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Fotografia: Michael Ochs Archives / Getty
Publicado a: 23/07/2025

Um olhar sobre uma das mais importantes revoluções musicais da história.

1980: a idade do plástico

Fotografia: Michael Ochs Archives / Getty
Publicado a: 23/07/2025

Logo no arranque de 1980, os Buggles — grupo do mago de estúdio Trevor Horn que seria responsável por ajudar a definir o som e criar alguns dos maiores êxitos da década que então aí começava — declaravam que essa era The Age of Plastic. Para o grupo que de forma igualmente profética também nos garantia nesse mesmo álbum que o vídeo tinha sido responsável pela morte da estrela de rádio, essa Era de Plástico poderia traduzir diferentes estados de alma: por um lado, inaugurava-se aí um novo tempo de produtos descartáveis — “buy the fake and sell what’s real”, reza a letra da canção; por outro lado, este seria também o tempo da imagem, com as artes plásticas a ditarem — em capas de discos crescentemente simbólicas, em vídeos cada vez mais elaborados — uma mensagem tão ou mais importante do que aquela que as palavras poéticas tinham até então transmitido. 1980 marcava o arranque de uma nova década, mas bem poderia ter começado aí um novo milénio, tal a promessa de futuro que o ano carregava.

O álbum dos Buggles continha mais sementes de futuro: o seu intensivo uso de sintetizadores simbolizava igualmente a chegada de um novo pulsar à música, depois de, no ano anterior, Gary Numan, à frente dos Tubeway Army, ter provado com “Are ‘Friends’ Electric?” que melodias electrónicas podiam ser compatíveis com o topo das tabelas. Os sintetizadores não eram coisa nova e pelo menos há 10 anos que vinham impondo o seu ruído particular no universo da música popular. Mas se, num primeiro momento, os teclados electrónicos começaram por soar como emuladores exóticos de instrumentos clássicos — ouçam-se as versões de Bach a cargo do pioneiro Walter Carlos (mais tarde Wendy Carlos) — e depois se impuseram como mais uma ferramenta para músicos de destreza superior tentarem aproximar o rock das esferas mais eruditas — conferir, por favor, os maiores clássicos dos Yes e da horda do rock sinfónico —, com os alemães Kraftwerk ficou claro, sobretudo depois de Trans Europe Express de 1977, que o sintetizador poderia ser usado para criar uma nova linguagem musical, um novo tipo de pop, equidistante tanto do pulsar primevo do rock and roll, devedor da estrutura genética dos blues, como da narrativa poética dos “singer songwriters” inaugurada por cantores como Bob Dylan (que em 1980 parecia, aliás, desfasado dos favores do público que não acolheram muito bem a sua nova fé). A era do plástico era igualmente a era dos componentes electrónicos de que se faziam estes novos instrumentos e essa foi uma tendência que ficou logo clara para a indústria da música com a agenda editorial dos primeiros meses do ano.



[A era dos sintetizadores]

Além do primeiro trabalho dos Buggles, novos álbuns de John Foxx (o cantor original dos Ultravox que em Janeiro de 1980 lançou o clássico Metamatic de “Underpass”), Roger Powell (Air Pocket), Orchestral Manoeuvres in The Dark (álbum de estreia homónimo), Human League (Holiday ’80 e Travelogue) ou até Cameo (Cameosis) e Devo (Freedom of Choice) deixavam muito claro que este era agora, também, o tempo dos sintetizadores. As marcas perceberam isso muito bem, impondo no mercado máquinas cada vez mais baratas e, por isso mesmo, de impacto crescente: o modelo GS-1 da Yamaha, por exemplo, pioneiro na síntese digital (por oposição aos modelos analógicos que ainda dominavam na época, mas que eram bem mais caros), foi um antecessor directo do popular DX-7 que haveria de aterrar no mercado um par de anos mais tarde, ajudando a definir o som de toda uma década. O popular Trident, da Korg, ou a ainda hoje reverenciada caixa de ritmos TR-808, da Roland, foram outros dos lançamentos comerciais de 1980, produtos acessíveis para músicos que procuravam uma forma de abraçar novas linguagens musicais e dessa forma afastarem-se de tradições que na sua cabeça só os mantinham agarrados ao passado.

Por esta altura — num mundo de jogos de vídeo de arcada, computadores pessoais cada vez mais presentes ou de êxitos de ficção científica no cinema (Star Wars: O Império Contra-Ataca ou Flash Gordon chegaram ambos às salas em 1980) — a electrónica na música era uma inevitabilidade abraçada por toda a gente, dos Queen (que pela primeira vez renegaram o famoso “no synthesizers were used to make this record” e abraçaram o potencial da electrónica no álbum The Game e, sobretudo, na banda sonora de Flash Gordon) e dos 10CC aos Rolling Stones e a Paul McCartney (que agarrou o zeitgeist de forma perfeita em McCartney II, álbum do clássico de electrónica dançante “Temporary Secretary”). Mas uma guarda avançada, que além dos já citados OMD, Human League, Devo e Ultravox também incluía, com edições em 1980, os Joy Division, Cabaret Voltaire, Suicide, Quartz, Gary Numan, Japan ou Yello, seria de facto responsável por apontar o som do futuro.

Esta dependência crescente das máquinas fazia aliás algum sentido numa indústria musical a braços com sérios problemas, próprios das eras de mudança de paradigma, neste caso do analógico para o digital. Ultrapassado o impacto inicial do disco, em 1980 a indústria na América continuava a registar gráficos de curva descendente nas vendas, com menos 35 milhões de unidades despachadas nas lojas, o que levou a cortes de cerca de 2 mil e 500 postos de trabalho. Um olhar para o topo das tabelas americanas revelava os nomes de Kenny Rogers, Barbra Streisand, Captain & Tenille, Olivia Newton-John, Christopher Cross ou Billy Joel, enquanto que em Inglaterra Johnny Logan, Don McLean ou ABBA reforçavam o peso nas contas gerais de uma pop mais ou menos anódina, consumida sobretudo por gente de uma classe etária mais avançada. O que não significa que não houvesse outras correntes de fundo já em marcha, a prepararem o caminho para outras revoluções musicais que os anos seguintes haveriam de confirmar. A indústria discográfica procurava dessa forma medir o pulso às novas gerações, entender o que procuravam os mais novos para os seus gira-discos. E a curva não demoraria a inverter-se.

É possível identificar em 1980 três outras tendências de fundo — para lá do nascente synth pop — que haveriam de se impôr como marcas da década que então nascia. A primeira das quais resultava do impacto do punk em 1977 e revelava a ascensão da corrente liderada pelos Sex Pistols e pelos Ramones nas duas margens do Atlântico a uma dimensão claramente pop, compatível com as playlists das rádios que fabricavam hits e com os lugares cimeiros das tabelas de vendas.



[O som da nova vaga]

A new wave que ditaria o tom dos anos seguintes fez-se sentir em força logo em Janeiro com a edição do álbum de estreia dos Pretenders de Chrissie Hynde, uma banda que, ainda por cima, incluía talento americano e britânico nas suas fileiras, simbolizando portanto de forma muito clara a nova vaga que haveria de varrer as tabelas dos dois lados do Atlântico. Discos novos ou de estreia de bandas e artistas como os Ramones, The Cure, The Knack, Elvis Costello, Toyah, Squeeze, Psychedelic Furs, Iggy Pop, The Undertones, The Feelies, Magazine, Split Enz, Dexys Midnight Runners, Echo & The Bunnymen, The Vapors, Associates, Siouxsie & the Banshees, The Cars, B-52’s, Killing Joke, XTC, Simple Minds, Oingo Boingo, Skids, The Rezillos, The Police (que conseguiram lançar o single mais vendido do ano em Inglaterra com “Don’t Stand So Close To me”), Talking Heads, The Teardrop Explodes, INXS, Joe Jackson, The Clash, Gang of Four, The Fall ou ainda The Jam, Blondie e Adams and The Ants ajudam a compreender a movimentação clara das placas tectónicas da pop para a formação de novos territórios musicais.

Muita desta música conseguia então um espaço mais visível muito graças ao vigor das novas etiquetas discográficas, que de forma bem mais enérgica abraçaram as novas tendências descendentes do punk. Foi logo em Janeiro de 1980 que se publicou, na revista Record Week, a primeira UK Indie Chart, com os Spizzenergi de “Where’s Captain Kirk?” e os Adam and the Ants de Dirk Wears White Sox a reclamarem os lugares cimeiros das tabelas de singles e álbuns, respectivamente. Esta tabela reflectia uma nova rede de retalho de pequenas lojas — como a mítica Rough Trade — onde a música das nascentes editoras encontrava mais facilmente espaço do que nas cadeias estabelecidas nas high streets como a HMV ou a Tower Records. Se os gigantes da indústria em 1980 se debatiam ainda para perceberem em que corrente investir depois de verem a fonte do disco a secar, as indies agradeciam a oportunidade e com os ouvidos bem colados às ruas colocavam em pequenas, mas vibrantes lojas de bairro a música que haveria de ditar o pulsar do futuro.

Selos míticos como a 99 Records (ESG, Liquid Liquid, Maximum Joy ou Bush Tetras), Crammed (Minimal Compact, Tuxedomoon), Les Disques du Crépuscle (Anna Domino, Josef K, Paul Haig, Bill Nelson), o Demon Music Group (Ian Dury, The Beat), Dischord Records (The Teen Idles, Minor Threat), Epitaph (Bad Religion, The Vandals), Geffen (Donna Summer, John Lennon e Yoko Ono…), New Alliance (Husker Du, Minutemen), Qwest Records (selo de Quincy Jones, que lançou George Benson e Patti Austin e mais tarde distribuiu New Order no mercado americano), Roadrunner (casa dos primeiros lançamentos de bandas como Metallica, King Diamond ou Sepultura) ou a influente Y Records (etiqueta do produtor Dick O’Dell que lançou o Pop Group de Mark Stewart, as Slits ou os Pigbag e Shriekback) nasceram todos em 1980, aceitando com entusiasmo as possibilidades abertas por uma nova década de promessas tecnológicas que também tornavam a gravação de álbuns mais acessível em termos económicos, viabilizando assim visões mais alternativas.

Com associação directa à cena new wave, por um lado, e ao circuito independente, por outro, o movimento 2-Tone emergente do punk e do reggae também se cimentou neste ano com edições de The Selecter (Too Much Pressure), Bad Manners (Ska ‘n’ B e Loonee Tunes!), The Beat (I Just Can’t Stop It), The Specials (More Specials) ou Madness (Absolutely), com nomes grandes do universo jamaicano como Linton Kwesi Johnson, Bob Marley & The Wailers, Black Uhuru e embaixadores da cultura em solo britânico como os UB40 a lançarem trabalhos igualmente durante esse calendário.



[O peso do metal]

A segunda tendência que as listagens de edições de 1980 tornam bem nítida é a do metal: na década de 70, gigantes como os Black Sabbath ou Led Zeppelin tinham conseguido impor uma visão mais negra e pesada do rock, afirmando o peso dos decibéis numa equação muito particular que toda uma geração soube adoptar. Depois da explosão punk e da abertura de pequenos selos ter tornado possível contornar a resistência das editoras mais fortes, a new wave do metal britânico solidificou a posição destes mais extremos praticantes rock. O calendário de 1980 ficou por isso mesmo pontuado por diversos lançamentos — tanto de veteranos já com carreira feita como de newcomers sedentos de futuro — que ajudariam a estabelecer os pilares para um muito bem sucedido reinado metálico durante a década que aí nascia. Novos discos de bandas como os Rush, Wishbone Ash, UFO, Heart, Nazareth, Triumph, Van Halen, Scorpions, Judas Priest, Black Sabbath, Alice Cooper, Motorhead, Kiss, Whitesnake, Blue Oyester Cult, Sammy Hagar, Krokus, Ted Nugent, Hawkwind, AC/DC, Deep Purple, Thin Lizzy ou Gillan e estreias (ou segundos trabalhos…) de gente como Survivor, Angel Witch, Def Leppard, Iron Maiden, Witchfynde, Girlschool, Samson, Accept, Saxon, Tygers of Pan Tang, The Michael Schenker Group, Ozzy Osbourne e Fist asseguraram que não faltaria peso, cabedal, electricidade a rodos, faíscas e gritos em múltiplas frequências na banda sonora deste ano. E com impacto tanto no presente — Back In Black, o sétimo álbum na carreira dos australianos AC/DC e o primeiro com Brian Johnson, tornar-se-ia no mais vendido LP de sempre à época, sendo apenas ultrapassado, um par de anos depois, por Thriller de Michael Jackson — como no futuro — o primeiro álbum na carreira dos Iron Maiden escancarou as portas para uma carreira de tremendo sucesso que se mantém até aos dias de hoje.



[Da América negra ao Portugal pós-Abril]

A terceira e nítida tendência — para lá da emergência clara da electrónica — que o calendário de edições de 1980 revelaria era a da chegada a uma idade adulta da cena musical negra: a dinâmica social da América e a sua história particular ditou que na década que se seguiu à era do Movimento dos Direitos Civis só um punhado de artistas tenha conseguido impor-se realmente no mais vasto mercado pop — nomes como os de Michael Jackson, Marvin Gaye, Stevie Wonder, Diana Ross ou James Brown — com uma multidão mais vasta de nomes importantes, mas que raramente quebravam as pesadas amarras das tabelas de R&B a seguir a reboque. Em vésperas do nascimento da MTV, que viu Michael Jackson ser coroado Rei da Pop e que sustentou o crescimento imparável do hip hop que é hoje a corrente mais popular do planeta, a música negra conseguia espaço não apenas no calendário de lançamentos das principais editoras, mas também no topo das mais importantes tabelas de vendas de ambos os lados do Atlântico com sucessos assinados por Diana Ross, Spinners, Michael Jackson ou Odyssey. Discos importantes de bandas e artistas como Lou Rawls, Teena Marie, Smokey Robinson, Tavares, Roberta Flack com Donny Hathaway, Jermaine Jackson, Chaka Khan, Chic, Teddy Pendergrass, James Brown, George Benson, The Pointer Sisters, The Jacksons, Kool & The Gang, Stevie Wonder ou Aretha Franklin traduziram-se em soul, funk, disco e boogie de elevada qualidade a aterrar nas lojas e, sobretudo até, nos gira-discos de alguns dos mais importantes DJs do mundo. Mas foram as mais avançadas propostas musicais de nomes como Grace Jones, Rick James, Zapp, The S.O.S. Band, Kid Creole & The Coconuts, Kurtis Blow, Prince, Donna Summer, Bootsy Collins, Slave ou Parliament que conseguiram criar descendência, apontando caminhos que a pop ainda segue até aos dias de hoje.

Gary Numan lançou em 1980 a vídeo-cassete The Touring Principle ’79 sendo seguido, algumas semanas depois, por Blondie com Eat to The Beat. A primeira foi lançada no formato de VHS, a segunda em Beta, o sistema que haveria de perder a guerra do mercado home video. O que ambas as pioneiras propostas por artistas então emergentes provavam era que na década de 80 a música já não seria apenas para ouvir, mas também para ver. Quando a MTV apareceu um par de anos mais tarde encontrou terreno fértil para se impor tanto graças aos novos artistas synth pop e aos líderes do pelotão new wave que tanto Numan como os Blondie personificavam como na cena mais extrema do metal e nas imaginativas propostas vindas dos terrenos da música negra. Nesta idade plástica, o vídeo matou  de facto a estrela de rádio, pelo menos no sentido em que já não bastava a voz, era preciso também um rosto para a acompanhar.

E em Portugal? O mundo era um sítio diferente no Portugal de 1980. Seis anos depois da Revolução dos Cravos, a indústria musical era ainda um mero sonho na cabeça de alguns editores que, teimosamente, lá iam editando discos. Mas como um deserto quase absoluto de salas para concertos, com Portugal a pagar a factura do seu isolamento geográfico tornado ainda mais dramático por um regime em que se defendia a ideia do “orgulhosamente sós”, nada parecia muito fácil. Em 1980, um jovem executivo, de nome Francisco Vasconcelos, viu na greve dos músicos profissionais, cujo calendário laboral era ditado pelos ciclos do Festival da Canção, uma oportunidade para abrir as portas do estúdio que a Valentim de Carvalho tinha erguido em Paço de Arcos a uma nova geração de artistas, começando nos UHF com o single “Cavalos de Corrida” e em Rui Veloso com “Chico Fininho”, o single que anunciou com estrondo a chegada de Ar de Rock. Esse foi, de facto, o ano em que a nossa história eléctrica se alterou. Mas essas são contas de outro rosário…



Este artigo do arquivo de Rui Miguel Abreu foi originalmente publicado na Blitz.

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