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Publicado a: 30/05/2018

6 mestres dos samplers que elevaram a fasquia do hip hop

Publicado a: 30/05/2018

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTO] Maria Jose Govea/Red Bull Content Pool

O hip hop americano independente assistiu a um notável florescimento de novos produtores ao virar do milénio, alguns dos quais exploraram novas sonoridades enquanto outros se mantiveram fiéis à velha escola com que cresceram. No entanto, todos eles são figuras interessantes e carismáticas que merecem ser acompanhadas. Escolhemos seis deles e revemos brevemente os seus percursos e a estética individual de cada um.

 


[Madlib, Filho do Jazz]

Nascido e criado na Califórnia, as suas raízes já faziam prever o seu futuro na música: Otis Jackson Jr. (nome verdadeiro de Madlib) é filho de Otis Jackson, Sr., cantor de soul e R&B, e Dora Sinesca Faddis-Jackson, pianista que escrevia a música do seu esposo (e o seu tio, Jon Faddis, é um conhecido trompetista de jazz). Madlib cresceu no estúdio do seu pai, absorvendo uma miríade de influências musicais.

Curiosamente, embora oriundo da Costa Oeste, Madlib desde cedo evitou os clichés do g-funk sintetizado de Dr. Dre e companhia, e optou por uma sonoridade mais orgânica e analógica (feita sem computadores, com recurso a equipamento antigo e horas de digging), que deve muito mais ao jazz rap de Nova Iorque. É conhecido o seu amor ao jazz, demonstrado não apenas no seu famoso álbum de remisturas para a Blue Note, Shades of Blue, mas no seu projecto a solo, Yesterday’s New Quintet, em que toca todos os instrumentos, sob pseudónimos como Monk Hughes e Ahmad Miller, e o seu voraz e ecléctico apetite musical (descreve-se como “DJ em primeiro lugar, produtor em segundo e MC por último”), que o levou a criar duas séries de hip hop instrumental que funcionaram também como diários das suas viagens pelo mundo em busca de novas paisagens e nova música: Beat Konducta e Medicine Show.

No meio disto tudo, ainda teve tempo para criar uma das personagens mais estranhamente carismáticas do hip hop: Quasimoto, alter-ego de voz alimentada a hélio com propensão para o vandalismo, um vício em marijuana e um fascínio pela voz de Melvin Van Peebles.

E não esqueçamos as suas colaborações com figuras de peso do hip hop alternativo, nomeadamente o flow imparável do homem da máscara DOOM no clássico Madvillainy (que mereceu atenção redobrada aqui) e o mestre J Dilla em Champion Sound.

O seu bom gosto, pendor experimental e originalidade fizeram dele um dos mais respeitados produtores americanos do século XXI.

 


[RZA, Ressuscitador de Cultura Oriental]

RZA (um dos inúmeros pseudónimos de Robert Diggs, nativo de Brooklyn) é conhecido por ser membro fundador dos Wu-Tang Clan (e visto como o seu líder, tendo produzido a maioria das músicas e decidido quem entrava nelas).

A sua produção no álbum de estreia dos Wu-Tang, Enter the Wu-Tang: 36 Chambers, definiu o seu estilo, amplamente imitado na comunidade hip hop (por gente como Kanye West e Just Blaze): batidas cruas, esparsas, pesadas e intimidantes, entre-cortadas por samples de soul de pitch alterado (muitas vezes a extremos, como se o intérprete original tivesse gravado a canção depois de inalar hélio) e excertos de diálogos de filmes antigos de kung fu. Mas a sua sonoridade também evoluiu com o tempo. Enquanto no início dependia quase exclusivamente de sampling, veio a desenvolver um fascínio por teclados, patente no seu clássico “La Rhumba”.

Foi com os Wu-Tang que deu a conhecer ao mundo a sua mistura única de sensibilidades hip hop com a cultura e sabedoria orientais e o cinema de kung fu, mas a sua obra foi mais longe.

Além do colectivo de Staten Island, é de destacar que RZA foi ainda membro de outro grupo célebre da história do hip hop, os Gravediggaz (com Prince Paul, Frukwan e Poetic), pioneiros do horrorcore, um subgénero do rap conhecido pela negritude do seu conteúdo lírico e sonoridade agressiva.

E por ser de música independente que falamos, também colaborou com o cinema independente, sendo conhecida a sua parceria com Quentin Tarantino (compôs música para os dois volumes de Kill Bill) e Jim Jarmusch, nomeadamente a sua inesquecível cena em Coffee & Cigarettes, em que contracenou com Bill Murray e o seu parceiro GZA, e a banda sonora (de edição exclusiva em mercado japonês) de Ghost Dog: The Way of the Samurai, bem como a da série de anime japonesa Afro Samurai.

A sigla que lhe serve de nome artístico é abreviação de ressuscitador, e o que Bobby Digital ressuscita são vozes antigas de soul e samples de música japonesa esquecida pelo tempo, como a da sua banda sonora de Ghost Dog.

 


[Stoupe the Enemy of Mankind, maestro do hip hop sinfónico]

Mais conhecido como membro dos Jedi Mind Tricks, grupo underground horrorcore de Philadelphia, Kevin Baldwin sempre foi uma figura obscura, permanecendo no subsolo e trabalhando com um pequeno grupo de emcees escolhidos a dedo, como Guru e Canibus, conhecidos pelas suas letras tão complexas como as suas produções.

A sua sonoridade é, por um lado, negra, densa e claustrofóbica (como é típico do horrorcore), mas também sinfónica e atmosférica, envolta em mistério e melancolia, fazendo uso de música clássica, pop europeia e latina dos 70s, e bandas sonoras de cinema fantástico, misturada com trechos de poesia e filmes de Hollywood, em cima de ritmos pesados e intensos, e refrões plenos de scratch à Premier (como o de “Blood In Blood Out”), o perfeito acompanhamento sonoro para as letras violentas, paranóicas e intimidantes de Vinnie Paz.

É de notar que no terceiro álbum do grupo, Visions of Gandhi, expandiu o seu estilo, usando cordas de easy listening e guitarras e concertinas espanholas de boleros e tangos.

São suas as brilhantes batidas de “I Against I”, com teclas delicodoces cortesia de Cal Tjader, e “Heavenly Divine”, com violino plangente de Yo-Yo Ma.

Dotado de um ouvido único para melodias, bom gosto, apetite por música obscura e a ambição de um experimentalista, Stoupe the Enemy of Mankind é um dos mais reputados produtores do underground norte-americano.

Uma nota final para os viciados em descobrir samples: lembramos que é deste senhor a batida de Canibus, “M-Sea-Cresy”, que sampla os nossos Madredeus.

 


[EL-P, futurista do hip hop]

Para fãs mais recentes, EL-P é mais reconhecido como metade dos Run The Jewels (com Killer Mike), mas o seu percurso pode ser traçado até muito antes.

Nascido em Brooklyn, filho do pianista de jazz Harry Keyes, Jaime Meline começou por estabelecer a sua reputação em meados dos anos 90 enquanto membro dos Company Flow, trio inovador cujo álbum de estreia, Funcrusher Plus, foi aclamado pela crítica, não apenas pelas suas letras, complexas e aterrorizadoras, mas pela sua produção (de que falaremos adiante), provando os talentos de El-P tanto ao microfone como atrás da mesa de mistura.

Depois de ter colaborado com Blackalicious, Mos Def e Dilated Peoples, produziu o álbum de estreia dos Cannibal Ox, The Cold Vein, e fundou a Definitive Jux, uma das mais importantes editoras de rap independente/underground, casa de gente como Aesop Rock e RJD2.

O milénio continuou com o início da sua carreira a solo, e álbuns como Fantastic Damage, de 2002, High Water, de 2004, e I’ll Sleep When You’re Dead, de 2009, cimentaram a sua reputação junto da crítica e dos fãs de rap dotados de maior discernimento.

Em 2013 fundou os Run The Jewels com Killer Mike, e ofereceu-nos três álbuns daquilo a que Neil Z. Yeung chamou de “excesso hiperbólico – tanto em atitude como em som”. As batidas são uma mistura de trap com dubstep (cortesia da clássica 808), acompanhadas de texturas electrónicas, baixos espessos e noise industrial, semelhante ao seu trabalho anterior, embora mais polido.

A sua sonoridade é minimalista, densa, agressiva, claustrofóbica e artificial (“fria e desumana”, no dizer de Steve Huey), devendo tanto à música electrónica como ao universo da ficção científica, atacando os nossos ouvidos com um arsenal de riffs de guitarra eléctrica, sintetizadores de antanho, órgãos de igreja, e uma série de ruídos distorcidos e abrasivos em cima de batidas lo-fi industriais, deixando para trás o jazz e o funk e refrões cantáveis. Afinal, foi ele que samplou tanto o glitch abstrato dos Oval como a eletrónica sequencial de Steve Roach.

Ícone do rap alternativo, descrito como “um dos pioneiros mais obstinados e aventureiros do hip hop, combinando uma estética lo-fi de velha escola com a inclinação para quebrar os limites de um músico de rock progressivo”, é um dos estetas mais valorizados da vanguarda do hip hop underground americano.

 


[Blockhead e o seu hip hop cinematográfico]

James Anthony Simon é o nome verdadeiro de Blockhead, produtor oriundo de Manhattan mais conhecido pela sua prolífica parceria com Aesop Rock e outros artistas do coletivo Definitive Jux como Murs e Cage. Mas é também autor da sua própria marca de hip hop instrumental, que lançou em editoras como a Ninja Tune e a Mush.

A sua música tem a qualidade cinematográfica de estetas como DJ Shadow ou RJD2, e de artistas da electrónica que fazem ocasionais incursões pelo hip hop, como Luke Vibert, entrando por vezes no campo das bandas sonoras (e do trip-hop, que já foi chamado de “hip hop cinematográfico”). Exemplo disso é o seu brilhante “Insomniac Olympics”, do seu álbum de estreia, Music by Cavelight, um monumento do hip hop instrumental, com batidas pesadas, quase de marcha militar, como ouvir as botas de milhares de soldados pisando as ruas de uma cidade vencida, em cima de loops sentimentais de piano e trompete e uma voz feminina plangente de pitch alterado.

E embora o seu primeiro álbum seja mais melancólico, Tony é também capaz de momentos mais leves, dançáveis e até humorísticos, como os de Uncle Tonys Coloring Book.

As suas batidas são exercícios caleidoscópicos daquilo que John Oswald apelidou de plunderphonics, fundindo tudo e mais alguma coisa, desde discos de comédia ao vivo, soft rock, jazz, funk e soul, e até música para meditação zen, demonstrando que poucos produtores há mais eclécticos do que ele, resgatando tudo o que foi esquecido pelo tempo.

O seu último projeto (acerca do qual conversou connosco recentemente) é The Art of The Sample, um tributo à library music do passado, feito diretamente a partir dos arquivos da De Wolfe, com autorização dos próprios e grafismo a condizer, semelhante ao que Madlib fez com o seu Shades of Blue.

Progressivo, experimental e prodigiosamente eclético, tal como DJ Shadow ou RJD2 antes dele, Blockhead elevou o hip hop instrumental a estatuto de arte e género musical legítimo, provando que as batidas sobrevivem bem sem os talentos vocais de um rapper.

 


[Necro, músico snuff]

O último desta lista é também o mais negro. Necro (da canção “Necrophobic”, dos Slayer), nome artístico de Ron Raphael Braunstein, produtor/rapper nova-iorquino de raízes judaicas, é conhecido pela qualidade das suas produções e cuidado na escolha dos seus samples. Claramente afiliado a uma estética horrorcore (a começar pelos títulos dos seus álbuns e músicas, como “The Sexorcist”, “Death Rap” ou “Bury You With Satan”, que evocam tanto o cinema de terror de baixo orçamento como o universo do death metal), as suas batidas são pesadas e sinistras, com breaks de bateria agressivos caminhando em cima de loops funéreos e “linhas de baixo distorcidas de death metal”.

Como nos é revelado na sua biografia, embora tenha sido inicialmente influenciado por mestres da era dourada como Pete Rock, Premier ou Large Professor, transcendeu-os através da sua maior virtude, o seu ecletismo. Além do habitual jazz, funk e soul, Necro foi escavar a bandas sonoras obscuras de cinema fantástico e filmes de culto para compor as suas paisagens sonoras infernais, em busca de violinos funestos e pianos ominosos, aproveitando também a sua experiência juvenil enquanto guitarrista de uma banda de death metal para tocar as suas próprias linhas de baixo, que compensam por vezes a sonoridade mais lo-fi de algumas produções, sobretudo as de início de carreira, feitas com equipamento amador. Não é surpresa, por isso, que tenha sido recrutado por Cage para o seu EP de estreia, Agent Orange/Radiohead, e pelos Non-Phixion para vários dos seus álbuns.

Criador do seu próprio género musical, a que chamou de “death rap” (fusão de death metal com rap), Necro sempre foi mais dotado (e respeitado) enquanto produtor do que letrista, o que explica o sucesso das versões instrumentais dos seus álbuns, bons para improvisar ou simplesmente para escuta isolada. Por isso, e pese embora o seu gosto dúbio e insaciável apetite por violência e sadismo, as suas produções reflectem um curioso mas inegável bom gosto, de alguém que se dedica seriamente ao digging em busca do loop perfeito. Exemplos disso são a sample de James Horner em “Futurama”, a pop japonesa de Liya Fang em “Black Helicopters”, a fúria de Ennio Morricone em “No Remorse”, ou o violino de John Lurie em “Violins of Violence”.

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