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Fotografia: João Santos
Publicado a: 03/08/2022

Texturas e ritmos unidos em intensidade.

777negative111: “Ver Ben Frost e William Basinski no Amplifest foi game-changing para mim”

Fotografia: João Santos
Publicado a: 03/08/2022

Em 2015, João Faria encontrou o seu caminho musical, estreando-se discograficamente três anos depois, sob o pseudónimo 777negative111, com I am aware of our futile existence, em que se aventurou pelas nuances mais densas e contemplativas da música electrónica (desde o ambient ao noise). Após um segundo EP dentro do mesmo registo (I don’t need this place, de 2019), Faria decidiu abranger progressivamente a sua sonoridade a estilos à base de batidas como o techno ou a música industrial nos lançamentos seguintes, Dysthanasia (também de 2019) e Tower Of Glass (2020). 

Após dois anos de abrandamento – mas não total, tendo durante este período criado Duum, um alter-ego criativo de natureza similarmente experimental, assim como a label Tribunal Of Penance, assente na procura de formas inusitadas de distribuir conteúdo musical –, 777negative111 regressa agora aos discos com Like clockwork in a glass frame, transparently consistent patterns at work, representando o culminar da conjugação estética que iniciou nos EPs anteriores.. Este projecto (que podem ouvir em primeira mão no Rimas e Batidas) sai com o carimbo da Alienação, editora liderada pelo DJ alentejano João Melgueira que, desde 2016, tem servido de rampa de lançamento de diversos nomes emergentes da mais aventureira música electrónica feita em território nacional, tais como Farwarmth, Império Pacífico, 2JACK4U, MUDDO (aka Maria) ou PURGA. Faria é um produtor que não fecha portas a novos desafios, algo que mostra ser bastante evidente em conversa com o ReB. 



Para começar: quem é 777negative111 e como se construiu o percurso deste projecto?

Inicialmente não me apercebi disso, foi bué natural, mas eu descobri ao longo dos anos que sempre tive um contacto muito íntimo com a música electrónica nas suas várias vertentes, desde a mais dançável para a mais ambient e mais abstracta, isto tanto através da música como através de videojogos, filmes, etc., mas era uma coisa que, se calhar, era mais uma presença de barulho de fundo, ‘tás a ver? O clique fez-se quando eu fui ao Amplifest e vi Ben Frost e William Basinski, e pensei: “isto é-me bué familiar, mas ao mesmo tempo isto é bué game-changing na minha cabeça”. Eu ainda estava muito formatado numa ideia de que a música se fazia através de uma banda e, quando vi esses dois artistas fazerem tanto individualmente e com música electrónica, foi fascinante para mim, então a partir daí comecei a querer descobrir mais cenas, fui ouvir mais cenas. 

Antes disso, era vocalista em três projectos de música, todos em géneros diferentes, mas nada que se tivesse desenvolvido muito, porque havia sempre um problema a nível de decisões artísticas, tipo, eu tinha sempre uma ideia muito específica do que é que gostava de fazer como vocalista e as outras pessoas tinham sempre ideias completamente diferentes; por isso, ao ver o William Basinski e o Ben Frost, fez-se o clique na minha cabeça e, nesse mesmo ano, comecei a tentar fazer música por mim mesmo. Acho que o meu primeiro EP é basicamente a cena mais raw que eu acabo por ter, porque ainda estava a tentar descobrir aquilo que me fazia sentido e também a explorar tudo o que conseguia fazer com os instrumentos que eu tinha: aprender a mexer no Ableton, nisto e naquilo… A partir daí, eu ia já para as coisas com um objectivo mais delineado, “ok, quero transmitir isto, quero que a pessoa ouça isto e seja transportada para este mundo que eu ‘tou a criar”. Como não tive formação musical, eu não tinha a cena de escalas, de compor isto ou aquilo, portanto era do género, “‘tou a sentir bué uma cena hoje, deixa ver se consigo transmitir isso para um drone [risos], ou para uma cena esticada durante 17 minutos, vai aos pedacinhos, mexendo e sendo diferente.” 

E como é que isso se traduziu eventualmente para esta vertente mais rítmica?

Epá, eu sempre gostei de música muito ritmada, dou por mim e ‘tou sempre a bater o pé, a fazer um ritmo, sou um metrónomo, basicamente… e foi engraçado, foi em conversa com um grupo de amigos meus na altura — eu tinha acabado de lançar o segundo disco, o I don’t need this place, e eles perguntaram-me porque é que não tentava meter uma batida nas minhas cenas. Já tinha pensado nisso, até porque a primeira música do primeiro EP tem alguma batida, mas é literalmente a única nesse disco, e depois nunca mais toquei muito nisso, e fiquei  a pensar que, se calhar, os meus amigos tinham razão; para além disso, coincidiu que na altura ‘tava a consumir muita música industrial japonesa, que tem uma vertente muito de batida, muito mecânica e que, de certa forma, se aliava um pouco àquilo que eu já fazia a nível de textura, por isso acabou por ser uma combinação que resultou, e a primeira vez que eu tentei uniformizar isso foi no disco Dysthanasia, embora ainda me encostasse muito àqueles drones e músicas de 10, 15, 16 minutos [risos]. Desafiei-me a mim mesmo para conseguir fazer uma música só com 3 ou 5 minutos, e no Tower Of Glass já fiz um EP quase todo à volta dessas durações e com composições mais tradicionais, onde se percebesse mais que há princípio, chorus e fim, pelo menos senti isso. Foi com esse último disco que, pela primeira vez, me sentei à frente do Ableton e comecei a mapear e a planear as coisas, ainda muito por feel – se houvesse uma passagem ou um ritmo awkward, eu iria fazê-lo na mesma se me fizesse sentido. Na altura foi daqueles discos que eu completei e fiquei 100% contente com o trabalho, e foi o primeiro em que não senti que houvesse algo a mudar; esse até foi o primeiro disco que eu mandei masterizar, por isso foi a primeira vez que eu investi mais dinheiro da minha parte, paguei a um rapaz que é o Mestre André e, epá, senti a diferença [risos].

A partir daí, as coisas têm estado um bocado mais paradas, também tive um desgosto electrónico que me desmotivou um bocado, basicamente tive um acidente com o meu hard drive e perdi literalmente tudo o que tinha, por isso já não há projectos antigos de música que eu tinha; já tinha começado o Like clockwork… o ano passado, mas com essa cena fiz uma pequena paragem neste projecto até que o João Melgueira veio falar comigo e me disse, tipo, “olha, mandaste-me este som [‘Fortress Of Fear’] o ano passado, bora lançar uma cena este ano, faz a estética toda mais ou menos em volta desse som, eu curti bué”. Eu já tinha falado com o João há uns valentes anos, numa noite em que ele ia passar som no Eka Palace e ficou falado que tínhamos de lançar qualquer coisa na Alienação; passaram, tipo, quatro anos e a gente ia falando e trocando bué cenas, e um dia ele telefona-me e é tipo “é agora, bora fazer agora”. Agarrei em mim, cheio de vontade outra vez…  

Like clockwork… conta com um remix de “Division Of Creative Control” por parte de Menino da Mãe. Como se deu esta colaboração?

Eu conheci o Bertrand num dia em que ambos tocávamos no Desterro, ficámos a falar no bar bué tempo depois do meu set, e chegámos à conclusão que afinal já nos conhecíamos há uns anos por intermédio de outro pessoal. Fomos sempre falando, trocávamos bué mensagens no Instagram, eu fui a um espectáculo que ele deu no ano passado, a apresentação do disco dele foi fenomenal — dos poucos concertos que eu vi o ano passado, para mim foi o melhor –, e é uma pessoa pela qual eu mantenho sempre imenso respeito artístico, por isso juntou-se o útil ao agradável, fiz-lhe o convite e ele aceitou de imediato fazer a colaboração. Dei-lhe toda a liberdade artística de fazer o remix para qualquer género que ele quisesse fazer e, quando ouvi, ya, ‘tava mesmo on point, o que eu imaginei foi o que ele fez, basicamente [risos].



Criaste Duum, um projecto paralelo onde “nada seria demasiado experimental ou estranho” no respectivo processo de criação. Embora recorras a linguagens que não se encontrem presentes em 777negative111 – como o vaporwave, por exemplo –, ambos os projectos assentam, à sua maneira, numa abordagem relativamente experimental e abrangente da música electrónica. Como defines a linha que separa a identidade estética de cada um?

Eu cheguei a uma altura em que, ao incorporar mais batida na minha música, tendo ao mesmo tempo aquela itch para fazer uma cena mais ambient ou até puxar para uma cena mais harsh noise, comecei a perceber que não queria estar a pensar: “ora, um EP vai ser mais assim industrial ou cair para o techno, e o EP seguinte vai ser outra vez noise, ambient, com um bocadinho de batida”. Foi aí que achei que precisava de separar as coisas. Com 777, preocupo-me um bocado com a minha evolução sonora no sentido em que, como fiquei tão contente com o Tower Of Glass, durante muito tempo sentia-me frustrado com todos os sons que eu estava a fazer, porque nada me sabia bem o suficiente ou parecia ser uma espécie de continuação a partir desse disco. Por isso é que com Duum se quiser fazer um desvaneio, ok, vou fazer. É aquela cena: eu tento sentir uma espécie de trademark com 777 que neste momento é uma cena mais noisy, com uma batida estranha lá para o meio, e em Duum tanto posso fazer um álbum de ambient como um álbum de harsh noise, ou de vaporwave com cenas portuguesas, ou cenas mais conceptuais, como é também o caso de um disco em que transformei executáveis de jogos que joguei na minha infância em binário e traduzi o binário em som e o som foi distorcido para criar um EP de harsh noise. Por isso, sim, Duum é mesmo aquela cena que eu não sinto que tem de seguir um certo género musical, posso fazer o que quiser — se eu aprender a tocar uma concertina, posso fazer um EP de concertina lá também, é mesmo para eu fazer o que quiser.

Tens também a tua própria label, a Tribunal Of Penance, que aparenta apostar na experimentação não apenas no catálogo a lançar como também na forma como o lança: o primeiro disco da mesma (S/T, de Death Posture, editado no mês passado) encontra-se disponível no formato físico de uma disquete! Embora recente, como tem sido o feedback a este tipo de estratégia?

Epá, correu bué bem… Só para perceberes o trajecto, a Tribunal Of Penance é um nome de um EP de Duum onde faço recortes de bué entrevistas e músicas, que foi uma cena que eu criei durante a primeira quarentena de forma a me relembrar a mim mesmo e a registar que estamos a passar por uma altura bué má e estranha neste momento, mas também já aconteceram outras que nós superámos e olhamos para trás pensando nas coisas boas dessa altura e não nas más, e o disco chama-se Tribunal Of Penance enquanto sinónimo, digamos, do fim do mundo, que era o que muita gente achava na altura. Neste período, eu falava com malta amiga, dizendo que curtia fazer uma label onde, para além de lançar artistas que eu goste, do trabalho que eles fazem e da sua estética, também pudesse fazer concertos ao ar livre ou em sítios abandonados e gravar esses concertos, de modo a apresentar música de outra forma, digamos assim, e levar as pessoas a uma experiência diferente. Mas demorou dois anos até eu ganhar a força de vontade suficiente para querer materializar tudo, e o primeiro projecto que eu fiz com o Death Posture, que é um amigo meu, o Døni, eu disse-lhe que Tribunal Of Penance, para além dos objectivos que referi anteriormente, também iria ser usada para lançar as cenas que eu ‘tava a fazer em Duum em formato físico, porque cada vez que faço um disco de Duum quase que penso primeiro no objecto para depois a seguir criar o som que vai concretizar esse objecto; quando referi ao Døni que queria fazer lançamentos em formatos considerados mortos, ele gostou da ideia. Correu super bem: passado uma hora de eu lançar a cena, já não tinha mais disquetes, vendi todas, algumas para o estrangeiro. Entretanto, tenho que balançar até Outubro mais seis artistas: dois americanos, um sul-coreano, e dois projectos de Duum (um destes vai ser um split com um artista português). Isto passou de uma cena que eu ia criar praticamente só para lançar cenas físicas de Duum e agora de repente tenho pessoas que querem trabalhar comigo porque curtiram da ideia da forma como eu ‘tou a vender-lhes a música digital…

Tu estás a comprar a música da pessoa, mas não estás a comprar nada mais do que uma edição de coleccionador de um código digital do Bandcamp, porque estas disquetes não funcionam, elas têm o código do Bandcamp e estão numeradas à mão de 0 a 10, por isso isto, como eu escrevo na descrição, é um token, basicamente ‘tás a comprar só um pequeno merchandise do artista e metes depois o código no Bandcamp. Eu pensei um bocado naquela cena do tipo: conheço tanta gente que compra os CDs, as cassetes, whatever, e às vezes nunca ouvem, porque compram só porque gostam e querem apoiar e comprar um collectable desse artista, e eu pensei muito nisso. Vendo o álbum digital através de uma cena que é handcrafted por mim, e depois tento sempre conciliar a minha ideia com a ideia que o artista tem. Vou lançar cenas em disco rígido — isto já é um pequeno sneak peek [risos] –, em mini-disks, tudo o que sejam aqueles formatos muito fora, eu vou querer pegar neles e dar-lhes algum meaning e, acima de tudo, quero criar pequenas edições de coleccionador e não fazer muitas unidades, porque isto depois para mim também é muito time consuming, e o pouco que recebo disto é posto de lado para investir mais nas cenas da label. Nem quero tirar ganho próprio do lucro disto, ‘tou a fazer isto mesmo só porque vou gostar de ver música de artistas que eu gosto lançada em cenas que vou gostar de fazer. Até agora a recepção foi bué fixe, a malta toda curtiu bué, e tive já bué artistas a fazerem reach out to me para quererem lançar cenas comigo com este conceito. Ironicamente, eu tive tanto tempo a empurrar isto para a frente, porque não tinha paciência, e agora ‘tou bué into it; demorou, mas ‘tou a curtir bué.

Este disco surge num período onde outros artistas dentro do panorama nacional independente exploram esta união entre o lado mais mexido e o lado mais abrasivo da música electrónica – o primeiro exemplo que me vem à cabeça é o da Capital Decay, que aposta na corrente EBM através de nomes como Kara Konchar ou Hangloser. Sentes que possa existir uma maior adesão a esta vertente musical em Portugal?

Penso que sim, pelo menos a reacção que já tive ao meu disco anterior foi um bocado nesse aspecto e desde 2020 até agora vejo ainda mais malta a ouvir este tipo de som, mais do que nunca. Por isso, sim. Nós acabamos sempre por ir buscar inspirações às coisas que ouvimos, quer queiramos quer não… E além de haver espaço para esse som, acho que ainda há muito para dar dentro desse género a nível de todos os artistas que temos cá a fazer isso e acho que é só, tipo, o início de uma nova fase a nível de música electrónica que, na minha opinião, ainda vai dar muito para dar, pelo menos cá em Portugal, que isto lá fora já é uma cena há muito tempo, mas parece que a malta ‘tá agora a pegar nisso com força, e com amor, o que é fixe de se ver.


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