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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Francisco Hartley
Publicado a: 24/06/2025

Sobre o desejo de cantar depois da escrita e o exílio da metafísica numa voz feminina.

A ciência musical de Esteves sem Metafísica

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Francisco Hartley
Publicado a: 24/06/2025

Quando uma poeta abandona a página em branco e a troca por um estúdio, não se trata de traição. Trata-se de migração. A escrita permanece, mas ganha corpo, respira entre as pausas, hesita na cadência da voz, desafina, talvez, mas com isso se humaniza. Em de.bu.te, Teresa Esteves da Fonseca — agora Esteves sem Metafísica — não canta para adornar a palavra: canta para a libertar. E ao fazê-lo, instala-nos numa escuta que é pele e pensamento, um entrelugar onde o tempo dobra sobre si mesmo e a alma se revela numa frágil nudez sonora.

Não é necessário compreender cada verso ou reconhecer cada influência. Este disco exige outra escuta — uma que desça do cérebro ao esterno, que se instale entre os ossos. Porque a música, neste caso, não é um ornamento: é uma continuação da existência por outros meios.



[de.bu.te ou a Arte de Escutar o Que Ainda Não Foi Dito]

I. Quando o Silêncio Aprende a Falar

Antes de qualquer nota, houve um tempo longo de escuta. Cinco anos de gestação não são apenas um intervalo: são um solo fértil onde o som aprendeu a esperar. Neste tempo subterrâneo, Teresa não procurou fórmulas — procurou fidelidade. A si, à língua, à dor. de.bu.te nasce, assim, não como explosão, mas como rumor contido que finalmente encontra saída. Um sopro que passou demasiado tempo preso no peito e que agora, enfim, se solta.

II. A Arquitetura das Fragilidades

Sebastião Macedo não produz este álbum como quem constrói: produz como quem escuta. O que ouvimos não é um edifício sonoro, mas uma casa em ruínas habitada por alguém que ali decide ficar. Não há truques de ilusionismo nem maquilhagem digital. O que se ouve é o som da matéria a resistir: respirações, hesitações, ecos que não foram limpos. Cada detalhe é deixado a nu — e nesse despojamento encontra-se uma estranha forma de abrigo.

III. Cantar com a Raiz dos Dentes

A voz de Teresa não vem da garganta: vem de mais fundo. É como se fosse escavada, palavra a palavra, a partir da coluna. Há nela uma urgência quase física, uma fome antiga. É uma voz que alia beleza e verdade — não procura adornos, mas presença. Soa plena, consciente, e profundamente expressiva. Cada canção é um registo desse confronto: entre o que se quer dizer e o que ainda não se sabe como dizer. Entre a linguagem que temos e aquela que ainda não nasceu.

IV. O Dicionário das Influências Impossíveis

Beatles. Albéniz. Lloyd Webber. Bach. Fado. Isto não é um alinhamento: é um léxico emocional. São os nomes que assombram a construção deste disco, não como modelos a seguir, mas como vozes que espreitam de cantos da memória. Nenhum deles aparece em citação directa. Aparecem como nuvens que se formam e dissipam ao longo do álbum. O resultado não é ecléctico por ambição: é ecléctico por necessidade. Porque uma identidade feita de colagens é, muitas vezes, mais honesta do que uma estética coerente.

V. A Juventude como Delírio Sóbrio

sóbria” é uma carta aberta ao passado. Uma revisitação da juventude onde o excesso é substituído por uma clareza inquietante. Não há moralismo, apenas constatação. A letra parece simples, mas há nela uma alquimia rara: dizer muito com pouco, e deixar que o resto seja dito pelo silêncio. Há uma leveza que nunca é superficial. A sobriedade, aqui, é o verdadeiro delírio: o de estar consciente de cada falha, e ainda assim continuar.

VI. A Intimidade Não se Grita

Este álbum não procura o ouvinte — aguarda-o. Não se impõe. É como alguém que fala baixo no meio do ruído e, por isso mesmo, nos obriga a aproximar. A escuta torna-se íntima porque requer esforço. Há canções que parecem querer desaparecer antes de acabar. E no entanto, permanecem. Como os sonhos que não conseguimos explicar, mas que nos perseguem o dia inteiro. É este o segredo de de.bu.te: em vez de se dar todo de uma vez, oferece-se por fragmentos, como quem nos confia partes do seu diário rasgado.

VII. O Corpo Enquanto Instrumento de Verdade

Quando Teresa diz que escreve com verdade, não fala da verdade factual. Fala da verdade orgânica, aquela que se sente no estômago antes de chegar ao pensamento. O corpo não é tema — é meio. Cada faixa é atravessada por uma fisicalidade quase táctil. As palavras não são ideias: são pulsações. E a alma, esse conceito tantas vezes maltratado, aqui aparece como o nome possível para tudo o que se move entre um acorde menor e um verso quebrado.

VIII. Ficar Depois do Fim

de.bu.te não termina quando acaba. Fica. Não porque tenha refrões memoráveis ou truques melódicos — mas porque cria um espaço. Um espaço dentro do ouvinte que não se fecha. Como se cada faixa abrisse uma janela para um território por nomear. É o primeiro passo de um caminho que ainda não foi cartografado, e por isso mesmo é precioso. Não é a chegada de uma nova artista — é a continuação de alguém que já vinha, em silêncio, a escrever sobre nós.



[A Voz Que Falha Também Canta]
O íntimo, o silêncio e o impossível nas letras de Esteves sem Metafísica — oito canções como fragmentos de um corpo em escuta

Introdução: Escutar o Que Não Se Pode Dizer

Há canções que procuram o mundo. Outras voltam-se para dentro e, nesse gesto íntimo, tornam-se espelhos. O universo poético de Esteves sem Metafísica pertence a essa segunda linhagem: um conjunto de canções que não se gritam, mas que se oferecem a quem se dispõe a escutar no escuro.

Este corpo de obra — fragmentário, confessional, desarmado — não pretende confortar. Estas letras não estão interessadas em soluções fáceis, nem em refrões de efeito. O que aqui se canta são as brechas da linguagem, as falhas da relação, os momentos em que o amor e a dor se tocam sem se resolverem. Cada canção é uma pequena oração feita de ruínas. E o milagre, se há, está em continuar a cantar apesar do não saber.

“proposição”: O Desejo de Entrar

“De uma só vez entro em frente a cantar” — assim começa “proposição”, como quem decide atravessar a realidade com a voz. Não há prudência, só vontade. A letra é um ensaio sobre o desejo nu: um corpo que se oferece com tudo o que tem e tudo o que não sabe. O verbo “entrar” torna-se metafísico — não se trata apenas de acesso físico, mas de pertença afectiva, de intimidade ontológica. O eu que canta não pede licença: bate à porta com a voz trémula e repete: “quero entrar”. E isso basta para fazer nascer uma canção.

“sóbria”: Embriagar-se para Sentir Menos

“sóbria” é um hino ao adiamento. A personagem poética sabe que há um tempo certo para ficar bem — mas ainda não é agora. Tropeça, hesita, recusa o calor do Verão que se anuncia. Prefere o licor, o delírio brando, a suspensão. Há aqui uma sabedoria estranha: saber que o processo é mais honesto do que o resultado. Ser sóbria será possível — mas só “quando der”. Até lá, o cálice é consolo e resistência. A dor, nesse intervalo, é celebrada com uma calma quase litúrgica.

“dar-me de volta”: A Falência Afectiva

“dar-me de volta” é talvez o texto mais vulnerável. Um eu que tenta tocar o outro e falha — não por falta de amor, mas por incapacidade. Há uma honestidade brutal na confissão: “Eu não sei o teu tom”. Como se amar fosse uma questão de afinação, e a vida desafinasse sempre no momento exacto da entrega. A canção é feita de braços dormentes, margens que se quebram, promessas que não chegam a nascer. E no fim, o que sobra é o desejo: “Sei que isso chega pra ti”. E talvez chegue mesmo.

“tenta”: O Treino da Solidão

“tenta” é o texto mais pedagógico, mas também o mais generoso. Convida a sentir o frio, a aceitar o vazio, a tirar o pó das emoções esquecidas. É um poema de iniciação: não promete conforto, mas crescimento. Cada verso é um degrau para dentro. E o refrão repete: “Todo o teu amor será maior”. Maior não por milagre, mas porque foi regado com ausência, com silêncio, com resistência. Esta canção não cura — prepara. E essa preparação é, talvez, o verdadeiro acto de amor.

“não sei ter-te”: A Impossibilidade do Abraço

Esta letra é um poema existencial. “não sei ter-te” não é uma desculpa — é um limite. Um corpo que tenta fazer espaço, mas não consegue conter a imensidão do outro. Há orações, invocações náuticas, murmúrios ao ouvido de ancestrais que talvez saibam mais sobre o que é amar. A letra é fragmentada como um pensamento em processo, como quem tenta nomear o indizível. O resultado é uma meditação sobre o não saber — não saber amar, não saber escutar, não saber agarrar — e ainda assim permanecer.

“balada da debutante”: A Delicadeza da Rebeldia

“balada da debutante” desarma pela contenção. Promete boas maneiras, jura não envergonhar — mas logo torce essas frases por dentro. Não há aqui uma recusa explícita da sociedade, mas uma retirada estratégica. A voz feminina que canta conhece o jogo — e escolhe não jogar. A linha final, “Não quero viver / pra te agradar”, transforma a canção num gesto de emancipação delicado. A debutante não rasga o vestido, não abandona o baile — apenas se desvia da coreografia. E é nesse desvio que se revela inteira.

“redenção”: A Paz Que Chega pela Falha

Com apenas quatro versos, “redenção” diz o essencial. Um céu reconstruído, um corpo refeito, uma chama reacendida — mas o resto ficou por fazer. E foi aí que a paz se instalou. A letra reconhece que a redenção não vem da perfeição, mas do que se aceita inacabado. A lama que corre pelos olhos ajoelha-se aos pés do outro. Não há resposta, nem consolo. Há apenas um gesto de entrega sem promessa — e isso basta.

“montanha isolada”: A Escuta Radical

“montanha isolada” é um exercício de ética afectiva. Um amor que recusa o ruído biográfico, que não quer saber com quem estiveste, nem que nomes te seguem. A canção propõe uma escuta verdadeira: silenciar a própria voz para que o outro possa surgir sem filtros. Mas a montanha que escuta também é “isolada na sua razão” — há uma solidão nisso. A escuta profunda pode tornar-se distância. E talvez seja isso que esta canção interroga: como escutar sem desaparecer?

Conclusão: As Canções Como Mapas do Invisível

As letras de Esteves sem Metafísica formam um corpo uno — mas partido. Não são histórias, são fragmentos. Estilhaços de experiências emocionais intensas, contidos num gesto poético que nunca procura respostas fáceis. Aqui, o amor não é narrativa — é enigma. A dor não é falha — é matéria.

Estas canções não se ouvem com os ouvidos. Escutam-se com o corpo todo. Com o peito aberto. Com o cansaço do dia. Com a esperança contida de quem sabe que a beleza não salva, mas sustém.

Esteves sem Metafísica canta como quem escreve o que ainda não sabe. E é isso que a torna tão profundamente necessária. Porque, por vezes, a voz que falha é a única capaz de dizer a verdade.



[Partituras do Indizível: Cartografia Sonora de Esteves sem Metafísica]
Texturas, gestos e polifonias de um corpo musical em suspensão

Alguns projectos não se escutam — acontecem. Não se deixam apanhar num género, nem se esgotam na audição. São organismos vivos, com respiração própria, com oscilações tímbricas e pulsações internas que lembram o metabolismo de algo que está mais perto da vida do que da arte. Esteves sem Metafísica é precisamente isso: um corpo sonoro que vibra entre a linguagem e o grito, entre o murmúrio e a arquitectura. Um objecto musical que se desfaz a cada tentativa de definição — e por isso, exige novas formas de escuta.

I. Polirritmia como Tensão Corpórea

Desde os primeiros segundos, há uma sensação de descompasso intencional, um jogo entre camadas rítmicas descontínuas que convivem em vez de se alinharem. A polirritmia aqui não é exibicionismo técnico — é fricção emocional. Os compassos desiguais, por vezes quase africanos na base percussiva, criam uma sensação de deslocamento, um chão que falha de forma voluptuosa. A música não avança em linha recta: pulsa, respira, tropeça de propósito. Como o corpo de quem dança sem coreografia.

II. Sprechgesang: A Voz entre a Palavra e o Gesto

A voz de Esteves — ou, mais precisamente, as vozes, porque se desdobram em clones, camadas e sussurros — é o eixo desta composição expandida. Há passagens onde o sprechgesang (fala-cantada, herdada de Schoenberg e do expressionismo vocal) toma o protagonismo. Aqui, o som da palavra importa tanto como o seu significado. As vogais alongam-se, as consoantes estalam, e a articulação vocal funciona como instrumento de percussão melódica. A voz não canta — surfa. Paira sobre drones, insinua-se por entre arpejos, enfrenta o sax como se o quisesse domar.

III. Poliestilismo como Poética Sonora

Se há algo que marca este projecto, é a sua recusa em escolher um só idioma musical. O poliestilismo, aqui, não é colagem nem pastiche — é linguagem própria. O jazz surge em gritos agudos de saxofone, evocados como aves esganiçadas em pleno voo livre — puro free jazz, com contornos orníticos. A pop aparece em forma de guitarras arpejadas, quase como ninar o ouvido antes do choque seguinte. A música electrónica instala-se em paisagens texturais de ruído e silêncio, como se Ligeti tivesse passado por um compressor glitch.

Mas talvez o mais notável seja a forma como lulabies, harmonias vocais quase infantis, se misturam com o lirismo de pianos melancólicos e violoncelos chorosos — como se se cruzassem uma cantiga de embalar com um lamento barroco. Tudo é possível, porque tudo é orgânico.

IV. Arranjos como Arquitectura da Emoção

Há um rigor silencioso nos arranjos deste disco. Cada entrada instrumental é pensada — mas nunca previsível. Os instrumentos dialogam com a voz como personagens autónomas: o sax responde, a voz devolve em harmónicos, as palmas surgem como pontuação ou comentário rítmico. Em certos momentos, a voz a capela multiplica-se, em overdubs que criam camadas quase corais — mas sem perder a fragilidade da interpretação íntima. Tudo isto se articula com um sentido de forma e timing que raramente se ouve em projectos de cariz experimental.

V. Crescendos, Dinâmica, Rock Sinfónico

Quando a música cresce, não o faz para impressionar, mas para revelar. Os crescendos surgem com uma tensão controlada — uma forma de escalar sem nunca explodir em catarse gratuita. Há aqui ecos de rock sinfónico: não na pompa, mas na ideia de estrutura alargada, de movimento contínuo, de uma música que se pensa a si mesma enquanto se ergue. As transições são fluídas, e os picos emocionais são conquistados, não impostos.

VI. Um Lugar Singular no Panorama Musical Português

Esteves sem Metafísica oferece um lugar raro: entre a canção e a composição, entre o experimental e o lírico, entre o som e o silêncio. O projecto recusa tanto a estética do “alternativo” como a do “mainstream”, construindo um espaço próprio onde se pode sofrer com inteligência e cantar com hesitação. Num panorama musical frequentemente polarizado entre o minimalismo electrónico e a folk emocional, este disco aparece como uma ilha polifónica — uma montanha isolada, sim, mas atenta ao mundo.

Conclusão: O Som como Matéria da Alma

Mais do que um disco, este é um campo acústico de escuta aumentada. Uma proposta que desafia as categorias e ouve com os poros. A música de Esteves sem Metafísica exige tempo, atenção e entrega. Mas recompensa com algo raro: a sensação de que estamos a ouvir alguém a descobrir-se em tempo real — e a deixar-nos ouvir o som dessa descoberta.

É nesse risco — entre o saber e o não saber, entre o cantar e o calar — que nasce a beleza. E é também aí que este disco se instala: não para explicar nada, mas para nos lembrar que, às vezes, ouvir é um acto de amor radical.

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