É mais um membro do clã Veloso a emancipar-se com um disco em nome próprio. Depois da lenda que é o pai Caetano, e da carreira que o irmão mais velho Moreno tem vindo a construir desde o início do milénio, agora é Zeca Veloso quem se lança a solo. Boas Novas, editado nos últimos dias de Novembro, é o trabalho de estreia do músico de 33 anos, no qual explora falsetes com uma aura celestial e diferentes géneros da música popular brasileira.
O álbum surgiu a partir da faixa homónima que o mais novo artista da família, Tom Veloso, compôs para Zeca. Foi em 2020, enquanto esperavam pelo nascimento do filho de Tom, Benjamim. “Eu fui escrevendo a letra e percebendo que o Benjamim era um assunto, mas também havia a questão cristã, que sempre esteve presente na minha vida”, explica Zeca Veloso ao Rimas e Batidas, numa videochamada transatlântica.
Após ter essa música pronta, conta que teve uma epifania, uma “experiência espiritual” que viria a marcar toda a construção do disco. “Entendi a partir disso que aquela música chamada ‘Boas Novas’ daria o nome ao disco. E entendi que havia um disco, que existia uma ideia. Foi a partir daí que comecei a organizar músicas que já tinha desde 2018 e a pensar em fazer outras para completar 10 faixas, porque já pensava que o disco deveria ter 10 faixas. Consegui completar até ao final de 2021 e começámos a gravar em 2022.”
Embora não tenha sido pensado como tal, Boas Novas também parece aludir a “Boas Vindas”, o samba que Caetano Veloso compôs em 1991 (e que partilhou com Gilberto Gil, que gravou a sua viola) para o álbum Circuladô — precisamente para saudar a chegada de Zeca ao mundo, que haveria de nascer no ano seguinte.
“Eu não tinha pensado nisso até a música já estar pronta e ter sido escolhida para título do disco”, assume Zeca Veloso. “Só fui entendendo depois, conversando, até com as pessoas que confundiam os dois títulos, quando o disco ainda não tinha saído. Não foi muito consciente, não pensei muito nisso, mas acho bacana que tenham a ver um com o outro, é bonito. Os dois títulos são bonitos, e o Boas Novas também é sobre boas vindas, então tem tudo a ver.”
Para Zeca Veloso, é como se durante todo o processo criativo do disco tivesse contado com uma ajuda divina. “Senti como se fosse uma nova maneira de criar, porque ia tendo quase que essa ajuda de uma outra coisa que não era eu. Como se estivesse a compor com um parceiro muito bom, muito melhor do que eu, que me ia ajudando. Eu posso ser inteligente, mas acho estas músicas muito acima da minha capacidade natural de compor, principalmente as letras”, conta.
Apesar das tentativas e erros ao longo das composições, da escrita das letras, dos “caminhos da produção” em que trabalhou com diversos colaboradores, acredita que houve uma “condução espiritual” que o foi levando aos lugares musicais certos. “Eu quase que fui obedecendo àquilo que me ia aparecendo, respeitando o que ia aparecendo, não foi muito planeado. Podem dizer que fui tudo eu, mas não foi de uma forma consciente, eu não planeei tudo dessa maneira. Foi-me aparecendo. Até à ‘Salvador’, a última música que fiz e que foi a experiência mais intensa nesse sentido.”
Em “Salvador”, de inspiração baiana, que acabou por se tornar a primeira faixa do alinhamento, Zeca partilha o microfone com o pai Caetano e os irmãos Moreno e Tom. “Fiz as estrofes que cada um canta já pensando em cada um. E isso estava junto desse lugar espiritual.”
Se não tivesse existido esta intuição mística, defende que nem faria sentido convocar o pai para um primeiro disco em que se queria afirmar como um autor e intérprete em nome próprio — não se querendo colocar demasiado à sombra de Caetano. “Se fosse calculado, ia pensar: ‘Poxa, no meu primeiro disco, não vou chamar o meu pai’. Não me vou apoiar nisso. Especialmente por ser a primeira faixa. Então, até evitaria isso, quereria fazer o meu trabalho. Mas como isso me apareceu dessa maneira, então respeitei.”
Em “O Sal Desse Chão”, canta com o sambista Xande de Pilares, fruto de um encontro fortuito e inesperado. “Ele não se lembra bem, mas foi no meio de uma festa que o encontrei, tinha esse pedaço de música, ele pegou no violão e sugeriu: ‘Porque não faz assim?’ E aquilo apontou para um caminho. Guardei aquilo, mudei um pouco e depois escrevi a letra. Quando fui gravar a música, chamei-o para gravar a voz, com o Pretinho da Serrinha e todo o pessoal que ele trouxe.”
A outra colaboração é com Dora Morelenbaum, um dos grandes talentos da nova geração da MPB, com quem partilha “A Carta”. “Já tinha a música pronta e pensei que ia melhorá-la muito, que iria ficar muito especial, se tivesse a voz dela a harmonizar, a partir de certo momento. Então, no início deste ano, fomos ao estúdio, trabalhámos nestas harmonizações e ficou super bonito.”
Revelando ao Rimas e Batidas que já conta com ideias para, pelo menos, mais “um ou dois discos”, Zeca Veloso sublinha que encarou Boas Novas como uma “missão” que foi cumprindo. “Foi a principal responsabilidade que senti. Claro que havia a coisa de ser filho do meu pai, e de ser o meu primeiro disco, mas fui entendendo mais este trabalho com este lado de missão.”