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Fotografia: Jorge das Neves
Publicado a: 12/06/2025

No solo show da Anozero - Bienal de Coimbra, no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova.

“A Fábrica das Sombras” de Janet Cardiff & George Bures Miller: entrar a ouvir, ficar a escutar

Fotografia: Jorge das Neves
Publicado a: 12/06/2025

A ideia de uma fábrica traz à razão o conceito onde matérias primas entram para depois serem transformadas, resultando num novo produto à saída. O processo de fabricar como o saber fazer. O lugar da arte e dos artesãos, da criação e do artesanato, no espaço seguro onde se trabalham as ideias inseguras. É onde se melhor labora sempre que há lugar para a experimentação — ao viver com entrega e disponibilidade. Esse é o convite implícito na exposição “Fábrica das Sombras”, que traz os trabalhos dos artistas sonoros Janet Cardiff e Georges Bures Miller pela primeira vez à audição em Portugal. Numa mostra que contempla 11 obras — ou “máquinas”, uma vez neste contexto —, 9 colagens/poemas e uma série de páginas de cadernos de esquissos de ideias escultórico-sonoras de Cardiff. Um espaço que conduz à audição privilegiada, para uma em nada enclausurada experiência, no vetusto e sitiado Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, até ao próximo dia 5 de Julho. 

Cardiff & Bures Miller é nome de dupla de escultores do som — simplificação abrupta e sintética. Na visita orientada à exposição, o director da Anozero – Bienal de Coimbra (uma iniciativa organizada pelo Circulo de Artes Plásticas de Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra e Universidade de Coimbra desde 2015), Carlos Antunes, assume a obra destes artistas como difícil de catalogar — tanto melhor, sinal que se caminha em áreas marginais, fora do conceito concreto e nisso capaz de se interceptar o inesperado —, revelando-se a surpresa. Contudo, estamos no campo concreto da arte sonora. Há uma motivação maior para a zona de acção desta dupla canadiana. Encontraram-se na vida partindo das artes visuais. Cardiff com formação em fotografia e gravura, e Bures Miller em cinema. Passam a dedicar-se, na década de 1980, à relação do som como uma certa imagem do real. Daí em diante fazem um percurso quer em paralelo ou em conjunto, através de instalações sonoras estabelecendo mecanismos emocionais, no alcance de memórias ou ficções, em narrativas que conduzem a imagens (nem sempre projectadas) tornadas reais pela escuta concreta e profunda. A exposição revela 6 obras em conjunto, e quase outras tantas em separado. Fascinante torna-se o dar conta dos pontos em comum, dos trabalhos de cada um — a escultura e o som —, como uma ideia concertada da imagem (mesmo quando ausente), resultante da escuta. 

O espaço definido das sombras é intangível, assim como o som, como espaço, também o é. A entrada no cenário expositivo aponta de pronto para esse lugar e para o efémero. A sombra, como imagem sem som próprio, como em Curtain (Miller, 1990-2024), mas a qual é contaminada pela máxima luz e som vindo da obra House of Burning (Cardiff & Miller, 2001). Um corredor com memória neste espaço — já foi corredor de luz e de som em distintas edições da Bienal. Essa consumação projectada em tela remete para o desaparecimento e perda irreversível, e como isso torna, a cada instante, uma audição do já inexistente. Escuta-se o que deixara de existir instantes antes, o som — mais retardado na viagem que a luz —, passa a ser veículo derradeiro da memória. Numa das raras ocasiões onde na sua obra não parece haver espaço de fuga — apenas o assistir ao desastre premeditado traz essa redenção como lugar restante, de consolo.

Esta relação — tal como designada em título da exposição — com as sombras aponta para esse lugar de escuta que é dinâmico. E também é efémero — é como uma sombra que acompanha o ciclo do dia. Cresce e atenua-se, surge ora de contornos difusos, ora bem definidos, em função da luz — mas que não se deixa apanhar, é matéria não palpável. O som tem isso em igual medida. Percepciona-se pela vibração, é conduzido pela oscilação da matéria no espaço — depende do meio para existir. Cada espectador(a) é ouvinte nesta exposição, e a matéria prima desta fábrica é feita de cada um(a) dos que aceitam o convite para entrar — como matéria que se coloca à mercê da audição e se torna imprescindível para a experiência. Depressa se dará conta que tem de haver uma predisposição activa nessa condução de vista — em desejada disponibilidade. De forma concreta, encontra-se essa sugestão em boa parte das obras expostas. Há que abrir gavetas para escutar e interferir criativamente — caso da obra The Cabinet of Curiousness (2010). Um arquivador de madeira, composto por 20 gavetas, guarda memórias sonoras que a luz do momento permite retomar em ficção pelas mãos curiosas no abrir de cada uma. Em The Instrument of Trouble Dreams, a obra que ambos conceberam em 2018 e que parte do mecanismo de um mellotron — conjunto de dois teclados idealizado na década de 1960 e que permite reproduzir sons pré-gravados a cada toque de teclas como de um piano. É um dispositivo e obra cujo processo se insere na ideia acusmática de Pierre Schaeffer e do GRM – Groupe de Recherches Musicales de Paris, na década de 1970 em diante. Assente na música concreta, como modelo taxonómico de arranjo dos sons, e partindo dessas chaves abre-se campo para uma narrativa na feição de cada operador(a) do teclado. Parte de um processo de recolha sonora tendo como objectivo a sua utilização futura — sons interoperacionais que levam ao processo criativo — e parte de uma matriz concreta de três tipologias sonoras: trechos de musica instrumental, vozes narrativas, e sons concretos (animais ou elementos naturais); que são activáveis desde as 72 teclas. Aqui o lugar de escuta — num sistema ambisónico — e o lugar de fala são postos em confronto — quem pode ser quem? O que cada um(a) quiser. Poder-se-ia passar todo o tempo aqui, num desfrutar sem fim — as possibilidades são inesgotáveis e acompanham o requinte sonoro disponível. Tal como o experiênciado em To Touch, de Cardiff (1993). Outra das obras presentes e assumidamente interactiva, onde partindo de uma velha e marcada bancada de trabalho, melhor se entende o sentido de oficina, atelier ou mesmo fábrica dos sons (das sombras). Num enigmático mecanismo oculto, o simples palmar sobre a superfície da madeira activa o disparo de trechos sonoras pré-gravadas de filmes ou narrativas. Um despertar inverso — som partindo da imagem ausente. Um espaço (cozinha) onde outros sistemas de ambi-som possibilitam uma imersão absolutamente tão deslumbrante quanto fascinante. É-se espectador(a) apenas e só quando se ousa (sendo esse o convite) a ser compositor(a) em tempo real. É a permissa do acto de criar possibilitada por quem tem num primeiro acto de criação — enquanto artista — um absoluto gesto de grande generosidade para com quem vem para “apenas” escutar. 

Há, também aqui, que estar disponível para passar do ouvir ao afectivamente escutar — tratando melhor os afectos. Isso fica elevado ao expoente máximo quando se alcança a sala de maior comunhão do mosteiro. O refeitório de outrora é nesta exposição o local que justifica a instalação daquela que é seguramente a obra de uma vida da autora. The Forty Part Motet, com que Cardiff em 2001 transpôs e amplificou, a dimensão transcendente, da recriação da peça coral renascentista Spem in Alium de Thomas Tallis. Tal como idealmente composta, é aqui reproduzida respeitando a ideia de 8 corais a 5 vozes. Um total de 40 colunas dispostas em conjuntos de 5, formando uma ampla elipse — dando a ideia de um cromeleque de vozes. A fruição é comovente na medida em que se está além da dimensão de escutar 40 vozes em harmonia. A possibilidade de estarem individualizadas e o requinte sonoro permitem: percorrer o espaço e selectivamente ir elegendo uma e outra voz de perto contraposta às restantes; ou um dos “grupos” presentes de 5 vozes e o restante coro. Fazendo dessa escuta um dinamismo que ultrapassa no afecto da escuta um patamar inalcançável no lugar comum de sala de concertos, indo de encontro ao mote da peça coral: a esperança no outro. A reverberação no espaço é idílica e fica-se na ideia de que esta obra foi pensada para aqui. Aliás, essa torna-se uma quase constante em muitos momentos da exposição — tamanho é o encaixe das obras com o lugar. Foi também esse o impacto causado nos artistas aquando da montagem, sendo que todas já existiam antes de aqui chegar. Ainda assim, pareciam saber que este lugar as esperava um dia. 

O som no vazio e a não percepção do sonora — a falta de matéria vibratória e que não propaga as ondas sonoras — é um tema abordado em alguns momentos da obra, mais até de Miller, como nas duas obras escultóricas da série Imbalance. Sendo que é através da magistral escultura sonora que ambos assinam com The Infinity Machine (2015) que Cardiff & Miller nos revelam melhor as suas ideias do espaço sonoro do cosmos e dessa ausência de matéria. Nesse gigante carrossel de espelhos suspensos está evocada a rotação dos corpos celestes e a ideia do som transcendente, do tempo e do espaço. Nesse rodopio permanente, dos 150 espelhos, parece não haver espaço sonoro dada a dimensão visual e a ideia do cosmos — onde efectivamente não se propaga o som. Não que não existam fonte sonoras — que as há. Como soam as grandes e longínquas super-novas? O que se escuta na profundidade do cosmos? E dos corpos que nele orbitam, o que se escuta? Sem matéria vibrante não o saberemos — o irremediável silêncio. No entanto, transposta ao contexto terrestre torna-se comensurável essa paisagem sonora. Os registos trazidos das duas sondas Voyager são a sonoplastia desta dança dos espelhos. A que soa o infinito? — uma plausível resposta termina sendo dada pela dupla de artistas sonoros nesta instalação ambi-sónica e de grande envergadura na retórica.

Por fim, a noção que o tempo está a contar. Começou desde o início, e a esse princípio volta-se a cada 28 minutos — tempo que demora a contagem até 1000, um a um, sem pausas nem saltos. Justamente ao som da voz de Janet Cardiff, a obra Counting (1—1000) está em emissão desde o alto da velha torre de comunicação, é a instalação sonora em contínuo e virada para a cidade, numa multiplicidade de leituras e urgências. Sempre que termina volta a contar — o eterno retorno ou o movimento perpétuo e inclemente da contagem. O tempo está a contar, está a contar, a contar…


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