos de referência locais para ouvir hip hop, e onde também actuaram; mas também passaram pelos palcos d’Os Franceses, no Barreiro; ou do Ondaparque, na Trafaria. Sérgio Pulla terá feito mais de uma dezena de concertos com Black Company.
“Nós não nos víamos bem como um grupo, éramos o Miratejo, that’s it. Sempre que fazíamos um concerto, levávamos uma crew de 100 pessoas e enchíamos discotecas só com pessoal do Miratejo. Toda a gente nos acompanhava, estás a ver o apoio? Os mais velhos do bairro, os cotas do rock n’ roll, também iam. Se fôssemos a uma discoteca, tentávamos vestir-nos mais ou menos da mesma forma, tudo com roupa preta ou com roupa branca. Um dress code para mostrarmos que éramos uma crew. Já viste a mentalidade que havia? Era o grupo, não eram indivíduos. Éramos todos um, éramos fight the power. Usávamos uniforme, bandeira, e não era só música.”
Por isso mesmo, faz questão de mencionar outros nomes que, não sendo rappers ou artistas, eram parte integrante (e essencial) daquele movimento. É o caso de Dinho (ou Low D), Tiago Raposo, Tinaia ou de Beatbox King, que depois faria parte dos Líderes da Nova Mensagem. Chegaram a dar uma entrevista ao jornal Blitz em 1992, ao lado de outros projectos de rap como os One Equal ou os The New Decade, naquele que terá sido o primeiro artigo na imprensa portuguesa sobre rap feito em Portugal, assinado por Miguel Cadete e com fotografias de Rita Carmo.
Por volta da mesma altura, um amigo chamado Tralhão, um “hustler que arranjava concertos”, conseguiu-lhes o acesso a um estúdio em Almada. Gravaram uma maquete com o dinheiro que, por aquela altura, Sérgio Pulla fazia enquanto rapaz “da street”, já “na g thing”. “Foi o que foi, o Eazy-E fez o mesmo.”
Chegaram a equacionar gravar um videoclipe com um dos temas dessa maquete, mas uma divergência criativa com General D levou a que abortassem os planos e a que o próprio MC decidisse enveredar por um percurso a solo, procurando desenvolver um rap mais ligado a África, como também nos explicou no âmbito do projecto Filhos do Meio, numa entrevista que também se encontra publicada no Rimas e Batidas.
Eventualmente, já com Gutto como homem do leme no que à música dizia respeito, até porque Sérgio Pulla o descreve como “um génio musical”, surge a ideia de criar um novo grupo, os Machine Gun Poetry, que iriam passar a rimar em português. Pulla não fez essa transição, e quando os MCs que foram restando resgataram o nome Black Company, entre 1992 e 1993, e deram o início à história que já é mais conhecida — a participação na compilação Rapública (1994), a criação do êxito “Nadar” e a profissionalização que se seguiu enquanto quarteto — Sérgio estava demasiado ocupado com o estilo de vida que levava na rua para se dedicar à música, mesmo tendo havido tentativas por parte dos membros que seguiram uma carreira.
“Crescemos, fomos em direcções diferentes. Eu estava com outra posição ao nível da street, infelizmente, mas é o que é. Entrei mais na g thing do que na music thing, daí afastar-me. Comecei também a morar sozinho, tens de fazer a tua vida, tens de te começar a safar, e o Gutto e o Bambino andaram atrás de mim ‘n’ vezes a falar sobre os ensaios, mas… Eu estava a fazer aquilo pela causa, não por fama nem nada. Achas que alguém andava descalço no meu bairro? A cena era partilhar. E começámos a entrar num filme diferente e eu não podia fazer as cenas que fazia e depois ir para a televisão. Mas, cá fora, tentava ser um grande exemplo. A vida desviou-me para outro caminho, que se calhar era um destino que estava escrito para mim.”

Foto de Rita Carmo com Sérgio Pulla em baixo, à esquerda
Após o estrondoso sucesso de “Nadar”, que apresentou o rap feito em Portugal à grande maioria do país com um tema festivo e mais leve, as reacções de choque fizeram-se sentir no circuito underground que estava a começar a borbulhar na área metropolitana de Lisboa, mas também noutras regiões do país. Numa época em que a mensagem política e social era crucial no rap, muitos sentiram-se frustrados com o facto de “Nadar” ter sido o primeiro grande cartão de visita do rap feito em Portugal. O documentário O Rap É Uma Arma, realizado por Kiluanje Liberdade em 1996, retrata bem esse sentimento, com declarações nesse sentido de vários rappers e pessoas à volta do hip hop, incluindo do próprio Miratejo. Sérgio Pulla é um dos que aparecem no documentário.
“Primeiro, ficámos contentíssimos da vida [com a explosão de Black Company]. Miratejo, conseguimos! Quebrámos o mercado, entrámos. Mas depois pensámos: eles estão lá, agora vamos ver as entrevistas. E o pessoal do Mira virou um bocado as costas porque Black Company eram os OGs do Miratejo, depois sobem com a fama que tiveram e na hora da divulgação, eles é que fizeram, eles é que conseguiram, eles é que chegaram lá. Não, tudo isto teve momentos para lá chegarem. E é preciso dar props to the people. You grew up and forgot the roots, but you can’t. Essa é a única dor. Não quero medalhas, mas se é história, vamos contar a história de todos. E há muitas pessoas que são parte de uma história não contada que contribuíram para quem são os Black Company hoje. Houve quem lhes estendesse carpetes vermelhas.”
Contudo, não houve um corte definitivo com Black Company. Sérgio Pulla chegou a participar, pouco tempo antes de emigrar para Londres, nos ensaios da banda para a Expo ‘98. Foi lá que, por acaso, se cruzou com um “puto tímido” que dava pelo nome de Valete. Como sempre fez, Pulla instigou-o a participar, puxando por ele, “num freestyle de one to one”. “E disse-lhe: tens um grande potencial, não sejas tímido!”
Nesse mesmo ano de 1998, mudou-se para Londres em busca de uma mudança de vida. “Portugal não me dava aquilo que eu queria e se tivesse permanecido, iria ter aquilo que toda a gente naquele movimento da rua vai ter.” Sente que os 20 anos que passou na capital britânica foram fundamentais para a sua transformação como pessoa, para se “educar” e passar a ter “discussões abertas com argumentos”, “sem violência”, num país onde a lei é mais rigorosa e onde também se converteu ao Islão, deixando vícios e más práticas no passado. Hoje trabalha em Lisboa como gerente na área da restauração, um sector que conhece como a palma da mão graças à família, sobretudo à avó que o criou e que tinha um restaurante em Corroios.
“Claro que tive vontade de voltar à música. Da última vez que estive com o Bambino, ele disse-me para passar lá em casa que me iria dar uns beats. A música quando está dentro de ti nunca morre. E tens sempre aquele bichinho, tenho as minhas cenas, os meus pensamentos, ideias, oiço som e sou um amante de música… Escrevia muito e ainda tenho muita coisa guardada [na cabeça]”, conta, deixando no ar a hipótese de um dia gravar algumas faixas.
“Não quero tirar nada ao Valete, ao Carlão, ao Boss AC, ao Sam The Kid. Props a todos e ainda bem que carregam o movimento e continuem. Mas nós estávamos cá e nada disto existia — zero. Todos fizemos o movimento e com que ele se estabelecesse, na hora e no sítio certo. Não quero medalhas, só quero que se lembrem que houve pessoas que lutaram pela causa.”
