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Fotografia: Erin Patrice O'Brien
Publicado a: 11/02/2021

Cordas que vibram na História.

A harpa no jazz: de Dorothy Ashby e Alice Coltrane a Brandee Younger

Fotografia: Erin Patrice O'Brien
Publicado a: 11/02/2021

Pode argumentar-se que a harpa é provavelmente o menos jazz de todos os instrumentos, por ter pouca tradição na cultura popular afro-americana e também porque o seu transporte implica uma logística complexa (tal como o piano, é certo, mas os pianistas sempre contaram com o facto de cada clube ter o seu próprio instrumento). O jazz impôs-se muito graças à itinerância dos seus músicos e a perspectiva de viajar com um instrumento tão delicado e frágil poderia não facilitar na hora de eleger uma ferramenta destas para trabalhar. Além disso, nas manifestações mais folclóricas da cultura musical afro-americana, do gospel aos blues e daí até aos alvores do jazz, não seria fácil encontrar exemplos da utilização da harpa nesses contextos, nem nas igrejas, nem, pois claro, nos clubes honky-tonk em que a música foi evoluindo até porque antes da amplificação e antes dos aperfeiçoamentos técnicos de que o instrumento foi alvo não seria fácil para um executante deste instrumento fazer-se ouvir em combos com outros instrumentos bem mais capazes de gerarem volume como o banjo ou os vários instrumentos de sopro.

A história da harpa é quase tão antiga quanto a própria… bem… História: há registos deste instrumento em murais egípcios e os arqueólogos descobriram vestígios em túmulos sumérios datados de pelo menos 3500 anos AC. Na Europa, a presença da mais familiar variante deste instrumento está documentada desde pelo menos o século IX. Como esta ideia primeva – a de fazer cordas vibrar a partir de um arco – pode ser ligada ao momento em que os primeiros homens esticaram tendões ou tripas numa vara tensa para usarem esse dispositivo como ferramenta de caça, é óbvio que instrumentos da mesma família da harpa também se disseminaram por várias zonas de África ao longo dos séculos e milénios.

A harpa tal como a conhecemos hoje, no entanto, registou a sua gradual aproximação à orquestra clássica a partir de finais do século XVIII, mas sobretudo no século XIX, quando compositores como Cesar Franck nele reconheceram uma privilegiada fonte de cores tonais que poderia enriquecer as suas obras. Algumas décadas depois, o harpista Casper Reardon é apontado como pioneiro na introdução da harpa no jazz em meados dos anos 30 do século passado. Adele Girard, uma década mais tarde, terá sido outra importante pioneira ao demonstrar o potencial solista do instrumento com o seu trio. Adele fez carreira a tocar sobretudo na orquestra de Joe Marsala, o seu marido, com quem gravou abundantemente na segunda metade dos anos 40, levando ainda mais longe as ideias de Reardon e deixando muito claro que era possível improvisar no instrumento ainda durante a era do swing embora, um pouco mais tarde, com as invenções no plano harmónico trazidas pela improvisação em contexto be-bop, as naturais limitações do instrumento se tivessem traduzido no seu quase desaparecimento de cena.

Foi necessário esperar por desenvolvimentos no jazz e pela chegada dos anos 50 para que um outro tipo de paisagem musical e de abordagem criativa – sobretudo com o advento do chamado “cool jazz” – abrisse espaço, uma vez mais, para que a harpa se pudesse expressar convenientemente neste contexto. Foi nesse momento que Dorothy Ashby entrou em cena.

Há um par de semanas, as plataformas de streaming receberam Harping on a Tune, compilação preparada certamente para capitalizar na atenção renovada oferecida à harpa depois da relativa notoriedade alcançada em tempos mais recentes por instrumentistas como Brandee Younger, mas também, como será quase de certeza o caso, para gerir o alcance dos seus direitos: The Jazz Harpist, afinal de contas, já data de 1957.



Natural de Detroit, onde nasceu e estudou – a sua escola secundária, a Cass Technical High School, é apontada aliás como instituição pública de referência no que ao ensino da harpa diz respeito –, Dorothy Ashby estreou-se como líder em 1957 quando contava apenas 25 anos, tendo gravado nessa condição mais de uma dezena de importantes álbuns, incluindo registos hoje tidos como clássicos como Afro-Harping, lançado em 1968 pela Cadet e notoriamente samplado em trabalhos de Pete Rock & CL Smooth, 9Th Wonder, Flying Lotus, GZA, Mac Miller, Big Sean ou House Shoes. Esse trabalho valeu-lhe várias importantes requisições na década de 70 por parte de artistas como Bill Withers, Bobbi Humphreys, Minnie Ripperton, Stanley Turrentine, Gene Harris ou Freddie Hubbard e até Stevie Wonder fez questão de a incluir nas sessões do mítico Songs in The Key of Life. É ela que ajuda a dar vida a “If It’s Magic”.

Em 2018, numa peça para a revista da Red Bull Music Academy em que se assinalava meio século cumprido sobre a edição de Afro-Harping, Brandee Younger falou longamente sobre Ashby, reconhecendo o quão importante ela foi para a sua própria formação no instrumento: “O Gary Bartz dizia que ela era uma pessoa muito baixinha, mas com uma forma de tocar bem expansiva”. Foi também, de acordo com Brandee, uma artista que procurou sempre evoluir, tendo gravado até bem perto da data da sua morte, vítima de cancro, em 1986, quando contava apenas 54 anos. A sua última gravação foi o clássico Concierto de Aranjuez, peça erudita do compositor espanhol Joaquim Rodrigo a que Miles Davis ofereceu igualmente a sua visão. “É uma peça muito bonita”, explicou Brandee que também a incluiu no seu reportório. “Este foi o último álbum de Dorothy, lançado em 1984, ela morreu em 1986 e por isso eu penso sempre em qual seria o seu estado de alma quando estudou e gravou essa obra. (…) A versão dela é lindíssima e comovente”.

Quando Afro-Harping foi lançado, no início de 1968, tendo aí obtido assinalável sucesso e reconhecimento, Alice Coltrane continuava sobretudo a tocar piano, mas no seu registo de estreia, A Monastic Trio, toca já harpa em dois dos temas prenunciando a generosa atenção que haveria de dar a esse instrumento na sua discografia futura.

Foi em 1966 que Alice ganhou o apelido Coltrane quando casou com o homem de A Love Supreme. Alice tinha conhecido Trane três anos antes, quando era ainda uma pianista à procura de um lugar no competitivo mundo jazz. Esse lugar chegou em 1965, quando substituiu McCoy Tyner no ensemble liderado por John Coltrane. Alice assegurou esse papel de pianista até à data da morte do seu marido, a 17 de Julho de 1967. A Monastic Trio foi dedicado “ao místico, Ohnedaruth, conhecido como John Coltrane.” Com esse álbum, Alice apresentou-se ao mundo como um veículo de uma espiritualidade profunda e igualmente como uma harpista de eleição.

O mundo do jazz já conhecia as possibilidades desse instrumento graças ao trabalho pioneiro de Dorothy Ashby (que estudou com a mesma pedagoga, Velma Fraude, que também deu aulas à futura senhora Coltrane), mas com Alice a harpa ganhou uma nova dimensão. Inspirada pelos ensinamentos de Swami Satchidananda, um guru indiano cujos pensamentos tiveram alguma repercussão nos Estados Unidos, Alice Coltrane gravou uma série de fabulosos tributos ao poder espiritual da música, recorrendo a músicos como Rashied Ali, Cecil McBee, Ron Carter, Ben Riley, Jimmy Garrison, Charlie Haden, Frank Lowe ou Pharoah Sanders. Discos como Ptah The El Daoud ou Universal Consciousness são belíssimos exercícios musicais que assumem o jazz como uma plataforma de elevação espiritual. Em 2002, em entrevista à Wire (que lhe deu capa na edição número 218, de Abril), Alice afirmava sentir que “o público também se torna parte da música, ao respirá-la juntamente com os músicos”. Uma expressão da harmonia cósmica que Alice sentia poder ser expressa através do seu instrumento de eleição, a harpa.

Zeena Parkins, outro expoente da harpa que também nasceu em Detroit e que estudou igualmente na Cass Technical High School e que viu a sua discografia enquanto líder arrancar em 1987 (30 anos depois de Dorothy, 20 após Alice…), explicou na mesma peça de Vivian Host para a RBMA que aquelas duas mulheres afro-americanas fizeram um trabalho extraordinário ao subtraírem a harpa à esfera clássica, inventando no processo uma nova linguagem para o instrumento.

No artigo já mencionado da RBMA, Zeena Parkins, que aperfeiçoou uma abordagem mais experimental ao instrumento, explica que foi importante para a guiar nessa exploração a atitude que músicos como Fred Frith ou Keith Rowe tinham face aos seus instrumentos: “Eles tocavam guitarras deitadas sobre uma mesa e usavam objectos para tocarem os seus instrumentos e eu percebi: ‘isto é o que eu tenho que fazer à harpa’.”

Em anos mais recentes, músicos como Edmar Castañeda e Brandee Younger têm assegurado a continua evolução do instrumento, mantendo-o próximo do jazz, mas carregando-o igualmente noutras direcções. Nascido em 1978 em Bogotá, Castañeda é ligeiramente mais velho do que Brandee e representa a evolução de uma longa história de ligação entre a harpa e modos folclóricos da América do Sul. A sua harpa acompanhou sessões de gente como Lila Downs, Yerba Buena, mas nos últimos anos tem sido recurso frequente de músicos como Wynton Marsalis, John Patitucci ou John Scofield.



Mas Brandee Younger é o nome que de forma quase unânime é referido quando se procura um expoente para a harpa no presente. Além de ser líder do seu próprio ensemble, Younger adiciona ao seu impressionante currículo sessões de estúdio ou palco com gigantes como Pharoah Sanders, Jack DeJohnette, Charlie Haden ou Bill Lee e Reggie Workman, conseguindo, ao mesmo tempo, trabalhar numa esfera muito diferente quando secunda artistas como os The Roots, John Legend, Lauryn Hill, Common ou Moses Sumney.

Brandee Younger é igualmente uma pedagoga de méritos reconhecidos, com ligação a instituições de prestígio como a New York University ou a New School College of Performing Arts e a Berklee College of Music, outras marcas de um amplo reconhecimento de que goza actualmente.

Em 2020, Brandee e o seu marido, o contrabaixista Dezron Douglas, lançaram um dos melhores álbuns do ano através da International Anthem: Force Majeure é uma das mais vincadas provas da ampla capacidade expressiva do instrumento e mereceu reflexão atempada na coluna Notas Azuis:

“E se há quem faça questão de nos mostrar o que acontecia em frente do olhar público quando os palcos ainda eram espaço de regular invenção, existe igualmente quem levante o véu sobre a sua abordagem criativa ao confinamento. É o caso do contrabaixista Dezron Douglas e da harpista Brandee Younger que, em frente de um microfone, no seu apartamento de Harlem, em Nova Iorque, aproveitaram o isolamento para registar um álbum de poéticas reinvenções de matéria alheia dispersa por um vasto território, dos Stylistics a Kate Bush.

Douglas e Younger, como tantos outros músicos, mas especialmente os da sua área que dependem muito mais de um enérgico circuito de pequenos clubes para garantirem sustento do que propriamente de receitas de royalties provenientes de streaming ou de direitos obtidos através de publishing, viram-se desprovidos de datas nas suas agendas, forçados a isolarem-se no seu espaço privado e decidiram, perante essa inevitabilidade, transformar a sua vida numa espécie de statement, impondo-se a realização todas as sextas feiras de um livestream que lhes dava a oportunidade de mostrarem a sua criativa abordagem a matéria de origens muito diversas, explorando a sua natural e romântica cumplicidade, revelando até que não abdicavam de um fino sentido de humor face a uma situação algo desesperada, mantendo a ligação aos amigos que se reuniam em torno de ecrãs para os verem: ‘Hi Natasha’, escuta-se, mesmo a meio de um tema, Brandee a exclamar a dada altura, replicando certamente o mesmo impulso que leva um músico num pequeno clube a acenar a cabeça quando um amigo se senta na mesa em frente ao palco.

Brandee Younger é uma harpista de mão-cheia, primeiro nome em que muita gente pensa quando os arranjos pedem um instrumento que tem história nobre no vasto território do jazz (e Dorotthy Ashby, Alice Coltrane ou Zeena Parkins chegam para representar um espectro que vai dos meandros mais soul aos mais espirituais e livres do género) e que por isso mesmo já marcou presença em sessões para gente tão diferente quanto Common, Ravi Coltrane, John Legend, Laura Mvula, Robert Glasper, Lakecia Benjamin, Joel Ross, Makaya McCraven ou, para citar apenas mais um par de exemplos, Moses Sumney e Kassa Overall. Por outro lado, Dezron Douglas também acumula séria experiência como sideman em projectos de Cyrus Chestnut, Louis Hayes, Enrico Rava, Makaya McCraven ou até Pharoah Sanders com quem se tem apresentado várias vezes ao vivo nos últimos anos. E isto, claro, para lá de liderar os seus próprios ensembles, em trio ou quarteto. Duas verdadeiras feras, portanto.

Juntos, neste Force Majeure (expressão empregue nas alíneas dos contratos standard para concertos ao vivo e que previne a possibilidade das salas cancelarem datas por motivos, lá está, de força maior, como, por exemplo, uma pandemia…), Brandee e Dezron recorrem aqui a toda essa pesada bagagem mas, ao mesmo tempo, e talvez paradoxalmente, convocam igualmente uma energia vibrante que é quase inocente na sua genuína entrega a temas da esfera mais pop de gente como os Jackson 5, Kate Bush, Sting, os Stylistics, mas também a matéria funda do jazz de Alice e John Coltrane, Pharoah Sanders… ‘The Creator Has a Master Plan’ merece, aliás, uma das mais comoventes leituras neste trabalho, perfeito casamento dos dois instrumentos numa poética abordagem a um clássico maior do lado mais espiritual do jazz, com o contrabaixo de Douglas a revelar-se nobre, denso e fluído ao passo que a harpa de Younger espalha pó de estrelas pela composição, respondendo às subtis variações indicadas pelo seu companheiro. Essa capacidade de maravilhamento é, aliás, recurso permanente nestas peças, sem que alguma vez qualquer um dos músicos sugira sequer que as suas consideráveis capacidades técnicas sejam aplicadas de forma gratuita e escusada. Estes músicos só tocam, na verdade, o que a música escolhida pede. E isso não é tão fácil assim…

Nas detalhadas notas que acompanham este lançamento, a dupla explica como foi selecionando o reportório, como foi respondendo a apelos de amigos ou a importantes aniversários que sabiam estar próximos, aproveitando este projecto como uma oportunidade para estudarem e para, como explica Dezron, poderem ambos ‘entrar dentro’ destas diferentes peças, como quem se procura familiarizar com os recantos de uma casa. Porque, este é também um transparente exercício cultural, uma tocante amostra de como diferentes comunidades lidam com a música, resgatando-a muitas vezes da condição de mero entretenimento para a apresentarem como parte das suas mais genuínas e profundas identidades. ‘A música negra’, explica Dezron Douglas, ‘não importa qual o género, é exactamente o que é – música criada por Músicos Negros com o simples e claro propósito de fazer vibrar as nossas frequências de compreensão e empatia, mas eu também entendo que a música pode ser uma vibração cultural e regional. Não tens que ser Negro para tocares música Negra, mas se andas aí a fazer dinheiro com a Cultura Negra e não tens qualquer empatia com as Pessoas e com a Cultura então és ainda mais parte do problema’.

E assim se entende, de forma directa e clara, como o simples acto de um casal de músicos negros, no Harlem de Nova Iorque, a lidarem criativamente com o confinamento, acaba por resultar num alinhamento das suas energias com uma luta mais vasta e funda, sintonizando-se de forma subtil com o movimento que nas ruas clamava #BlackLivesMatter, assumindo sempre uma honesta devoção religiosa no seu discurso e uma incondicional entrega à sua arte. Por isso mesmo, Force Majeure é, sob esse aspecto, um dos mais honestos, comoventes e apaixonantes registos do ano.”

O ano passado, o Jazz Blog, órgão ligado ao Lincoln Center, publicou uma excelente playlist que explora a história da harpa num contexto jazz. Recua até aos alvores da gravação com Jack Hylton & His Orchestra, um dos pioneiros do jazz na Europa nos anos 20 do século passado, passa pelo inevitável Casper Readorn, mas também ilustra o papel da harpa nos contextos mais orquestrais do jazz em que navegaram artistas como Frank Sinatra ou até Charlie Parker e Chet Baker. E depois detém-se mais longamente nas obras de Dorothy Ashby e Alice Coltrane, chegando ao presente com Edmar Castañeda e Brandee Younger.

É com essa playlist que rematamos este mergulho no papel da harpa em contexto jazz.


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