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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/02/2021

A assentar arraiais no topo da montanha.

Wet Bed Gang: “Foi muito importante conseguirmos atingir coisas que eram impossíveis para nós”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/02/2021

“O Rock não rola mais como rolava, e a Pop tá apaixonada por versos desta cambada…”. As linhas são de Sir Scratch em “REPARA” e, em Portugal, não há melhor grupo que as personifique que os Wet Bed Gang, quarteto de Vialonga que acaba de editar o seu álbum de estreia, Ngana Zambi, no dia em que João Rossi, a estrela que orienta o movimento, faria 35 anos. 

Depois de projectos como Filhos do Rossi (2017), IV (2018) e Stay Inside (2019) ajudarem a desenhar uma primeira imagem do que é o grupo — os seus valores, a sua atitude e a sua arte –, os Wet Bed Gang testam, de uma maneira mais longa, as suas próprias capacidades com um conjunto de 17 faixas (entre canções e skits), com a benção da lenda angolana Bonga, responsável pela narração, e instrumentais de Charlie Beats, Lhast, Lazuli, Holly, El Conductor, Ricardo Estevão e Kid Simz

Orgulhosamente bairristas, Kroa, Gson, Zara G e Zizzy superaram as mil e uma barreiras que estavam à sua volta para se afirmarem como o colectivo mais popular da sua geração e elevaram a fasquia, pelo menos no que toca a números: as 40 milhões de visualizações de “Devia Ir” no YouTube são um número completamente anormal em território português e isso estende-se ao que vão fazendo noutras plataformas de streaming — cerca de 65 milhões de plays no Spotify entre 2017 e 2020

Musicalmente, os quatro fantásticos da V-Block apresentam algum do melhor material do seu catálogo em Ngana Zambi: logo a abrir, “ROTFEC” é tareia em conjunto com socos desferidos à vez — e a criatividade de Gerson Costa a saltar à vista, mais uma vez; “Perseus” é nervo drill que precisa de ser rapidamente transportado para concerto; “300”, “Balenciaga”, “La Bella Mafia” e “Sai Do Meu Hood” são o peso e o excesso que o trap pede — em Portugal não há rockstars, só mesmo trapstars (e provavelmente só os WBG é que encaixam totalmente nessa descrição); “Ngana Zambi” e “Voltar Para Casa” são as músicas que têm potencial para atravessar gerações, “da avózinha ao neto”. 

No entanto, o ponto alto é  “Head Na Glock”, um exercício bem-conseguido de criar um filme na nossa cabeça só com recurso a palavras, recorrendo a uma palete emocional que pinga sinceridade em cada linha — e o videoclipe só ajuda a elevar mais… Uma das melhores canções geradas em Portugal nos últimos anos. 

Na passada quarta-feira, dia 17 de Fevereiro, sentámo-nos (pelo Zoom) à conversa com Zizzy e falámos sobre o primeiro longa-duração dos Wet Bed Gang, as diferentes abordagens na criação de faixas, os momentos mais importantes no crescimento da banda e o que a independência traz de bom (e de mau). 



Acho que podíamos começar por aquilo que se passou há um ano: eu cheguei a ter o disco comigo e preparava-me para vos entrevistar quando fecharam tudo. Para vocês que andavam constantemente na estrada nos últimos anos, como é que foi a reacção inicial a tudo isto, ainda para mais quando se preparavam para lançar o vosso álbum de estreia?

A reacção inicial foi começar a ficar em casa e tentar perceber o que é que estava a acontecer. Foi fixe no início na cena de poder começar a descansar e poder ter momentos com a família, poderes estar atento a coisas que não consegues estar quando estás na estrada — raramente estás em casa e com as pessoas. Deu para puxar um bocadinho esse lado, mas chegou a uma altura que começou a fartar. Só o facto de não teres a liberdade de poder sair de casa… é uma cena que ainda hoje me faz mossa. 

O título do álbum é Ngana Zambi. Percebi pelos skits e por uma pesquisa no Google que a tradução seria algo como “Deus” ou “anjo da guarda”, não é? Como é que chegaram a esse título?

É como tu disseste, tem muito a ver com um ser superior, que não tem forçosamente a ver com Deus ou com uma cena religiosa, mas tem muito a ver com protecção. De saberes que há sempre alguém ou qualquer coisa que te vai amparar nos teus momentos negativos e mesmo nos positivos vais ter as tuas pessoas. Era aquilo que eu estava a dizer, não tem forçosamente a ver com religião porque pode ser a tua fam, o teu irmão que te ajuda quando estás enrascado, a tua mãe que faz o teu almoço quando não te apetece cozinhar. É por aí o Ngana Zambi. Mas melhor do que eu para explicar isso, nós no álbum tivemos, graças a Deus, o Cota Bonga, que narrou o nosso álbum, e a quem agradeço desde já, e que explicou melhor do que ninguém o que é que é o Ngana Zambi

Tens que me explicar como é que chegaram ao Bonga e como acabou a fazer os skits do vosso álbum. 

[Risos] Ele narrou mesmo o álbum. O Bonga foi mesmo a cereja no topo do bolo. Imagina, já tínhamos o conceito todo do álbum, o Ngana Zambi, e queríamos alguém influente (ou uma voz reconhecida e respeitada) a credibilizar ainda mais o álbum e aquilo que a gente estava a imaginar. Claro que existem outros cotas (como o Paulo Flores, por exemplo) mas o Bonga é o Bonga. E o facto de conseguires fazer isso… eu tenho 25 anos, ter o Bonga no meu primeiro álbum é histórico. 

E nem conseguiram obrigar o Bonga a dar-vos um refrão? [Risos]

[Risos] Mas olha que ficou prometido um dia de estúdio. 

Em comparação com aquilo que recebi em 2020, vocês acrescentaram três temas, as novas “Perseus” e “Sai Do Meu Hood”, e a “Bairro”, que já tinha saído. Para “Perseus”, que é uma cena mais drill, o que é que andavam a ouvir na altura?

Ah, é o normal. Eu quando gosto de uma cena, gosto a sério. O Pop Smoke não fez o drill nascer, mas o que ele fez e o que ele representa hoje em dia é uma cena bué gigante. Ele conseguiu pôr o drill no top dos tops… com 20 anos! Inacreditável. Claro que não estivemos ali a espelhar-nos nele, mas óbvio que o facto dele estar a bombar e da forma que a música dele nos tem chegado nos motivou a ir por essa onda. 

Mas, sinceramente, foi o beat que a gente teve [risos]. 

Estava a ver a vossa entrevista para o Elefante de Papel e teve piada porque tu falavas de como cada um tinha o seu prazer em estúdio para ajudar no processo criativo e que iam fazendo a coisa sem estudar ou pensar muito. Consigo visualizar isso em temas mais festivos, mas como é que se faz uma canção pesada como a “Head na Glock”, por exemplo, nesses termos? Imagino que a energia seja outra. 

É assim, nós funcionamos muito por vibe, funcionamos muito por feeling, por energia, por ambiente. E normalmente fazemos a música assim. Claro que existem momentos em que nós vimos um filme ou o que for que nos vai motivar a querer falar de algo. E isso pode partir de qualquer um de nós, pode partir de mim, do Gson, do Kroa… A “Head na Glock” saiu do Gson, que viu um filme [Uma Vida Sublime de Luís Diogo], e o senhor que fala no fim do som é desse filme que ele viu. O Gerson é que fez esse refrão, “o que é que tu fazias com a tua head na glock”. E ele entregou-nos isso e disse “agora digam vocês o que é que faziam com a head na glock, pintem o vosso quadro”. Nós funcionamos assim. Claro que temos a parte do só vibe, as nossas maluquices… e também tem momentos em que a gente pensa, dança, vai e faz. 

O Zara G, na “Depois da Chuva”, diz algo como “depois da ‘Não Tens Visto’ passei a ficar sem tempo”. Acredito que foi nesse tema que começaram a sentir as coisas a mudar à vossa volta, mas houve um momento em que olharam uns para os outros e pensaram, “ok, conseguimos?” Eu, pessoalmente, senti isso quando vos vi a aparecer para substituir o Hardwell no palco principal do MEO Sudoeste em 2018. Cantaram duas vezes a “Devia Ir” e eu, por causa da reacção do público e da vossa prestação, fiquei, “ok, eles são mesmo estrelas rock neste momento”. 

[Risos] Nesse dia eu estava na praia com a mãe da minha filha e do nada recebi uma mensagem: “olha, temos que ir para o Sudoeste”. Por acaso estava já a arrancar para casa, cheguei, tomei banho [risos] e fui tocar para o Sudoeste. 

Voltando à pergunta, houve algum momento para ti que fosse isso?

Eu não consigo determinar um momento-chave, mas consigo dizer-te momentos. Imagina, foi por fases. Antes do “Não Tens Visto” sair, eu já sabia que aquilo ia fazer alguma coisa. Muito sinceramente, na minha percepção, aquilo ia bater. Aquilo ia ser a cena que ia pôr o nome da Wet lá fora. Era essa a minha percepção. E foi. Mas houve momentos… O “Devia Ir” é um marco — acho eu — na história da música portuguesa. 40 milhões de views, um grupo de hip hop… acho que foi uma cena que me abriu os olhos para o outro lado. O “Bairro”… As nossas mães que antes tinham a cena do “chegam tarde a casa” mas quando já consegues pôr uma cena fixe em casa, dar aquela cena à tua mãe, fazer cenas fixes pela tua fam… Se calhar já não é só uma maluquice qualquer, se calhar tem um propósito e tem algum conteúdo naquilo tudo. Foram esses momentos todos conjugados que começaram a abrir-me o olho para o sucesso. 

Uma das frases que me saltou ao ouvido no vídeo de reacção à “Perseus” foi uma coisa que o Gson disse, das pessoas precisarem “de sentir que os iguais a eles também se superam”. Lembrei-me quando tive oportunidade de assistir à gravação do disco À Moda Quarteirense, um projecto do Dino D’Santiago com uma carrada de artistas locais, no Verão passado. Numa das pausas estava à conversa com a Alicia, que até fez parte da banda da Kady no Festival da Canção, e os olhos dela começaram a brilhar quando se falou da Nenny. Como se finalmente existisse uma referência nacional e da idade dela em que se revisse. Essa representação é importante para vocês? Vêem-se como exemplos para uma geração de miúdos que olha para vocês como referências? Sentem o peso desse papel?

É assim, eu não quero ser exemplo para ninguém porque eu, sinceramente, não sou exemplo para ninguém. Nós não somos exemplos para ninguém, mas acho que tivemos um papel, não vou dizer determinante, mas um papel que tem algum tipo de força, que move algumas massas e acho que o nosso “povo”, por assim dizer, o people do bairro, a minoria. Nós somos a minoria. Nós somos a rua, nós somos o bairro ainda. E eu posso vir a tocar num Wireless ou whatever que eu não vou sair do meu bairro, ou o bairro não vai sair de mim. Nunca na vida. Foi muito importante para nós conseguirmos atingir coisas que eram impossíveis para nós. E quando eu digo essas coisas, não tem necessariamente só a ver com o sucesso em si, mas com o poderes dar mesmo. Ou o poderes mostrar. Já não tem a ver só com… os iluminados do bairro, né? Que amanhã acordam e dizem, “eu vou abrir uma loja, eu vou não sei quê”. Não, nós fizemos. E a melhor coisa que a gente tem para dar o exemplo é “a gente fez”. Se nós fizemos, nós que viemos do mesmo sítio que vocês, e provavelmente para alguns até viemos de realidades ainda piores, e conseguimos, vocês também vão conseguir. E eu estou a dizer isto porque foi esta a conversa, ou foi esta maneira de dizer as coisas, que os meus ídolos falaram, entendes? E foi a partir de eu conseguir beber desse sumo deles que consegui fazer o meu. E eu também estou a espremer a minha limonada para todos os putos que quiserem seguir os passos. E quando eu digo seguir os passos é: fazerem algo positivo. Não tem necessariamente a ver com música. Podes ser jogador da bola, podes ser advogado, podes ser varredor de rua, mas tem brio no teu trabalho e luta por ti, luta pelos teus sonhos porque realmente é possível. Se tudo estiver a remar para o mesmo sítio, é possível. 

Bem, as marcas caras e os momentos de flex puro também aparecem, claro, como na “Balenciaga” e na “Perseus”. Lembras-te do primeiro artigo/peça de roupa mais luxuoso que compraste?

Não me lembro porque não dou valor a isso. Eu entendo que hoje em dia as pessoas liguem muito à imagem, ao Instagram e àquilo que o outro está a vestir… eu não vou mentir, eu gosto. Gosto de vestir uma Balenciaga, gosto de vestir uma Versace, gosto. Mas não te consigo responder a isso porque realmente eu não sei — é o valor que eu dou às coisas. Aquilo vai virar pano daqui a um tempo. Curto muito mais do facto de poder ajudar a minha mãe. Esse é um extra fixe, mas não damos valor a isso. 

Na verdade, essa pergunta era uma maneira de chegar a outro lado, se sentiam que toda a ostentação faz parte dessa missão de superação. 

Aí está, não é uma ostentação, no fundo. É mesmo isso que disseste: é mostrar que é possível. Não é ostentação de “eu tenho”. Não é o “eu tenho”, é o “eu consegui”. É diferente. 

Já o Zara dizia, “eu adoro ostentação porque trabalho todos os dias”. 

É real shit [risos]. 

Nesse mesmo vídeo de que falávamos anteriormente, o Gson dizia que “tiveram de conquistar prémios” para serem validados. E isso recordou-me a vez em que perderam para o Valas nos prémios PLAY e, não sei quanto tempo depois, o Richie Campbell, num concerto dele, tocou as duas músicas, a vossa e a dele, para provar qual das duas é que tinha impacto no público ou não. Vocês acham que têm sido respeitados pelas (poucas) galas de prémios que existem em Portugal? Ou acham que é preciso criar ou mudar algo? 

É assim, nós sabemos onde é que estamos: estamos em Portugal. Nós só conseguimos chegar aí porque é impossível sermos ignorados. É impossível. Se fizeres isso, aí já é escandaloso demais. Eu entendo esse lado. Põe-nos lá, fixe. Mas o ganhar é complicado porque nós não damos nada a ninguém. Nós somos independentes. Nós somos blacks. Jovens que não têm problemas de dizer como são e mostrar que são como são. E aos olhos do mundo ainda somos os pretos do bairro. É essa a verdade. Mas acho que com o trabalho e com aquilo que a gente já conseguiu fazer vamos conseguir mudar isso. Esses prémios são fixes, é uma cena fixe, parabéns a quem ganha, real shit. Eu prefiro mil vezes ter as minhas cenas todas do meu lado, as minhas royalties, as minhas streams, 100% para mim, os meus concertos serem o cachet que são e ser independente e não ter de perguntar nada a ninguém quando quero lançar ou fazer uma música. 

Na “Sai do Meu Hood”, tu cantas “vivemos da indústria, fodemos o mercado” e eu só pensei na quantidade de convites de editoras grandes que já devem ter recebido. 

Ya.

A independência também faz parte de ser Rossi? Ou ainda não apareceu uma proposta que vos agradasse?

Imagina, a proposta que nos vai motivar a deixarmos de ser independentes é uma proposta que consiga cobrir os valores que a gente faz sendo independente. It’s all about the money [risos].

Conquistaram muito em pouco tempo — já tocaram em palcos principais de festivais grandes, já entraram num filme de animação, já actuaram fora de Portugal –, mas ainda devem ter alguns desejos grandiosos para o futuro: o que é que está na mente da Wet Bed Gang para os próximos tempos?

Olha, eu gostava que a Wet um dia pudesse ser respeitada por toda a gente. Que da avózinha ao neto soubessem quem é que é cada um, mas pelo trabalho. Eu quero que a Wet lance música de uma forma que consiga esmagar o mercado. E dizer assim: só existe isto. É esse o nosso objectivo [risos]. Nós temos mentalidade de Cristiano [Ronaldo]. Além disso, gostava de ver todos os meus irmãos milionários. E é um sonho legítimo, e há-de acontecer. Marquem essas palavras em 2021. 


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