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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 19/08/2024

Ilustrações e sonoridades compostas em tempo real.

A Azenha no Verão a 2 Tempos * Epicentro’24: entre um abrir e fechar de olhos

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 19/08/2024

O programa cultural conjunto Verão a 2 Tempos e Epicentro, que tem feito da Coimbra sitiada por obras um lugar que interessa, teve no Grémio Operário com a apresentação de A Azenha uma das últimas propostas agendadas deste ciclo. A Azenha é um fluxo de animações projectadas e sonoplastia que resulta da acção conjugada de Cláudia Guerreiro nas ilustrações e Rui Carvalho em guitarra eléctrica e processamentos. A actividade musical desenvolvida por estes dois artistas é melhor conhecida em Linda Martini, em que são baixista e guitarrista, respectivamente, e ainda em Filho da Mãe, o alter ego em trabalho a solo de Rui Carvalho. De Cláudia Guerreiro vão-se vislumbrando expressões criativas das imagens compostas sobretudo pelas risografias que têm ilustrado capas de discos — são magníficos os últimos exemplos com ERRÔR de Linda Martini e Terra Dormente de Filho da Mãe. Se lhe juntarmos a menos conhecida, mas não menos reveladora reinterpretação da capa de Permutation (1998) de Amon Tobin, como trabalho comissariado pelo Festival Matosinhos em Jazz’24, e que pudemos visualizar num dos 5 mupis do Jardim Basílio Teles em Matosinhos aquando desse ciclo na cidade portuária. Nessas 3 referidas ilustrações, Cláudia Guerreiro inscreve uma veia identitária que voltamos a reencontrar em A Azenha. Tão importante é a mancha de tinta que espalha com o fluido que a percorre e num incerto discorrer se desenha um fluxo como matriz autoral, entre traços, borrões e escorrências que devolvem texturas e movimentos.

A Azenha é, antes de mais, um lugar concreto, de boa memória e inspirador, inscrita desde a infância familiar de Cláudia Guerreiro, o lugar perto de Estremoz. no território de muito baixa densidade populacional na peneplanície alentejana onde a referencia ao engenho de água é apenas isso mesmo — uma imagem. Azenha é então um exercício artístico que Guerreiro e Carvalho desenvolvem juntos, é uma força motriz que acciona mecanismos criativos de lustração e música que partem da água, como a roda movida pela corrente. Assim como a água que passa por baixo das pontes, que corre nos regatos e faz mover as azenhas, também em A Azenha não volta a passar duas vezes, fazendo de cada passagem um momento único. Trabalham na voragem do improviso, compondo em tempo real, ainda que balizados por boias de sinalização, como as dos canais de navegação fluvial. Aqui são os quadros-imagem sequenciais que se perfilam para entrar no cenário-decor que passa a ser intervencionado pela ilustradora “guerreira” e que os dedilhados de arrojo do guitarrista promove e potencia. 

O Grémio Operário da cidade feudo-estudantil é um dos espaços injustamente menos programados e, justamente no decurso do programa Epicentro, foi mais que palco: foi a casa emprestada para a residência artística que A Azenha soube bem aproveitar. Nesse abrigado edifício que fica, recorde-se quase paredes meias, na alta da cidade, com outro espaço cultural há muito devoluto, o Teatro Souza Bastos — há uma sala e palco que tem no busto de José Afonso um certeiro tutor. Rui Carvalho, no final da prestação, fez justa referencia a isso mesmo, referido o estimulo permanente que isso representou para a dupla nestes dias. Explicado o cenário de antecâmara, resta entender como foi o rodopiar de A Azenha neste lugar.

Uma residência implica um lugar de criação, e Cláudia Guerreiro e Rui Carvalho como que têm todo um mundo novo a apresentar. A Azenha abre os olhos perante a plateia como perante o seu próprio mundo imaginado. É por aí que se vai, por uma sucessão de ilustrações de fuga. O processo de assistir em tempo real à construção das ilustrações poderia ser um olhar para atrás da cortina e perder o encanto da magia da imagem apenas projectada. Sim, o que vemos acontecer às mãos da ilustradora é captado e projectado em simultâneo na grande tela — que assume o lugar de boca de cena e palco. Mas esse processo de construção é em tudo comparável como o de ver a música a ser feita — motivação maior para uma da ida a um concerto em vez do imaginado processo quando da fruição da música enquanto apenas registo áudio. Tudo às claras! Sem truques, ainda assim a atenção pode ficar remetida para o grande ecrã, lugar derradeiro para onde é canalizada a acção da dupla. Ver em redor é antes uma oportunidade de acrescentos, mas também de distracções à imersão total da tela. 

O abrir e fechar de olhos — recortados e projectados sobre o fundo negro. Há uma manipulação subtil do mecanismo, num estilo operativo tipo teatro de sombras. E sem dúvidas algumas a guitarra ouve-se enigmática no que virá depois. E nesse depois vemos surgir sobre a entretela projectada uma Kasbah — cidadela do Norte de África. No traço da ilustradora surge esse recorte entre casarios e minaretes protegidos pela muralhas. E num todo propositado, a música ouve-se num dedilhado arabesco, plena de hipnóticos motivos que conduzem a toda uma miragem do que se acaba de ver projectado, há um encantatório efeito ondulante que alimenta a imagem e a música — uma onda de calor na linha do horizonte, que nos reclama como que para um lugar imaginado. Será isto um sonho? Uma poeira vinda do deserto que colmata a imagem e o guitarrismo que se ouve satura o espaço. Sinal de transição e mudança de quadro imagético. Guerreiro traz o seu mecanismo identitário à cena. Borrão de largo espectro, pincelada a tela cheia, e elementos de escorrências em seguida. O plano de imagem passa-se abaixo do horizonte, onde a música se escuta meio introspectiva e a percolar os vazios comunicantes, é um certo enraizamento do espaço. Belo efeito visual com a escavação do fluido a proporcionar o desenho dos rizomas no manto fértil e que alimenta o propósito. Há como que uma antecâmara que se entende na perfeição quando, em seguida, se projecta num ardiloso efeito de teatrinho de sombras uma floresta em sonho. As silhuetas de abetos escalonados sobre os quais se pinta um céu feito de auroras, como que boreais, que a luz dirigida auxilia na dimensão dinâmica. É o duplo jogo das camadas a comandar a acção, quer do cenário da imagem, como que mini-cenários sobrepostos, como com os feitos loops na esteira do som da guitarra. Um par acção-reacção de que já nem importa entender quem responde a quem, antes sorver o belo momento alcançado. 

Volta o olhar — para nós — desses mesmos olhos que pestanejam para um mundo interior ali revelado. A calmaria sobre a floresta, um espaço de conforto mais que estabelecido, lugar de encontro e de descanso até. Recomeço na linguagem sonora para um edificado eruptivo. A matéria-prima feita de emanações vinda de solos efusivos, que permitem que o fluxo sonoro descreva o que vê projectado, sobre um cone vulcânico que cospe fluxos incandescentes sob as pinceladas aplicadas. Talvez haja um recriar da vida. Vêm as vibrantes modulações processadas da guitarra a povoar o impulso da matéria química das entranhas da Terra ao espaço atmosférico. A combinação molecular nas cadeias dos elementos vistos e escutados. O que era escorrência vulcânica vira diluição das nuvens de poeira e forma caldos primitivos capazes de gerar o inesperado — a vida. São as tempestades, os clarões escutados e vistos a acontecer sob as mãos dos dois mestres de cerimónias audiovisuais. Fogo, Ar, Terra e Água. Os quatro elementos fundamentais revistos. E numa transição do espectro sonoro para o registo mais grave escutado até aqui, devolve uma descarga suave de uma percolação em tela sob a matéria tintureira que evoca a chuva, doce e primordial para a vida ter lugar. Tudo certo, até ao abrir dos olhos, como num sonho que alcança a realidade. 

A Azenha de Cláudia Guerreiro e Rui Carvalho é um desses lugares de sonho perante o que o mundo lá fora reclama e sublinha com sentido o que nos escrevia Nietzsche com “Temos a Arte para não morrer da verdade”.


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