Minas Gerais é um estado brasileiro, mas, acima de tudo, é um estado de espírito. Específico, matuto, profundo, orgulhoso, tão discreto quanto intenso. E ninguém encarnou mais essa sensação de ser as Gerais do que Lô Borges.
Sim, sempre haverá Milton Nascimento, o Mineiro Maior. Mas Milton também é África, Milton é o mundo, como ele mesmo cantou. E Lô, assim como o letrista Márcio, seu parceiro principal, e os nove demais irmãos dos dois, representam MG até a medula.
Foi especialmente emocionante vê-los, nos vídeos partilhados por aí, na esquina histórica que deu nome ao Clube que ajudaram a fundar, cantando, junto à gente de Belo Horizonte, as canções que atravessaram terras e tempos, em homenagem emotiva ao agora encantado brother Borges.
Certas passagens batem ainda mais forte que o esperado, e esse foi o caso aqui. O poeta Fabrício Carpinejar sintetiza o sentimento geral ao dizer que “Foi o adolescente criativo das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza. O violão que iniciava as rodas. O último a ir embora. O bis das amizades.”
Esse é um ponto importante: Milton é um mito, um milagre, é monumental. Mas Lô, ao seu modo também mais largo que a vida, parecia ser o cara da mesa ao lado, naturalmente acessível, uma pessoa do povo. O fato de ter feito, há menos de seis meses, um show impromptu, gratuito, sem palco, no exato ponto geográfico que consagrou, confirma isso.
Seu abraço espontâneo aos populares refletia as relações de toda a “patota”, como mandava a gíria daqueles anos, formada, além dele, do irmão e do Bituca, por talentos como o tecladista e maestro Wagner Tiso, o guitarrista Toninho Horta, o músico, cantor e compositor Beto Guedes, os letristas Ronaldo Bastos e Fernando Brandt, o tecladista Flavio Venturini e o fotógrafo Cafi, por exemplo.
Num país que, por um lado, ainda procurava assimilar as então recentes revoluções da bossa nova e da topicália, enquanto, por outro, se via sequestrado por sanguinária ditadura militar, aquele bando de jovens loucos e lisérgicos, abertamente influenciados pelos Beatles num contexto em que isso era tido como sacrilégio, com dissonâncias de monte em melodias magníficas, liderados por um cantor único, negro como a noite, que se apresentava descalço, muitas vezes sem camisa… não era pouca coisa não.
No entanto, é notável que, mesmo com o espírito coletivo evidente — que incluiu, dentro do disco duplo, em palco ou outros projetos, colaborações com os bateristas Robertinho Silva e Paulo Braga, os baixistas Luiz Alves e Novelli, o saxofonista Nivaldo Ornelas, os maestros Paulo Moura e Eumir Deodato, a crooner Alaíde Costa, o ritmista Nenê, o multinstrumentista e arranjador Nelson Ângelo, os cantores/compositores Tavito e Tavinho Moura, entre outros, já que o Clube nunca foi rígido em sua formação — o único escolhido por Milton pra co-assinar a autoria do álbum com ele foi Lô.
Apesar da década de diferença entre a idade dos dois, a amizade começou quando Borges ainda era criança. Foi Bituca quem presenteou o parceiro com seu primeiro violão. Um dia, percebeu que o pequeno Salomão já não era mais menino, quando “ao invés de Coca-Cola, ele pediu uma batida de limão”. Na mesma noite, já criaram a primeira de várias canções em conjunto. Não por acaso, se chamou “Clube da Esquina”. A faixa, lançada no LP Milton, de 1970, já dava sinais do que estava por vir.
Mas a entrada de Lô na indústria foi parto forçado por Nascimento, que ameaçou sair do selo se a gravadora se negasse a aceitar a presença precoce daquele ilustre desconhecido, menor de idade ainda. Porém, uma vez que “Clube da Esquina” chegou às lojas e o sucesso se confirmou, os mesmos executivos que pouco antes se opunham, passaram a andar à procura dele com contrato pronto pra ser assinado.
Prova disso é que o hoje lendário “disco do tênis”, como é conhecido informalmente o debut a solo de Lô Borges, que saiu no mesmo ano de 1972 e foi produzido a toque de caixa, sob o tipo de pressão que perpetua diamantes. Como todas as melhores músicas que havia criado até à altura entraram no “Clube”, se viu sem opção, senão compor uma canção de manhã, entregar ao irmão Márcio na hora do almoço, que letrava durante a tarde, pra levarem pro estúdio ao anoitecer, arranjar em tempo (sur)real com os outros instrumentistas e gravar a versão final antes do fim da sessão!
Ele nunca se daria bem com o sistema do show business, e foi nesse estágio entre álbuns que sua oposição passou a ser proeminente. Basta uma olhada na expressão emburrada, raivosa até, captada por Cafi na contracapa, pra sentir o drama. E a capa clássica também é resultado disso: a escolha dos sneakers do artista veio em resposta à sua recusa de estampar o próprio rosto no produto.
Parir um par de obras-primas antes dos dezoito anos de idade, em sequência, é coisa de gênio, não há como contra-argumentar. Mas também tem um preço. Por essas e outras, ele sumiu do circuito por praticamente sete anos. Foi viver a vida em Arambepe, na Bahia de Todos os Santos, e depois partiu pra Porto Alegre. Quando voltou, com o sucessor A Via-Láctea, o cenário já era outro, e mais uma vez o rebelde deixou de se encaixar. Pode ser por assuntos dessa ordem que é assinado somente por Milton o Clube da Esquina 2, de 1978, com pouca presença de Lô ou mesmo Márcio Borges.
Mas o que importa é que aí ele já tinha mudado o mundo. Pra quem por ventura duvidar, a resposta vem na voz de fãs como Pharrel, Kanye West ou Yasiin Bey. Todos eles confirmam, assim como cada mineiro que fez questão de ir cantar na esquina do Clube na segunda passada, quando a notícia saiu, o entrosamento com a eternidade encontrado pelo saudoso Salomão.
Obrigado, Lô Borges!
“Foi o quinto Beatle, o Beatle mineiro, o Beatle perdido por aí. De harmonias sinuosas e sofisticadas, que pareciam terminar e retornavam com mais força. Seus falsos fins acumulavam lágrimas de alegria.”
Fabrício Carpinejar em “O Maquinista do Trem Azul“