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Publicado a: 11/06/2016

Jurassic 5: Feedback saiu há 10 anos

Publicado a: 11/06/2016

Os Jurassic 5 parecem estar de volta, como o Rimas e Batidas por aqui sublinhou. “Customer Service” marcou-lhes o regresso aos estúdios depois de há um par de anos terem respondido ao apelo dos palcos. E isso poderá significar que estão de volta aos discos, mas ainda nenhum sinal claro foi oferecido nesse sentido. O último álbum de originais do grupo continha a ser Feedback, editado há precisamente 10 anos, no Verão de 2006. Razão mais do que suficiente para este mergulho duplo nos arquivos de Rui Miguel Abreu: primeiro com um ensaio sobre o poder da memória que levou o título de “Eterno Retorno” e foi originalmente publicado na revista Op. e depois com a crítica que foi publicada na revista Blitz.

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos reservados

 

A questão da gestão da memória no terreno do hip hop é extremamente complexa e tem dado origem a autênticas cisões numa cultura que nasceu precisamente da construção de uma ideia de unidade. Os problemas surgem logo na identificação dos períodos – ou “escolas” – que fizeram e fazem a história do hip hop. Os equívocos gerados permanentemente pela expressão “old school”, por exemplo, surgem apenas pela incapacidade de se lidar com uma memória que só recentemente começou a ser documentada e cristalizada. Para um artista que editou o seu álbum de estreia na semana passada, “velha escola” são todos os seus companheiros de percurso com mais dois ou três anos de actividade. E para a maior parte dos seguidores do lado globalizado desta cultura, “old school” é o autocolante que se cola nos discos de todos aqueles artistas na colecção do irmão mais velho: coisas como Wu-Tang Clan, Onix, Gang Starr e Beastie Boys. A inclusão de um nome numa “velha escola” acaba portanto por dizer muito mais de quem assim o classifica do que de quem assim é classificado. Obviamente, esta incapacidade de estender a memória até ao ponto de origem está directamente ligada à forma encontrada pela modernidade hip hop para lidar com os seus pioneiros. Muito simplesmente: hip hop é negócio e gente como Kool Herc nada tinha para vender. Daí que pioneiros pouco documentados – ou pouco editados – sejam hoje meras notas de rodapé nos livros de história, não lhes sendo reconhecida a extrema importância na definição dos primeiros pontos de ruptura que formam a base da revolução que se lhes seguiu. Outro “pormenor”: a questão da idade – o hip hop ainda não percebeu como lidar com os seus anciãos e continua a vender-se como um som eternamente juvenil. Daí, muito provavelmente, os anúncios constantes de “reformas antecipadas”. Pelos vistos nem Jay-Z nem Eminem se conseguem ver como futuros Johnny Cashs do hip hop…


 

Can't_Stop_Won't_Stop


 

Jeff Chang escreve na introdução do seu espantoso Can’t stop, won’t stop – A history of the hip-hop generation que “as gerações são ficções. O acto de determinar um grupo de pessoas ao impôr em seu torno uma data de início e outra de final é uma forma de impôr uma narrativa.” E, neste sentido, Afrika Bambaataa foi o primeiro narrador da cultura, definindo a festa do primeiro aniversário da criação da Zulu Nation – a 12 de Novembro de 1974 – como o Big Bang deste universo que, como o de Hawking, ainda hoje se encontra em expansão. Bam deu uma data de nascimento ao hip hop, logo uma baliza para a memória. No entanto, a história tem sido reescrita incontáveis vezes e talvez o surgimento de sub-culturas específicas ligadas ao hip hop – crunk, hyphy, grime… – seja enfim o resultado de uma tentativa de fazer “reset” à história, procurando um novo ponto de origem, mais próximo e portanto mais facilmente maleável. Equaciona-se frequentemente a novidade com invenção e o veteranismo com imutabilidade e estagnação. Um erro grosseiro, como é óbvio.


 

https://www.youtube.com/watch?v=NAMy2wgwVh0


 

Não existe conservadorismo no hip hop. Ou talvez exista, mas não onde se possa pensar. Não é nos cultores de um groove primordial, capazes de harmonizar refrões por cima de batidas impregnadas de funk que se devem procurar sinais de um reaccionarismo hip hop. Nada disso. Reaccionário é o acto que despe de arte o impulso criador para o travestir de calculismo financeiro e disso, meus senhores e minhas senhoras, não se encontram exemplos nas discografias de gente como os Jurassic 5, Ugly Duckling, Blackalicious, Giant Panda, People Under The Stairs ou mesmo Gang Starr. Pensar nos benjamins (não os da Capela Sistina, mas os que aparecem verdes nas notas de 100 dólares) e definir estratégias de marketing antes sequer de escrever uma linha ou de arriscar rimar sobre um beat de um produtor desconhecido é de facto conservador (Jay-Z rimou em cima de pedaços de soul conjurados por Kanye e por Just Blaze e por 9th Wonder quando estes eram rookies à procura de uma oportunidade e por isso, como é mais do que óbvio, não conta e já que falamos nisso nem Nas que é um mestre capaz de insuflar arte até na leitura de uma lista de compras e sempre andou à margem do lado mais circense desta cultura). E, talvez por causa desse calculismo, o hip hop, vibrante até há dois anos, parece andar de novo um pouco perdido, faltando-lhe o fulgor criativo que gente como Timba ou os Neptunes e até Scott Storch insuflaram no lado cromado desta cultura. Há Kanye, claro. E Common e Mos Def e Guru e Kweli e Raekwon e…pouco mais. Mas esses são cultores de uma sensibilidade diferente, todos filhos de Rakim, mestres incendiários de palavras e de flows cuja memória começa no dia em que foi declarado que Eric B era presidente, já lá vão exactamente 20 anos. Não é deles a chama de uma escola mais antiga. A memória aqui regista as cifras e os flows modernos e as invenções no domínio da escrita e remete tudo o que veio antes de Run, DMC e Jam Master Jay para o território de uma difusa memória pré-histórica.



 

Mas havia vida antes de “Sucker Mc’s”, quando bandas criavam loops em tempo real, com bateria e baixo a conduzir guitarras, secções de metais e teclados por caminhos circulares de afirmação de ideias criadas por DJs. O funk estava na repetição, no carácter hipnótico do break repetido até à exaustão por um DJ cheio de skills. Esse é o momento que a memória da geração presente já mal alcança e que no entanto tornou possível tudo o que se seguiu – até ao domínio absoluto do planeta. Procurar nos códigos arcanos marcas de fogo criativo é por isso mesmo perfeitamente normal. Até porque a prática de redescoberta quase arqueológica do passado através dos artefactos vinílicos tem revelado ao mundo autênticos tesouros que, originalmente, pouco mais alcançaram do que a rua e o bairro em que foram gravados. Não é só a memória do presente que se redifine com a invenção de novas tipologias rítmicas reforçadas por identidades regionais (de novo: conferir os casos do grime e até, lateralmente, do reggaeton e do baile funk) – o passado é também alvo de transformação diária. Porque a memória é selectiva. E generosa.

A edição recente de Big apple rappin’ (ver 21st Century Vox do número 18 da Op.) mostra precisamente como o passado pode ser redescoberto. Muitos dos nomes ali presentes chegaram aí pela primeira vez ao universo digital, mais de duas décadas após a sua edição original. O passado é também uma construção do presente. O passado – ou a nossa visão dele – é um corpo em permanente mutação, sobretudo nos domínios da música popular: alguém experimentou os anos 80 da forma como hoje são representados e recriados pelo universo pop? Claro que não. E com novos passados a serem descobertos todos os dias ou com novos ângulos de observação de acontecimentos já anteriormente documentados obtém-se combustível renovado para a criação. E é em cima dessas ideias que uma escola particular do hip hop tem elevado a sua existência.

Na Costa Oeste, muito por culpa da zona da Bay Area, onde persiste uma espécie de micro-clima que levou a que a evolução da cultura hip hop fosse sendo sentida de forma muito particular, uma série de grupos têm criado música directamente inspirada no ponto de origem desta cultura, estendendo portanto a sua memória até ao ponto em que é correcto falar de uma “old school”. Nesta zona dos Estados Unidos, viam-se as grandes movimentações hip hop a passarem ao largo e isso explica o aparente paradoxo de por um lado haver quem retenha os códigos originais e, por outro, quem se dedique a criar uma nova sonoridade sem interferências exteriores (clique de E-40, Keak da Sneak et al). Ora, dos grupos que já por aqui mencionámos – dos Ugly Duckling (que têm álbum novo: Bang for the buck) aos Jurassic 5 – nem todos serão especificamente da Bay Area, mas é de lá certamente que emanam as suas influências. Young Einstein dos Ugly Duckling, por exemplo, já várias vezes declarou que é uma das suas zonas preferidas para fazer diggin’ (ele que é de um subúrbio de Los Angeles – Long Beach) e Cut Chemist, nos Jurassic 5 até ao álbum Power in numbers, antecessor do novíssimo Feedback, faz da zona da Bay Area o seu lar, apesar dos ex-companheiros de grupo se basearem essencialmente em Los Angeles. Para lá destas especificidades de localização geográfica, não é difícil ver a zona da Bay Area como pólo de uma determinada maneira de ver e pensar o hip hop, um pouco como Nova Iorque que também exerceu influência duradoura em termos de sonoridade e atitude muito para lá das suas fronteiras físicas.


 


 

O grande farol criativo da Bay Area é DJ Shadow e o seu colectivo Quannum. De certa maneira, o que Shadow foi dizendo ao longo dos anos em entrevistas e a própria música que foi editando funcionou como uma espécie de cartilha que indicou o caminho a seguir a muitos outros artistas e grupos. Sobretudo na relação que construiu com o funk e para a qual professou mesmo uma espécie de ética. Como digger de funk – em busca permanente da batida perfeita – Shadow actualizou a memória dos pioneiros do Bronx que encontraram no funk a mais valia rítmica que serviu de fundação a todo o movimento hip hop. E o gesto criativo de Shadow implicou decididamente um estender da memória, até porque até ao aparecimento do autor de “Endtroducing” o funk que tradicionalmente obtinha impacto junto da comunidade hip hop da Costa Oeste era o da escola Parliament-Funkadelic – mais ácido, mais rock, mais psicadélico – que esteve na base da coloração tímbrica de todo o gangsta rap. Ao dar início à febre dos Funk 45s com a pioneira mixtape “Brainfreeze” (juntamente com… Cut Chemist), Shadow estreitou igualmente os laços com os pioneiros do diggin’, como Afrika Bambaataa. É fácil perceber como a partir daí a busca das origens se desenvolveu, informando a arte contida nos discos de gente como Ugly Duckling, People Under the Stairs e, entre tantos outros, Jurassic 5.



 

No número 9 da revista Op, a propósito de Power in numbers, descrevi os Jurassic 5 como “herdeiros dos postulados espirituais da Old School.” Não apenas por causa da relação praticamente umbilical com os breaks, por causa das harmonias a 4 vozes que remetem para os tempos em que colectivos como os Cold Crush Brothers e os Fantastic 5 (as duas crews que batalharam no clássico Wild Style, na sequência do court de basquete) desenhavam jogos de rimas intrincados e construíam uma utopia, mas por causa de uma ideia de “pureza” que procura devolver o hip hop à época em que o peso da arte ainda se sobrepunha ao do comércio. A memória raramente se estende para lá do ponto em que o hip hop começou a dar sinais de se transformar numa poderosa indústria de entretenimento – Old School, para tanta gente, são os nomes que povoavam o Yo! MTV Raps, programa que, no entanto, só começou a ser emitido praticamente uma década depois dos Sugarhill Gang terem assinado o primeiro disco de hip hop da história. E sob esse prisma, o trabalho de bandas como os Jurassic 5 é quase missionário – são eles que mantém viva uma determinada ética, uma determinada prática e sobretudo uma determinada inocência que o hip hop não pode esquecer que já um dia possuiu. Feedback também quer dizer regresso. E para regressar é preciso que a memória não esqueça de onde se veio.



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Jurassic 5 // Feedback (Interscope/Universal)

Os Jurassic 5 continuam jurássicos e são finalmente 5!

Há um dado muito importante para registar em relação a Feedback, o novo álbum dos Jurassic 5: finalmente, o numeral do nome deste grupo da Costa Oeste parece fazer sentido – com a saída de Cut Chemist, o colectivo passa mesmo a ter cinco membros. Chemist, juntamente com DJ Shadow, tornou-se uma espécie de arauto de todas as coisas “funky” nos últimos anos: assinou discos que são autênticas bíblias de diggin’ – como Product Placement – e afirmou-se como DJ de excepção. Por isso mesmo, a saída de Chemist do mais funky dos grupos de LA que mantêm viva a chama dos primórdios do hip hop é um dado importante. Tanto mais que o homem vai agora estrear-se a solo. Feedback é também, e por isso mesmo, uma prova de que os Jurassic conseguem funcionar sem o seu químico preferido. E a verdade é que conseguem, até porque continuam a ter os préstimos de DJ Numark, ele próprio um artesão de batidas de enorme qualidade.

Existirá, no entanto, uma relação directa entre a saída de Cut e o aparecimento no grupo de beats assinados por “hit makers” como Scott Storch. O pendor mais R&B de um par de faixas, como “Brown Girl”, e até o recrutamento da Dave Mathews Band para o single “Work It Out” poderá ter algum significado especial. Mas só se esquecermos que, como muito bons resultados aliás, eles já tinham usado Nelly Furtado no álbum “Power in Numbers”. Não será, portanto, uma espécie de perseguição incondicional do sucesso. Talvez apenas amadurecimento. E a passagem de um estado de militância para outro em que assumem o seu lugar na paisagem da indústria. E o lugar continua a ser o de uma espécie de consciência activa do hip hop, que mantém presente as harmonias e as cadências que alimentaram os primórdios desta cultura. Uma filosofia que se sente em temas em que é visível o prazer do funcionamento colectivo, como por exemplo “Radio”, com sabor electro retro e refrão de elevação harmonizado a quatro vozes. Como nos bons velhos tempos. 8/10 RMA

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