pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/11/2025

Como uma música antiga encontrou um novo lugar no mundo.

A história e legado do American Folk Blues Festival

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/11/2025

Quando os primeiros músicos afro-americanos de blues atravessaram o Atlântico no início da década de 1960 para se apresentarem diante de plateias europeias, não vinham apenas tocar — vinham, sem o saber, inscrever uma linha de força na história cultural do pós-guerra europeu. O American Folk Blues Festival, concebido na Alemanha Ocidental por Horst Lippmann e Fritz Rau, sob a égide visionária de Joachim-Ernst Berendt, não foi apenas uma digressão musical: foi uma operação de escuta coletiva, uma espécie de exorcismo cultural num país que ainda carregava a sombra densa e inescapável do seu passado recente.

Para uma geração de jovens alemães e europeus, órfãos de uma identidade positiva depois do trauma da guerra e do colapso moral do nazismo, o blues afro-americano oferecia uma via de identificação alternativa — uma música que vinha de longe, carregada de dor, de resistência e de dignidade. Era uma forma de olhar para fora para reencontrar um dentro, de procurar uma identidade possível através do espelho de outra cultura. Essa procura não era neutra nem decorativa: era profundamente política e emocional.

Entre 1962 e 1972 — com extensões e renascimentos posteriores — os palcos europeus receberam nomes que até então eram reverenciados sobretudo nos circuitos negros dos Estados Unidos: Muddy Waters, Sonny Boy Williamson II, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Memphis Slim, Otis Rush, Lightnin’ Hopkins, Big Mama Thornton, entre muitos outros. O festival tinha a forma de uma caravana itinerante, atravessando fronteiras de comboio: Paris, Zurique, Estocolmo, Londres, Berlim — em cada paragem, um público novo, fascinado e reverente.

Mas talvez o traço mais singular e duradouro da iniciativa tenha sido a sua documentação audiovisual sistemática. A televisão pública alemã — nomeadamente a Süddeutscher Rundfunk (SDR), em colaboração com outras emissoras regionais — produziu, a partir da primeira edição em 1962, uma série de programas gravados em estúdio, com realização cuidada e som de grande qualidade técnica para a época. Esses registos — hoje reunidos nas célebres coleções American Folk Blues Festival – Live in Germany — mostram os músicos sentados ou em pequenos grupos, num cenário austero, em frente a microfones fixos, com o público silencioso e atento, quase como se se tratasse de uma cerimónia.

A forma como estas filmagens foram feitas tem uma clareza quase litúrgica: a câmara não procura o espetáculo, mas sim a intimidade do gesto musical — o modo como Willie Dixon pulsa o contrabaixo, como Sonny Boy Williamson sopra a harmónica com um sorriso enigmático, como T-Bone Walker estica uma nota até ela parecer um lamento humano. Essas imagens passaram a circular nas televisões europeias e, mais tarde, nos arquivos e coleções privadas, moldando a forma como o público europeu viria a imaginar o blues — não como música de massas barulhenta, mas como uma arte maior, digna de ser escutada com atenção e respeito.

Foi precisamente nesse contexto que a cena do british blues se inflamou. Jovens músicos britânicos — Mick Jagger, Keith Richards, Eric Clapton, Peter Green, John Mayall, Alexis Korner, Jeff Beck, Jimmy Page — assistiram a esses concertos e a essas emissões televisivas. Para muitos deles, foi o primeiro contacto direto com os próprios criadores da linguagem que vinham a estudar a partir de discos importados. O impacto foi fulminante: o blues deixou de ser apenas uma influência longínqua para se tornar uma presença real, encarnada e transmissível.

A partir daí, os fluxos tornaram-se regulares. Já não era apenas o festival: muitos músicos afro-americanos começaram a regressar à Europa com maior frequência, tocando em clubes e auditórios que tinham aprendido a recebê-los com respeito e entusiasmo. Para muitos, a Europa significou não só melhores condições de trabalho, mas também um reconhecimento artístico que lhes era frequentemente negado no próprio país — ainda profundamente marcado pela segregação racial.

Foi também neste período que se começou a assistir, sobretudo no Reino Unido, a um fenómeno particularmente revelador: a fusão de circuitos e linguagens musicais. À medida que o blues se tornava uma linguagem amplamente conhecida — através de concertos, transmissões televisivas e discos importados —, os festivais e clubes que antes se apresentavam como de “jazz” ou “jazz & blues” começaram a abrir o seu cartaz a grupos que, embora já enveredassem por caminhos mais elétricos e psicadélicos, tinham raízes mais ou menos diretas nessa matriz blues. Assim, festivais de jazz que nos dias de hoje associaríamos a nomes como Duke Ellington, Chris Barber ou Ben Webster apresentavam, lado a lado, formações como The Who, Rolling Stones, Yardbirds, Moody Blues, Animals, Cream ou até Pink Floyd — bandas que, no seu núcleo inicial, traziam ainda a energia primitiva e crua do blues elétrico.

Este ecletismo de cartaz, que hoje poderia parecer uma anomalia, foi na verdade um sinal do período de transição e porosidade estilística dos anos 1960. O público era jovem, curioso, e as fronteiras entre jazz, blues e rock ainda não estavam institucionalizadas. O jazz britânico tradicional convivia com o R&B elétrico e com a improvisação bebop com as guitarras distorcidas. E não é descabido pensar que essa experiência de programação híbrida — que teve no Reino Unido um laboratório fértil — abriu caminho para festivais europeus de perfil mais abrangente nas décadas seguintes.

Um dos exemplos mais notáveis foi o Festival de Jazz de Montreux, fundado em 1967 por Claude Nobs. Embora nascido como um festival de jazz, Montreux cedo se destacou precisamente pela sua programação cruzada, acolhendo lado a lado figuras como Miles Davis e Frank Zappa, Nina Simone e Led Zeppelin, Bill Evans e Deep Purple. Essa abertura estética — que se tornaria marca distintiva do festival — deve muito ao clima musical que se formou no rescaldo do American Folk Blues Festival e da naturalização do blues como linguagem partilhada entre géneros.

O American Folk Blues Festival foi, assim, mais do que um evento histórico: foi um encontro entre dois mundos. De um lado, músicos afro-americanos portadores de uma tradição forjada na violência e na resistência; do outro, um continente — e em particular uma Alemanha — à procura de um novo espelho no qual pudesse reconstituir-se. Ao olhar para o blues, muitos jovens alemães e europeus projetavam uma forma de escape e de reconstrução simbólica: uma identidade externa que lhes permitia afastar-se do espectro do passado e sonhar outra pertença possível.

No cruzamento destas trajetórias — na caravana que atravessou a Europa, nas salas de concerto, nas emissões televisivas silenciosas e intensas, nos cartazes improváveis de festivais —, uma música antiga encontrou um novo lugar no mundo. O blues, nascido nos campos e nas cidades industriais americanas, atravessou o Atlântico e tornou-se, nesse gesto, uma língua universal, sem fronteiras estanques.



Texto resultante da confluência da minha desinteligência natural com a inteligência artificial.

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos