[TEXTO] Francisco Noronha [FOTO] Vera Marmelo
Na terceira e última parte deste artigo (primeira parte; segunda parte), prosseguimos a análise, em concreto, das principais características ou linhas de força do storytelling em STK (elencadas na primeira parte do artigo).
[TERCEIRA – E ÚLTIMA – PARTE]
Segue-se a descrição da saída do local e a formulação do “próximo destino”, eventualmente a desejada one night stand (em minha casa ou na tua?), embora algo, não sabemos exactamente o quê mas pressentimo-lo, indicie que as coisas não vão correr como o esperado. É impressionante a forma como STK resume aquele momento da noite em que um tipo, já com a coisa a rolar, se despede dos amigos e estes compreendem e ficam contentes pelo motivo da sua saída prematura: “O Marco passa na sala onde eu estou sentado / Com um sorriso e um acenar que diz «estás orientado» / A minha mão bate na outra, quer dizer «vou bazar» / A cabeça dele diz «sim» e eu mostro o meu polegar” (repare-se na mistura do discurso indirecto com o discurso directo). Que dizer? Em pouquíssimas palavras, apenas as estritamente necessárias, uma lição de escrita sobre como condensar ideias e emoções num instante tão curto, ao que acresce a mestria em fazer o ouvinte perceber como este “diálogo” com o Marco não é, na verdade, um diálogo: a música da discoteca está alta, por isso é que eles não falam (porque não se ouviriam), apenas comunicam por gestos.
Uma vez mais, note-se, são as mulheres que tomam a iniciativa, oferecendo-lhe boleia para casa do narrador (Janice) ou disponibilizando mesmo a sua própria casa (Dora). Mulheres fortes, decididas, sem medo de exteriorizarem o que pretendem, de que a mulher de “Pitas Querem Guito” é exemplo extremado e agressivo. Diferentemente, no clima de romance naif que tempera “És Onde Quero Estar”, a pulsão sexual, embora latente, não é tão importante nem urgente, razão pela qual nem sequer é feita alusão ao “próximo destino”, ficando o ouvinte com esse poético e belíssimo quadro do muro com duas sombras beijando-se. Já em “Pitas Querem Guito”, onde o sexo, pelo contrário, é tudo o que está em jogo, embora não acompanhemos o percurso de saída do clube, sabemos que a mulher não rejeitará “um pingo doce numa suite” do Sheraton (se tudo se resume a sexo e dinheiro, naturalmente que ninguém quer levar ninguém para casa, o impessoal hotel basta).
Outro aspecto curioso é o meio de deslocação, comum a “6 Ta Feira” e “16/12/1995”, com que os dois abandonam o bar: de carro, em ambos os casos propriedade de Janice e de Dora. Há uma explicação mais óbvia para isto, claro: como é sabido, durante largos anos, STK nunca teve, voluntaria e até orgulhosamente, carta de condução e, por isso, naturalmente que não poderia ser ele a conduzir o carro (razão pela qual, aliás, em ambas as canções, o narrador vai para o local dos acontecimentos de “tarifa”, i.e., táxi). Aliás, o diálogo que, com muita ternura e humor, fecha “O Keu Sou” (Pratica(mente), reedição) ilustra isso mesmo: “Boy, és aquele tropa comodista, gostas que te vá buscar ao cubiko quando é para ir aos concertos, não queres tirar a carta de condução, não queres ter responsabilidades…”).
Mas, para além desta abordagem mais literal, há, nessa circunstância de serem as “mulheres ao volante”, um factor nada ignorável, a saber, a ideia de que ele, narrador, é que está a “ser levado”, não em termos literais (no sentido de deslocação), mas em termos metafóricos, na medida em que ele está a ser enganado, ludibriado, o que o coloca numa certa posição de fragilidade, de dominado (“Sou um fantoche, um fétiche que a Dora adora / O pendura que a Dora explora na viatura”), situação que vira autêntica “golpada” em “Isto Já é Cartão”. Vulnerabilidade masculina que é – escusado sublinhar – muito rara no hip hop, ao menos tradicionalmente (a mulheres como Nicki Minaj há que reconhecer, se não a qualidade da sua música, pelo menos o papel de empowerment da mulher na sociedade e no hip hop em particular, de uma importância que só a longo prazo vai ser compreendida em pleno), na medida em que é o homem que está sempre aos comandos e a mulher a mera súbdita subordinada ao seu poder e prazer. Aqui, não: é a mulher que conduz, que lidera, que acelera ou abranda conforme os seus humores, que “mete as mudanças”.
Mas o carro funciona também como factor de ameaça, de risco, de stress. De facto, ambas as mulheres que o conduzem estão alcoolizadas (como o narrador), o que eleva a tensão e agudiza o dramatismo, sobretudo em “16/2/1995”, onde Dora, além de uma mão no volante, tem a outra nos genitais do narrador. Depois, porque, em ambos os casos, a mulher tem o pé pesado (“Pisa e acelera / Diz que adora a adrenalina”), velocidade que, aliada ao álcool, coloca definitivamente o narrador em perigo. Uma vez mais, tal como vimos mais acima, não obstante a adrenalina e a excitação (sexual, inclusivamente) do momento, o narrador não se consegue desligar totalmente (“Ela já está apeada / Mas confessa que fica toda molhada a guiar mais depressa / Conversa fiada / é o pensamento que me vem à cabeça”). O rumo que os carros tomam é distinto: em “6 Ta Feira”, os dois dirigem-se para Chelas, casa do narrador; no segundo caso, seguem para os Olivais, onde Dora vive com os pais (“É a Dora dos Olivais e hoje está sozinha, os pais estão fora”).
O clímax é simultaneamente narrativo (o final da história e a moral que o acompanha) e, no caso de “16/2/1995”, sexual (o narrador ejacula no momento em que se dá o acidente) e “existencial”, pois, em virtude do acidente, a vida do narrador nunca será a mesma. Literariamente falando, é quase um “falso” clímax ou, melhor dizendo, um clímax em falso, porque marcado pela separação das duas personagens, que não chegam, assim, à concretização sexual do desejo acumulado. Em “16/12/1995”, a pulsão sexual é travada, no seu auge (orgasmo), pela violência do embate do carro e pela morte de Dora: prazer sexual e morte de mãos dadas, tema fundamental de tanta filosofia e de tanta arte [para não ir mais longe, pense-se em Ai no korîda (O Império dos Sentidos, 1976), de Nagisa Ôshima]. Em “Solteiro”, diversamente, o clímax sexual aconteceu efectivamente (“Hoje acordei com uma desconhecida”), mas na noite anterior ao dia em que se inicia a narração.
Nas duas canções que temos vindo a analisar, o que temos é um clímax marcado por uma conclusão mais ou menos trágica, em todo o caso passando ao ouvinte uma lição de moral – não de moralismo, entenda-se –, na melhor tradição do conto tradicional. Em “6 Ta Feira”, a moral é, no fundo, a subjacente ao adágio “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, no sentido em que Janice se fez oportunisticamente passar por interessada em ter um affair com o narrador quando, na verdade, apenas está interessada em ficar com o seu trabalho. Há, aqui, reminiscências de outro célebre storytelling de STK, “O Recado”, mais precisamente, no jogo de valores implicado no comportamento da personagem de Janice: STK confiou nela (Confiança), mas ela só lhe queria roubar o seu trabalho (Ganância), o que faz com que STK a despreze e a insulte (ele “perde-lhe” o Respeito). Esta tríade de valores é novamente posta em cena em “Isto Já é Cartão”, onde STK e Regula são completamente ludibriados pela Ganância de Zé Garcia (o promotor do concerto) e suas comparsas (Rute e Tânia): Zé Garcia chega a dizer a Regula que pode pagar-lhe o cachet ainda antes do concerto, mas Regula, confiando, diz que não é necessário…
Em “16/12/1995”, a moral está bem explícita quer no início como no epílogo da canção (“A tua vida será um longo e amplo êxito / A menos que tu próprio tenhas quebrado um tal destino”; “De repente veio-me o flashback desse dia / Se soubesse, tinha ido com a Sofia”). O fatum, o grande Destino: os rumos que tomamos na vida, o que sacrificamos e deitamos fora, os sonhos que viram pesadelos, as ilusões em que, não obstantes as lições que a vida nos dá, insistimos, os riscos de toda e qualquer decisão… Na primeira parte, o narrador acaba a dizer que mais valia ter ido ao Alcântara-Mar (assim evitando um casamento e uma vida infelizes); na segunda, que devia ter antes ficado com a Sofia nessa mesma noite (desse modo escapando ao acidente que o deixa paraplégico). Em que ficamos? STK dirá, anos mais tarde, em “Langaife” (com Regula), algo que terá passado despercebido à maioria dos ouvintes: “Pratica(mente) investi num CD e um gajo safou-se / Para não ter nenhum destino que eu li na faixa 12”. Faixa 12? Pois, a faixa “16/12/1995” de Pratica(mente)… Enfim, nestas coisas, não há respostas certas: somos seres eternamente insatisfeitos e nunca sabemos ao certo o que nos espera e o que nos fará mais felizes…
Para terminar, um breve comentário sobre a diferença de sonoridades de cada um dos instrumentais, tendo presente que “6 Ta Feira” é produzida por DJ Kronic e “16/12/1995” pelo próprio STK. Na segunda parte de “16/12/1995”, o tom global é tenso, nervoso, furioso, claustrofóbico (ou não estivesse em causa o tema do “Destino”), indiciando, de alguma forma, o desfecho trágico que se foi pressentindo ao longo da narrativa. Já em “6 Ta Feira”, a sonoridade é distendida, fumarenta, opiácea mesmo, mas, acima de tudo, profundamente noctívaga. Afinal de contas, é sexta-feira e o narrador também quer gozar do ócio inerente ao fim de mais de uma semana (se bem que, para os artistas ou criadores em geral, o período de trabalho não corresponda à semana laboral da maioria das pessoas, isso mesmo resultando dos primeiros versos da canção: é sexta-feira e o narrador está a tentar compor uma letra, a trabalhar, portanto).
STK sabe adaptar-se na perfeição a esta diversidade de ambientes sonoros, trabalhando e explorando o instrumental consoante aquilo que ele sugere ou deixa em aberto, jogando com o espaço (interiores-discoteca/exteriores-rua, numa aproximação, mais uma, à gramática da realização cinematográfica) e as emoções, bem como iluminando ou obscurecendo, através da palavra, a acção, tal e qual o realizador que trabalha com a luz e a sombra para sugerir ou favorecer determinada emoção ou estado de espírito (de resto, a utilização da luz é, historicamente, uma das grandes alavancas disruptivas da história do cinema, de que o expressionismo alemão é exemplo paradigmático). A própria vocalização (o modo como as palavras são ditas, entoadas, exprimidas) se harmoniza com a textura dos instrumentais, sendo muito mais incisiva e ansiosa em “16/12/1995” do que em “6 Ta Feira”, fruto, naturalmente, da maior carga dramática latente na primeira. Finalmente, e para fechar com nova evocação cinematográfica, se quisermos pensar em termos de “filme de género”, arriscaríamos dizer, então, que se, em “6 Ta Feira”, a atmosfera é de suspense, é de um film noir, angustiado e aflitivo, que falamos em “16/2/1995”.